Jaspers: VERDADE

Karl Jaspers, Filosofia da Existência, trad. Marco Aurélio de Moura Matos. Imago, 1973.

VERDADE — a palavra tem uma magia incomparável. Parece prometer o que realmente conta para nós. A violação da verdade envenena tudo aquilo que se obtém pela violação.

A verdade pode causar dor e pode levar ao desespero. Mas é capaz — pelo fato meramente de ser verdade, independentemente do seu conteúdo — de oferecer uma satisfação profunda: a verdade existe, apesar dos pesares.

A verdadecoragem: se eu a captei em qualquer momento, a urgência em persegui-la sem descanso amplia-se.

A verdade dá apoio: eis aqui alguma coisa que é indestrutível, alguma coisa que está ligada ao ser.

Mas que pode ser essa verdade que tão poderosamente nos atrai — não as verdades determinadas particulares mas a verdade-em-si-mesma — eis aí a questão.

A VERDADE existe, pensamos nós, como se isto fosse evidente por sisi mesmo. Sustentamos e enunciamos verdades sobre as coisas, os acontecimentos e realidades que, para nós, são inquestionáveis. Mostramo-nos até confiantes em que a verdade, em última instância, triunfe no mundo.

Mas aqui fazemos a nossa abrupta parada: pouca coisa pode ser vista de uma presença de verdade em que se pode confiar. Por exemplo, as opiniões correntes são, na sua maior parte, expressões da necessidade de um certo tipo de amparo: as pesoas apegam-se a alguma coisa firme muito mais com a finalidade de se pouparem a maiores penas por terem que pensar do que enfrentam o perigo e o esforço de pensar incessantemente numa linha de mais ampla extensão. Ainda mais, a maior parte das coisas que se afirma é imprecisa, e a sua aparente clareza é primordialmente a expressão de interesses de ordem prática escondidos. Nas questões de ordem pública, há tão pouca confiança na verdade entre os homens que não se pode agir sem a ajuda de um advogado, com o fim de que a verdade possa prevalecer. A pretensão à verdade transforma-se em arma até mesmo para a falsidade. Se a verdade houver de prevalecer dependerá, parece, dos eventos favoráveis da sorte, não da verdade como tal. E, no final, tudo sucumbe diante do imprevisível.

Todos esses exemplos da falta de verdade nas situações psicológicas e sociológicas não devem afetar a verdade em si mesma se a verdade for auto-subsistente e separável da sua realização. Não obstante, mesmo a existência da verdade em si mesma pode tornar-se duvidosa. A experiência de mostrarmo-nos incapazes de concordar acerca da verdade — a despeito de uma incansável vontade de esclarecimento e de uma presteza aberta — especialmente quando o conteúdo dessa verdade é tão essencial a nós que tudo parece depender dela porquanto é a base da nossa — pode fazer com que duvidemos da verdade no sentido familiar de alguma coisa subsistente. Pode ser que a verdade que conta pela sua própria natureza, não seja passível de uma enunciação unívoca e unânime.

A verdade inquestionável que governa a minha vida parece falsa a outros. No nosso mundo Ocidental ouvimos pretensões conflitantes vindas de fontes essencialmente diferentes e o ruído ensurdecedor que ecoa através dos séculos à medida que explodem em ocorrências-de-massa.

Diante dessa situação, é-se inclinado a aceitar a proposição de que não existe a verdade. Não se permite que a verdade seja auto-suficiente; deriva-se-á de alguma coisa como condição de que só assim a verdade é verdade.

Em consequência, o pensamento tem vacilado através da sua história: primeiramente, a pretensão da verdade absoluta; depois, dúvida quanto a toda verdade e, juntamente com ambas, o uso sofisticadamente arbitrário da pseudo-verdade.

