Kant, o nada em relação com o possível e com o impossível

(MDM1996)

Em seguida, e para ficarmos nas indicações apresentadas pelo texto, o comentário de Kant referente ao ens rationis, o ser de razão, contém uma outra alusão, sempre feita de modo claro e precipitado, àqueles que “pensam em si mesmos certas forças fundamentais novas”. Tal alusão, ao refletir sobre o nada em sua relação com o possível e com o impossível, retoma o esclarecimento do primeiro postulado do pensamento empírico em geral 1. Aqueles que em si mesmos inventam “novos conceitos de substâncias, de forças de ação recíproca, a partir da matéria que a percepção nos oferece” não foram sempre designados por Kant de maneira tão alusiva quanto nesta fórmula de 1781: com efeito, exatamente como as palavras explícitas de 1766, esta tem em vista Swedenborg, o sábio que se tornou louco, sobre quem Kant escreveu um livro na mesma época em que também refletia sobre as grandezas negativas. Os Sonhos de um vidente de espíritos explicados por sonhos da metafísica datam de 1766, ou seja, de apenas três anos depois do Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa 2.

Nos capítulos de transição entre a “Analítica” e a “Dialética transcendental”, e particularmente nesse acréscimo sobre o nada apresentado a título de breve precisão que completa o sistema, Kant lembra rapidamente sua reflexão de 1763 a 1766, voltada para dois temas heterogêneos, ao que parece: a negação, de um lado, a loucura, de outro. Por ora certamente não compreendemos qual pode ser a relação entre esses dois temas. Mas podemos notar que, nos Sonhos de um vidente de espíritos, ele arriscava a ideia de que entre o idealismo metafísico e as alucinações de Swedenborg havia uma perturbadora semelhança. O que desde logo é certo é que, quando redefine, em 1781, a modalidade do possível e o nada como puro conceito sem objeto, isto é, como coisa de puro pensamento [Gedankending], ele tem sempre dois interlocutores: Leibniz e Swedenborg. Só que, ao evocar este último em 1781, não pronuncia seu nome, assim como em 1766 havia começado por publicar sua própria obra comprometedora sem nome de autor e deformava Swedenborg em Schwedenberg. Numa leitura da Crítica da razão pura que se quisesse sincrônica, o que torna necessário voltar à história do pensamento kantiano entre 1763 e 1766, são, portanto, dois detalhes do texto: por um lado, a maneira paradoxal de Kant introduzir sua reflexão sobre as categorias do nada, por outro, o modo discreto mas insistente de, junto com Leibniz, convocar a figura de Swedenborg.

  1. OEuvres phil, I, p. 951; Suhrkamp, III, p. 251; Ak. B pp. 269-270, A pp. 222-223. Kant retoma aqui muito claramente os três princípios de Swedenborg: a existência dos espíritos ocultos, a transmissão de pensamento, enfim, a predição, que se opõe à previsão científica.[]
  2. Além do mais, o interesse de Kant pela loucura coincide exatamente, no tempo, com sua reflexão sobre a negação, uma vez que foi em 1764 que ele publicou o Ensaio sobre as doenças da cabeça (Versuch uber die Krankenbetten des Kopfes, Suhrkamp, II, p. 887ss; A pp. 259ss), trad. francesas: J.-P Lefebvre, in L’Évolution psychiatrique, 1977; M. David-Ménard, GF-Flammarion, Paris, 1990.[]