Prefácio – A razão só entende aquilo que produz…
Quando Galileu fez rolar no plano inclinado as esferas, com uma aceleração que ele próprio escolhera, quando Torricelli fez suportar pelo ar um peso, que antecipadamente sabia idêntico ao peso conhecido de uma coluna de água, ou quando, mais recentemente, Stahl transformou metais em cal e esta, por sua vez, em metal, tirando-lhes e restituindo-lhes algo [[Não sigo aqui, rigorosamente, o fio da história do método experimental, cujos primórdios não são, de resto, bem conhecidos.]], foi uma iluminação para todos os físicos. Compreenderam que a razão só entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos; que ela tem que tomar a dianteira com princípios, que determinam os seus juízos segundo leis constantes e deve forçar a natureza a responder às suas interrogações em vez de se deixar guiar por esta; de outro modo, as observações feitas ao acaso, realizadas sem plano prévio, não se ordenam segundo a lei necessária, que a razão procura e de que necessita. A razão, tendo por um lado os seus princípios, únicos a poderem dar aos fenômenos concordantes a autoridade de leis e, por outro, a experimentação, que imaginou segundo esses princípios, deve ir ao encontro da natureza, para ser por esta ensinada, é certo, mas não na qualidade de aluno que aceita tudo o que o mestre afirma, antes na de juiz investido nas suas funções, que obriga as testemunhas a responder aos quesitos que lhes apresenta. Assim, a própria física tem de agradecer a revolução, tão proveitosa,do seu modo de pensar, unicamente à ideia de procurar na natureza (e não imaginar), de acordo com o que a razão nela pôs, o que nela deverá aprender e que por si só não alcançaria saber; só assim a física enveredou pelo trilho certo da ciência, após tantos séculos em que foi apenas simples tateio.
§16 Apercepção (CRP:B132-B135)
O eu penso deve poder acompanhar todas as minhas representações; se assim não fosse, algo se [B132] representaria em mim, que não poderia, de modo algum, ser pensado, que o mesmo é dizer, que a representação ou seria impossível ou pelo menos nada seria para mim. A representação que pode ser dada antes de qualquer pensamento chama-se intuição. Portanto, todo o diverso da intuição possui uma relação necessária ao eu penso, no mesmo sujeito em que esse diverso se encontra. Esta representação, porém, é um ato da espontaneidade, isto é, não pode considerar-se pertencente à sensibilidade. Dou-lhe o nome de apercepção pura, para a distinguir da empírica ou ainda o de apercepção originária, porque é aquela autoconsciência que, ao produzir a representação eu penso, que tem de poder acompanhar todas as outras, e que é una e idêntica em toda a consciência, não pode ser acompanhada por nenhuma outra. Também chamo à unidade dessa representação a unidade transcendental da autoconsciência, para designar a possibilidade do conhecimento a priori a partir dela. Porque as diversas representações, que nos são dadas em determinada intuição, não seriam todas representações minhas se não pertencessem na sua totalidade a uma autoconsciência; quer dizer, enquanto representações minhas (embora me não aperceba delas enquanto tais), têm de ser necessariamente conformes com a única condição pela qual se podem encontrar reunidas numa autoconsciência geral, pois não sendo assim, não [B133] me pertenceriam inteiramente. Desta ligação originária se podem extrair muitas consequências.
Acontece que esta identidade total da apercepção de um diverso dado na intuição contém uma síntese das representações e só é possível pela consciência desta síntese. Com efeito, a consciência empírica que acompanha diferentes representações é em si mesma dispersa e sem referência à identidade do sujeito. Não se estabelece, pois, essa referência só porque acompanho com a consciência toda a representação, mas porque acrescento uma representação a outra e tenho consciência da sua síntese. Só porque posso ligar numa consciência um diverso de representações dadas, posso obter por mim próprio a representação da identidade da consciência nestas representações; isto é, a unidade analítica da apercepção só é possível sob o pressuposto de qualquer unidade sintética
A unidade sintética do diverso das intuições, na medida em que é dada a priori, é pois o princípio da identidade da própria apercepção, que precede a priori todo o meu pensamento determinado. A ligação não esta, porém, nos objetos, nem tão-pouco pode ser extraída deles pela percepção e, desse modo, recebida primeiramente no entendimento; é, pelo contrário, unicamente [B135] uma operação do entendimento, o qual não é mais do que a capacidade de ligar a priori e submeter o diverso das representações à unidade da apercepção. Este é o princípio supremo de todo o conhecimento humano.
Este princípio da unidade necessária da apercepção é, na verdade, em sisi mesmo, idêntico, por conseguinte uma proposição analítica, mas declara como necessária uma síntese do diverso dado na intuição, síntese sem a qual essa identidade completa da autoconsciência não pode ser pensada. Com efeito, mediante o eu, como simples representação, nada de diverso é dado; só na intuição, que é distinta, pode um diverso ser dado e só pela ligação numa consciência é que pode ser pensado. Um entendimento no qual todo o diverso fosse dado ao mesmo tempo pela autoconsciência seria intuitivo-, o nosso só pode pensar e necessita de procurar a intuição nos sentidos. Sou, pois, consciente de um eu idêntico, por relação ao diverso das representações que me são dadas numa intuição, porque chamo minhas todas as representações em conjunto, que perfazem uma só. Ora isto é o mesmo que dizer que tenho consciência de uma síntese necessária a priori dessas representações, a que se chama unidade sintética originária da apercepção, à qual se encontram submetidas todas as representações [B136] que me são dadas, mas à qual também deverão ser reduzidas mediante uma síntese.
EU PENSO (CRP:A341/B399)
O paralogismo lógico consiste na falsidade de um raciocínio quanto à forma, seja qual for, de resto, o seu conteúdo.
Mas um paralogismo transcendental tem um fundamento transcendental, que nos faz concluir, falsamente, quanto à forma.
Deste modo, tal raciocínio vicioso fundamenta-se na natureza da razão humana e traz consigo uma ilusão inevitável, embora não insolúvel.
Chegamos agora a um conceito que não foi indicado anteriormente na lista dos conceitos transcendentais, mas que, todavia, tem que lhe ser acrescentado, sem que no entanto se altere, no mínimo que seja, essa tábua ou se declare incompleta. Trata-se do conceito, ou se se prefere, do juízo: eu penso. Facilmente se vê que esse conceito é o veículo de todos os conceitos em geral e, por conseguinte, também dos transcendentais, em que sempre se inclui, sendo portanto transcendental como eles; mas não poderia ter um título particular, porque apenas serve para apresentar todo o pensamento como pertencente à consciência. No entanto, embora isento de elementos empíricos (da impressão dos sentidos), serve para distinguir duas espécies de objetos a partir da natureza da nossa faculdade de representação. Eu sou, enquanto pensante, objeto do sentido interno e chamo-me alma. O que é objeto dos sentidos externos chama-se corpo. Assim, a expressão eu, enquanto ser pensante, indica já o objeto da psicologia, a que se pode chamar ciência racional da alma, se eu nada mais aspirar a saber acerca desta a não ser o que se pode concluir deste conceito eu, enquanto presente em todo o pensamento e independentemente de toda a experiência (que me determina mais particularmente e in concreto).