A questão da verdade é uma das mais estonteantes questões do filosofar. À medida que pensamos movidos por essa questão, o lampejo mágico da verdade torna-se obscurecido.
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CONFRONTADOS com essa confusão, imaginamos rapidamente a nós como tendo uma fundamentação segura: concebemos a verdade inequívoca localizada na validade das proposições elaboradas sob o apoio da experiência visual e da evidência lógica. A despeito de todas as sutilezas cépticas, não obstante encontramos os objetos das ciências metodologicamente purificadas. Através da nossa compreensão descobrimos a inteligibilidade compulsória e, a ela correspondendo, o assentimento de fato universal aos seus resultados da parte de cada ser racional que as compreende. Há uma esfera de exatidão estabelecida para a consciência-em-geral, uma esfera estreita mas vagamente limitada de verdade válida. A nossa altamente desenvolvida introvisão das conexões lógicas entre os significados das proposições — um campo de investigação científica tanto mais intensivo em proporção quanto cada vez mais mostra-se sujeito a técnicas matemáticas (na logística) — mesmo assim sempre acha que o rigor lógico cessa quando nos dirigimos aos fatos propriamente ditos. A verdade está nos pressupostos desta análise lógica; a verdade se torna real apenas pela força de seu conteúdo.

Este conteúdo é ou empírico — evidente como alguma coisa perceptível, mensurável, e assim por diante — em cujo caso é logicamente algo que somente podemos aceitar, ou carece desse poder obrigatório para impor-se a todo mundo, tendo, ao contrário, crescido de raízes que são diferentes em essência e que são as fontes desses conteúdos absolutos que sustentam a vida do homem — embora não toda a vida de uma mesma maneira — e que são também comunicados através das proposições.

Embora a “consciência em geral”, esta esfera das ciências, seja também a esfera em que as coisas se tornam claras para nós porque podem ser enunciadas, não obstante sua exatidão compulsória não é de forma alguma em si mesma a verdade absoluta. Dizendo melhor, a verdade emerge de todos os modos da realidade abrangente.

A verdade vitalmente importante para nós começa precisamente quando a obrigatoriedade da “consciência em geral” termina. Encontramos um limite ali onde a nossa existência e a existência do outro, embora ambas se achem visando à verdade como algo único e universalmente válido, ainda não reconhecem o fato de que a verdade seja uma e a mesma. Neste limite, ou entramos em conflito, onde a força e a astúcia decidem as coisas, ou então onde as fontes da que se aproximam umas das outras sem serem nunca capazes de se tornarem uma só e idênticas, se comunicam.

Nesses limites fala uma outra verdade. Um significado peculiar de verdade emerge de cada um dos modos da realidade abrangente que somos, não apenas da consciência-em-geral, que é o locus da introvisão necessária, mas da existência, do espírito e também da Existenz.
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COMO O CONHECIMENTO e a volição ao nível da existência, a verdade não tem nem validez universal nem certeza compulsória.

A existência é sempre particular e deseja preservar-se e estender-se; a Verdade é o que promove a existência (vida), o que funciona; a falsidade é o que a danifica, limita-a e a paraliza.

A existência quer a sua própria felicidade: a Verdade é a satisfação da existência que resulta da sua interação criativa com o seu meio ambiente.

A existência, como consciência ou como alma, manifesta-se e se expressa. A Verdade é a adequação com que a interioridade da existência é manifestada e a adequação da expressão e da consciência ao inconsciente.

Em suma: a existência capta a verdade como conduta apropriada, apropriada primeiramente para a preservação e incremento da existência, em segundo lugar, para uma satisfação perdurável — e em terceiro lugar, para a conformidade da expressão e da consciência ao inconsciente.

É este o conceito pragmático da verdade. Tudo aquilo que é, é enquanto pode ser percebido e usado, é matéria prima ,são meios e fins sem um fim último. A verdade não se acha em algo permanente e já conhecido, ou em algo cognoscível, ou em algo não-condicionado; acha-se ela em tudo que irromper aqui e agora na situação imediata e no que resultar. Exatamente como a existência em si mesma altera-se em conformidade com as diferenças na sua constituição e no curso do tempo mutante, assim também há apenas mudança, verdade relativa.

Como espírito, a verdade também não é universalmente válida para a comprovação da compreensão.

A verdade do espírito existe por virtude de sua qualidade de membro de uma totalidade auto-elucidante e auto-contida. Esta totalidade não se torna objetivamente cognoscível; pode ser apreendida apenas na ação de ser membro dessa totalidade, o que a dota de existência e de cognoscibilidade.

