(Borella1990)
Assim é, brevemente, a concepção de cultura que nos parece se impor, se houver alguma preocupação com a felicidade real dos homens. Ela não tem nada de muito original, e, no entanto, é surpreendente constatar o quão pouco ela ocupa lugar nas doutrinas filosóficas dos últimos dois séculos. Não que se ignore o debate cultura-natureza. Pelo contrário, acreditamos até que é ele quem organiza e estrutura o campo filosófico do Ocidente moderno e contemporâneo, sendo o problema maior do pensamento europeu desde meados do século XVII, porque a revolução galileana, ao destruir o mundo da cultura cristã, levantou-o da forma mais inevitável: ela separou definitivamente a cultura da natureza. E a humanidade só enfrenta problemas que já não consegue resolver. Mas a filosofia e as ciências humanas geralmente tratam dessa questão apenas para opor cultura à natureza, separá-las e isolá-las uma da outra, ou para enxergar, seguindo o estruturalismo etnológico, nesta dualidade, a marca pela qual o homem se define e se posiciona, porque ele mesmo é a diferença entre natureza e cultura.
Como se percebe, o interesse de uma filosofia do símbolo não é insignificante, se for verdade, como tentamos mostrar, que o símbolo é o local de confluência e troca entre natureza e cultura. Considerar a relação natureza-cultura como o problema da modernidade não nega a existência de outros problemas, mas simplesmente o designa como o horizonte problemático de toda filosofia moderna. Também se admite que a filosofia anterior mal considera essa problemática e, portanto, que a cultura não é vista em si mesma como uma realidade independente e separada. Isso não significa que o pensamento humano ignore essa distinção. Mas a cultura, então, é vista preferencialmente como o prolongamento e desenvolvimento da natureza.
Essa concepção — a única normal, por sinal — apresenta-se sob diversas figuras: como a de Toth-Hermes nas tradições egípcias e gregas; a de Henoc na Bíblia; a de Ganesha entre os hindus; ou a de Lug entre os gauleses. «É ele, diz Platão, quem primeiro inventou o número e o cálculo, a geometria e a astronomia, sem falar no jogo de tabuleiro e nos dados, enfim, precisamente as letras da escrita» (Fedro, 274 c-d, Pléiade, vol. II, p. 74).
Secretário de Osíris, mestre do conhecimento, revelador da linguagem, da música, dos atos de toda ordem, sua magia domina a natureza, pois ele pode dar vida aos membros dispersos do esposo de Ísis. Essa operação define a essência mesma do símbolo e da cultura: a manifestação ou criação sendo concebida como o sacrifício do Logos, que dispersa seu corpo cósmico; e a cultura, o culto ou o símbolo como aquilo que restaura a unidade perdida, reúne o que está espalhado e restitui seu corpo ao Deus criador.
Todas essas figuras e as correspondentes nas diversas tradições religiosas expressam claramente a distinção entre cultura e natureza e a função da primeira em relação à segunda. Mas é necessário evitar enxergar nelas apenas uma tradução mitológica (e, portanto, inconsciente) dessa dialética entendida no sentido moderno. Não é o conceito moderno da dualidade natureza-cultura que constitui a verdade dessas figuras simbólicas. Elas têm sua própria verdade, totalmente oposta à visão moderna dessa problemática. Em particular, afirmam que a «cultura» é de origem divina — seja porque Deus mesmo a revelou e ensinou, seja porque um anjo (ou um «deus») a trouxe do Céu — algo que parece meramente «fantasioso», enquanto é racionalmente evidente que apenas uma gênese divina pode explicar, por exemplo, a origem da linguagem O que é verdadeiro para a linguagem também o é para muitas outras artes e conhecimentos, especialmente para a agricultura. De onde vêm as plantas cultivadas: trigo, cevada, milho, cenouras? Como se passou do trigo ao pão? «A primeira pátria dos vegetais mais úteis ao homem e que o acompanham desde as épocas mais remotas é um segredo tão impenetrável quanto o lar dos animais domésticos» (Humboldt, Ensaio sobre a geografia das plantas, citado por Jean Servier, O homem e o invisível, Laffont, p. 214). Por isso, todas as tradições atribuem origem celestial a essas plantas alimentares.]]. Além disso, afirmam também, algo igualmente estranho ao pensamento moderno, que a função da cultura, de natureza essencialmente sagrada, tem como fim trazer a multiplicidade exterior do relativo à interioridade unificante do Princípio 1. Com essas duas teses sobre a origem e o fim da cultura, as civilizações tradicionais demonstram suficientemente que entendem por esse termo algo completamente diferente, quase sem relação com a concepção atual.
- O que não significa uma aniquilação da criação como tal, mas ao contrário sua perfeita realização, ou seja, o acesso do criado à perfeição de ser compatível com sua natureza relativa; são, portanto, o “novo Céu” e a “nova Terra” que o Apocalipse anuncia (XXI, 1), perfeição que interpretamos como designando o estado “divino” da criação de que fala o primeiro versículo da Escritura: “No Princípio, Elohim criou o Céu e a Terra”. Seguimos aqui, em particular, a interpretação de João Escoto, para quem este versículo “não significa nada além da criação das causas primordiais, anteriormente a seus efeitos. O Pai cria essas causas em seu Filho único, que é chamado princípio; o termo céu designa as causas primordiais das essências inteligíveis e celestiais, e o termo terra designa as causas dos seres sensíveis de nosso universo corporal” (René Roques, Libres sentiers vers l’érigénisme, Edizioni de l’Ateneo, Roma, 1975, p. 137).[↩]