Cultura pura e pura natureza

(Borella1990)

[…] a cultura não é considerada por si mesma, mas sempre em relação à sua origem e ao propósito que deve cumprir 1.. Somos, portanto, levados a questionar em que condições tal posição é possível, o que nos conduz a uma observação importante. De fato, colocar a cultura por si mesma implica primeiro que a concebamos em si mesma, em estado separado, e como não entrando em relação com a natureza senão “de fora”. Isso significa que só pode haver “cultura pura” se colocarmos correlativamente uma “natureza pura”. E o que é então a “natureza pura”? Não é ela, como às vezes se diz, senão o resultado de uma operação abstrativa, o que resta quando se suprimiu tudo o que vem da cultura? É esta, de certo modo, a concepção que o método rousseauniano impôs: o homem nu, tal como é dado pela natureza, aparece ao termo de um processo redutor, verdadeira experiência mental pela qual ele é despojado de tudo o que as ciências e as artes lhe acrescentaram. Depois disso, o conceito de natureza pura (ou de estado de natureza) assim obtido servirá de critério para discriminar no homem histórico e concreto, o que é natural e o que não é. Aqui, a natureza é a não-cultura, e seu conceito parece, portanto, derivar dela. Mas, na realidade, o processo abstrativo é ele mesmo guiado e determinado pela ideia de que a cultura é a não-natureza. Se, ao contrário, Rousseau tivesse considerado a cultura à maneira tradicional como o desenvolvimento ordenado da natureza, que é, portanto, ela mesma considerada como uma virtualidade, como uma realidade aberta ao devir, requerendo por si mesma sua realização, e, consequentemente, implicando em si mesma uma cultura possível, assim como a cultura não faz, de certo modo, senão explicitar a natureza, se ele tivesse considerado as coisas assim, teria compreendido que é impossível separar efetivamente no homem real o que é natural e o que é cultural, senão de um ponto de vista “lógico”. Em outras palavras, e para empregar a linguagem da filosofia escolástica, a distinção que há entre a natureza e a cultura, não é nem real, no sentido em que seriam duas realidades existindo separadamente, nem puramente ideal ou de razão (como entre um redondo e um círculo, por exemplo). Mas é uma distinção formal, ou ainda virtual, porque, se a essência ou a forma ou a quididade da natureza e a da cultura são bem distintas, elas não existem, no entanto, em estado separado: não há nem natureza pura, nem cultura pura, mas elas constituem ambas virtualidades do homem real, correspondendo analogicamente à animalidade e à racionalidade.

Mas, mais profundamente ainda, e de uma maneira mais geral, é preciso dizer que a identificação (e, portanto, a identidade) da natureza, como da cultura e de qualquer outra realidade, só pode ser assegurada, numa filosofia não-platônica, pela exclusão “horizontal” de tudo o que não é ela e se encontra, no entanto, no mesmo plano de existência, portanto, por relações de oposição. Para um platônico, a identidade de qualquer coisa é sua essência transcendente, independente e de si indiferente a tal ou qual estado de existência. É a relação “vertical” de um ser com sua essência, relação que atravessa todos os graus de existência, quaisquer que sejam as modalidades desse ser, que assegura e mantém sua identidade. Ele não tem que temer os encontros, as combinações de todos os tipos, as alterações e transformações que lhe vêm de suas relações “exteriores”. Ao contrário — e já é o caso com Aristóteles, mas ainda mais com Galileu e Descartes — quando esta relação com a essência desaparece, só se pode conceber a identidade de qualquer coisa “do exterior”, ou seja, distinguindo-a horizontalmente de tudo o que não é ela, separando-a, isolando-a e opondo-a a todo o resto. O estado de natureza torna-se então a guerra de todos contra todos, num sentido que Hobbes não havia previsto, mas que não faz senão revelar o substrato especulativo de seu pensamento político. Por outras palavras, a teoria de Hobbes exprime, no plano particular da política, a situação especulativa geral de seu tempo. Um ser, uma coisa, só é mantido em sua própria natureza sob a condição de ser contraposto a todo ser e a toda coisa; situação que se encontra na filosofia pura, com o sujeito cartesiano contraposto em sua solidão à totalidade do espalhamento cósmico. Acreditamos, no entanto, que o primeiro a ter realizado esta consequência da rejeição radical do platonismo das essências foi Galileu; e é a pregnância especulativa deste modelo que arrastou consigo todos os outros passos intelectuais em todos os domínios.

A natureza de Rousseau é, portanto, essencialmente o mundo da física galileana, tese que, aliás, Rousseau compartilha com todo o século XVIII: “Vejo no sistema do mundo”, declara ele, “uma ordem que não se desmente nunca”, uma ordem mecânica e, no entanto, finalizada, pois, diante deste “relógio aberto” que é o mundo, “admiro o artífice no detalhe de sua obra, e tenho certeza de que todas essas engrenagens só andam assim em conjunto para um fim comum que me é impossível de perceber”. Ele leva mesmo o mecanismo a adotar a tese cartesiana sobre os animais-máquinas: “Não vejo em todo animal senão uma máquina engenhosa, à qual a natureza deu sentidos para se remontar ela mesma (…). Percebo precisamente as mesmas coisas na máquina humana, com esta diferença que a natureza faz tudo nas operações da besta, enquanto o homem concorre para as suas na qualidade de agente livre” M. Mas, em tudo isso, Rousseau não faz senão repetir, com alguns detalhes a menos, as teses mais comuns de seu tempo. A natureza, na realidade, não é aqui senão um cenário, e não se lhe pede nada além do que se pede a um cenário que é isolar a cena do resto do mundo, traçar-lhe os limites e protegê-la de qualquer influência “exterior”. E qual é então a influência exterior à natureza e que poderia intervir em sua ordem para modificá-la ou transformá-la, senão a “sobre-natureza”? A função essencial da natureza, mecânica universal, aparece então em toda a sua clareza, é colocar o homem ao abrigo do sobrenatural. Rousseau declara da maneira mais nítida: “Sobrenatural? Que significa esta palavra? Eu não a entendo”.

  1. Pode-se argumentar que estamos levantando um problema falso, visto que a palavra “cultura” adquiriu o sentido atual apenas tardiamente. Mas isso não é totalmente exato. «Colere e cultura propriamente designam o cuidado com os campos, o pomar, o gado; são palavras da linguagem rústica, mas o significado se ampliou por metáfora. Assim, chegou-se a falar de cultura animi ou ingenii; um texto de Cícero destaca a imagem com toda a precisão desejável: “Nem todos os campos cultivados produzem frutos… da mesma forma, nem todas as mentes cultivadas produzem frutos.”» (Tusculanas, 2, 5)» (H.I. Marrou, Santo Agostinho e o fim da cultura antiga, p. 550). Se, por muito tempo, o termo se aplicou apenas à cultura do espírito por meio das belas-letras e da filosofia, entende-se que ele estava, de certo modo, destinado a designar, no sentido absoluto, o conjunto de meios pelos quais uma sociedade educa e forma o homem como um todo. E como esse conjunto é próprio de cada sociedade, tornou-se possível uma comparação entre culturas, na qual o conceito de cultura alcançou seu significado atual.[]