Na sua compreensão do ser, o espírito segue as ideias da totalidade que ergue-se imagificada perante ele, servindo de impulso para movê-la e de sistema metódico que traz coerência a seu pensamento. A verdade é aquilo que produz a totalidade.

Embora nós, sendo a consciência-em-geral, pensemos em termos de exatidão necessária; sendo existência, em termos do vantajoso e do ameaçador; e, sendo espírito, em termos do que produz a totalidade — nada disto ocorre em nós com a certeza de um evento natural. Antes, a maior parte do tempo terminamos numa atordoante miscelânea. Efetivamente, captamos resolutamente cada significado dado de verdade, e com uma consciência dos limites de cada significado da verdade, apenas na medida em que somos verdadeiramente nós mesmos. Em outras palavras: a verdade que vem de outra fonte, retira a pureza tão somente da verdade da Existenz.

A Existenz surge para si mesma como consciência-em-geral, como existência e como espírito; e pode por-se em contraste com os seus modos. Mas não pode nunca assumir uma posição fora de si mesma, não pode conhecer-se a si mesma e, ao mesmo tempo, estar em posição de identidade com aquilo que conhece.

O que eu mesmo sou, portanto, sempre permanece um problema, e não obstante a certeza que sustenta e realiza tudo o mais. Meu eu autêntico não pode nunca tornar-se uma posse minha; permanece minha potencialidade. Se eu o conhecesse, não seria mais ele, dado que me torno interiormente consciente de mim mesmo na existência temporal apenas como uma tarefa. A verdade da Existenz pode, portanto, permanecer simples e não-condicionalmente em si mesma, sem precisar conhecer a si mesma. Nas mais poderosas Existenzen, sente-se esta parcimônia e esta resignação — que não alcança nenhuma imagem, nenhuma representação visível de sua própria natureza.
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ESTA RESUMIDA APRESENTAÇÃO mostra a pluralidade de significados da verdade. Passaremos, agora, a comparar estes significados; cada um de per si, visto sob esta luz, tem a sua fonte adequada num modo particular da realidade abrangente.

1. A verdade ao nível da existência é uma função da preservação e da extensão da existência. Prova-se a si mesma pela utilidade no plano da prática.

A verdade ao nível da consciência-em-geral tem validez como exatidão compulsória. Existe em virtude de si mesma, e não depende de nada a que serviria de meio. Prova-se a si mesma pela evidência.

A verdade ao nível do espírito é convicção. Prova-se a si mesma na realidade através da existência e do pensamento, na medida em que se submete à integralidade das ideias, confirmando, deste modo, a sua verdade.

A Existenz experimenta a verdade na . Do momento em que não sou mais resguardado por uma efetividade certificadora de verdade pragmática, por uma certeza demonstrável da compreensão, ou por uma protetora totalidade do espírito, então esbarro com uma verdade no seio da qual irrompo de toda imanência mundana. Somente dessa experiência de transcendência retorno, efetivamente, ao mundo, vivendo agora tanto nele quanto além dele, e somente agora, pela primeira vez, eu mesmo. A verdade da Existenz prova-se como autêntica consciência da realidade.

2. Cada modo da verdade é caracterizado por aquele que enuncia através dele em qualquer tempo. O modo da verdade é dado juntamente com a realidade abrangente, dentro da qual nos achamos em comunicação.

Na existência uma vida plena de objetivos e auto-interessada ilimitadamente fala. Submete tudo à condição de que deve incrementar a sua própria existência. Sente simpatia e antipatia somente nesse sentido e entra em comunidade apenas à base deste interesse.

A comunicação a este nível é conflito ou expressão de uma identidade de interesses. Não é comunicação não-limitada, mas rompe-se para se acomodar aos seus próprios desígnios e utiliza-se de astúcia contra o inimigo e contra os possíveis inimigos nas pessoas dos amigos. Está constantemente preocupada com os efeitos práticos do que é dito. Deseja persuadir e sugerir, fortalecer ou enfraquecer.

Na consciência-em-geral um ponto intercambiável de meros pensamentos fala. É o pensamento-em-geral, não o pensamento de um indivíduo particular ou da eu-idade da Existenz.

Sua comunicação efetiva-se por argumentação racional. Visa ao universal e procura a validade formal e a correção necessária, imperiosa.

Ao nível do espírito, dá-se a comunicação na atmosfera de uma totalidade concreta e auto-completante a que tanto o que fala como o que ouve pertencem.

Na seleção, na ênfase e na relevância daquilo que é dito, a sua comunicação é guiada pela ideia — em conexão constante com o significado da totalidade.

Na existenz, o homem que é ele mesmo fala. Fala a uma outra Existenz como um insubstituível indivíduo fala a um outro indivíduo.

Sua comunicação verifica-se numa luta amorosa — não pelo poder mas sim pela abertura — em que todas as armas se entregam mas em que todos os modos da realidade abrangente aparecem.

3. Em cada modo da realidade abrangente que somos, a verdade está oposta à não-verdade, e em cada uma dessatisfação especifica finalmente irrompe, o que pressiona sobre uma outra verdade mais profunda:

Na existência, há o regozijo da vida que se auto-rea-liza e a dor de estar-se perdido. Irrompendo em oposição a ambas, todavia, acha-se a dessatisfação com a mera existência, o tédio da repetição, e o medo na situação-limite do fracasso completo: toda existência contém os germes de sua destruição. A felicidade ao nível da existência não pode ser imaginada concretamente ou mesmo pensada como uma possibilidade não-contraditória. Não há nenhuma felicidade na duração e na permanência, nenhuma felicidade que, quando se torna clara para si mesma, continue a satisfazer.

Na consciência-em-geral, há o poder necessário, imperioso, da correção obrigatória, a não-disposição de tolerar e, desta forma, o repúdio à incorreção. Oposto a ambos, há o tédio à correção, porquanto é sem fim e, em sisi mesmo, não-essencial.

Em espirito, existe a profunda satisfação na totalidade e o tormento da contínua incompletação. Irrompendo em oposição a ambos, acha-se a dessatisfação com a harmonia e a perplexidade resultante quando as totalidades se esfacelam.

Na existenz há e desespero. Oposto a ambos, o desejo pela paz da eternidade, em que o desespero é impossível e a se torna uma visão, vale dizer, a presença perfeita da perfeita realidade.
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ATÉ AQUI, no nosso exame relativo aos vários modos do significado da verdade, os diferentes modos simplesmente postam-se lado a lado e em lugar algum encontramos a verdade em si mesma.

Mas, os modos do significado da verdade não são, de maneira alguma, um agregado não-relacionado. Acham-se em conflito: em assaltos recíprocos e possíveis uns contra os outros. Cada verdade cai na não-verdade quando viola a integridade de seu próprio significado e passa a ser dependente e distorcida por uma outra verdade.

Um único exemplo deve ser bastante: a questão de saber-se em que extensão a verdade da consciência-em-geral — a imperiosa certeza no conhecimento de tudo aquilo que pode ser experimentado — é útil, ou seja, verdadeira, para a existência. Se o conhecimento desta verdade universalmente válida tivesse sempre consequências também benéficas na existência, não haveria qualquer divisão e, assim, nenhum conflito possível entre a verdade da existência e a verdade do conhecimento universalmente válido. Mas, na verdade, a existência subverte constantemente a verdade universalmente válida — ocultando-a, deslocando-a e suprimindo-a. Não está, de maneira nenhuma claro, se ao assim proceder, a longo prazo serve aos interesses da existência ou se provoca a sua definitiva destruição. Seja como for, a aceitação completa e a comunicação da verdade do conhecimento universalmente válido é, a princípio, quase sempre também uma ameaça à própria existência do indivíduo. A verdade da correção imperiosa torna-se não-verdade na existência. Para uma auto-isolante vontade-de-existência, a verdade pode aparecer como uma sentença a ser rejeitada. Inversamente, os interesses práticos se tornam uma fonte de falsidade, na medida em que no meio da consciência-em-geral eles me iludem ao me induzirem a pensar que as coisas são da maneira que eu gostaria que elas fossem.

Desses conflitos adquirimos um sentimento relativamente à unicidade de cada significado individual de verdade — e em cada conflito que apreendemos uma fonte particular de possível falsidade. Se, então, tentarmos ir além desses conflitos e buscarmos a verdade em si mesma, nunca a encontraremos ao darmos precedência a um modo da realidade abrangente como a verdade autêntica. Sucumbimos, alternadamente, a preconceitos que absolutizam uma realidade abrangente. Desta forma, absolutizamos a existência como se favorecer a vida fosse a última palavra e pudesse ser tomado como absolutamente não-condicionado; ou absolutizamos a consciência-em-geral, a compreensão, como se pudéssemos possuir o ser em sisi mesmo num conhecimento correto e não meramente atingirmos uma perspectiva — um raio de luz irrompendo nas trevas — dentro da realidade abrangente; ou absolutizamos o espírito, como se uma ideia fosse real e auto-suficiente; ou absolutizamos a Existenz, como se a eu-idade (selfhood) pudesse existir em isolamento, enquanto que, na medida em que é ela mesma, vem de uma outra, e se vê em relação com uma outra. A verdade não pode mais permanecer verdade no isolamento de um único de seus significados.

O fato de que todos os modos do significado da verdade surjam em conjunto na vida humana efetiva e de que o homem exista no seio de todas as fontes de todos os modos, nos impele para uma única verdade, em que nenhum modo da realidade abrangente fica perdido. E somente a clareza acerca da multiplicidade de significados da verdade conduz a questão da verdade única àquele ponto em que a profundidade de visão se torna possível e em que uma resposta trivial — na presença de uma urgência intensa do Um — se torna impossível.

Se a verdade única estivesse presente a nós, teria de permear todos os modos da realidade abrangente e consertá-los todos em conjunto numa unidade vigente.

É condição fundamental da nossa realidade que, para nós, esta unidade não é conseguida por meio de uma concebível harmonia do todo, em que cada modo da realidade abrangente teria o seu lugar suficiente assim como o seu lugar limitado. Em vez disto, permanecemos em movimento, vemos cada uma das formas harmoniosas de verdade mais uma vez destruída e devemos, por conseguinte, estar sempre à procura, mais adiante, desta unidade. Nosso conhecimento nos levaria, equivocadamente, por vezes, a nos insular a nós mesmos dentro da consciência do que, a qualquer tempo determinado, tomamos como sendo real e verdadeiro. Mas, no curso do tempo, novas experiências e novos fatos acercam-se de nós. Nossa consciência conhecedora, também, deve transformar-se segundo maneiras imprevisíveis. Porquanto — como afirmou Hegel — a verdade acha-se em liga com a realidade contra a consciência.

A verdade única seria accessível apenas em associação com o seu conteúdo — não como uma espécie de verdade formal — e consequentemente numa forma que reúne todos os modos da realidade abrangente conjuntamente.

Não podemos, portanto, captar diretamente a verdade única num todo conhecido. Captada diretamente, a verdade é expressa formalmente, talvez como o patentea-rnento do outro que vem nos encontrar, e além disso como o ser que é o que pode ser apenas através da sua manifestação; ou seja, como uma manifestação que é simultaneamente a realização desse ser: eu-idade/egoidade.

Mas esta verdade formalmente expressa torna-se a verdade para nós apenas conjuntamente com o conteúdo da realização do ser. E por causa da natureza da nossa existência temporal este conteúdo se torna accessível a nós como um e todo apenas em forma histórica. Talvez nos cheguemos o mais perto possível desta forma quando implacavelmente nos desfazemos das cascas tradicionais da nossa compreensão e nos colocamos face a face com as formas extremas de uma realização de unidade de todos os modos da realidade abrangente.

São precisamente estes fenômenos que, medidos em confronto com a validade e com a liberdade do conhecimento racionai necessariamente válido, parecem-nos uma ameaça a toda verdade: exceção e autoridade. A exceção, pela sua efetividade, destrói a verdade permanente e universalmente válida. E a autoridade, pela sua efetividade, acorrenta cada verdade particular ao anunciar e exigir uma autonomia absoluta.

A elucidação dos modos da realidade abrangente, e a experiência de conflitos e de movimento incessante, demonstraram imperiosamente que a verdade integral, como universalmente cognoscível e sob uma forma única, não é nem suficiente nem efetivamente presente.

Esta situação básica da existência temporal torna possível a efetividade da exceção como verdade original em oposição à universalidade fixa — e exige a autoridade como a verdade da realidade abrangente em forma histórica, em oposição à pluralidade arbitrária da intenção e da vontade. A exceção e a autoridade precisam, no momento, ser esclarecidas.
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O HOMEM que é uma exceção é uma exceção, primeiramente, à existência universal, quer apareça sob a forma de ethos, de instituições e de leis específicas do seu meio, ou de saúde do corpo, ou de qualquer outra forma de normalidade. Em segundo lugar, é ele uma exceção ao que é universalmente válido, imperioso e correto pensamento da consciência-em-geral. Finalmente, é ele uma exceção em relação ao espírito, a que pertence como membro de um todo. Ser uma exceção é efetivamente irromper fora de todas as espécies de universalidade.

A exceção experimenta o seu status excepcional, e, no final, o seu isolamento, o que para ela é irresoluvelmente um destino ambíguo:

A exceção deseja o universal que ela não é. Não deseja ser uma exceção, mas antes subordina-se ao universal. Aceita seu caráter de exceção em sua tentativa de imaginar o universal, uma tentativa que se verifica não com um élan natural, mas sob auto-degradação e, desta forma, fracassa. A exceção compreende a si mesma como exceção apenas através do universal. Porque é exceção, sua compreensão, em seu fracasso, capta o universal positivo mais energicamente. Quem pensa a partir das profundidades da origem, amando aquilo que ele mesmo não é, apenas torna o que compreende mais claro e mais brilhante; tão claro e tão brilhante que aquele que obteve êxito e passou a ser aquilo que compreende, nunca poderia tornar essa compreensão comunicável.

Mas, a despeito dessa subordinação ao universal, ser uma exceção em si mesma também se torna a tarefa de encontrar um caminho único de realização que se faz necessário para ir de encontro ao universal, mesmo contra a sua vontade. Pode ele perder o mundo a serviço da transcendência, e pode virtualmente desaparecer em consequência de resoluções negativas (sem profissão, sem família, sem qualquer base). Ao proceder desta maneira, pode ser a verdade sem ser um modelo, sem apontar um caminho para os outros por meio de seu próprio ser. É como se fosse um farol ao longo da estrada, iluminando o universal da situação do não-universal.

A exceção pode comunicar-se: por isto mesmo, sempre retorna ao universal. Se estivesse certa de uma verdade absolutamente incomunicável, seria uma verdade de que ninguém poderia compartilhar. Então, a exceção seria como se não existisse de forma alguma. Porquanto sua comunicabilidade é uma condição de sua existência para nós.

Se, recapitulando, perguntarmos agora o que é a exceção, que achamos filosoficamente tão importante, a coisa nos escapa. Excepcionalidade não é uma categoria genérica que possa ser usada para definir uma pessoa. A palavra visa a um conceito de possibilidade que seja uma fonte de verdade, passando através de todos os modos da realidade abrangente e ficando fora de qualquer definição, absolutamente. É como se fosse a abrangência de tudo aquilo que abrangesse, não obstante não absoluto em sisi mesmo, mas antes achegando-se a nós em concretude histórica e, ao mesmo tempo, repelindo-nos à medida que iluminasse, remetendo-nos para nós mesmos. Por conseguinte, não pode ser objetivamente examinada como um todo, nem discernida objetivamente, nem utilizada como ponto de partida de uma justificação. Podemos perceber a exceção ao sentirmos o impacto de sua verdade na nossa veracidade; mas, ao mesmo tempo, podemos deixar de vê-la se tentarmos contar com ela como se fosse algo conhecido. Tudo aquilo que na exceção se torna objetivado é ambíguo tanto para nós quando para a própria exceção.

Finalmente, se perguntarmos quem é uma exceção e quem não o é, a resposta deve ser: a exceção não é meramente uma ocorrência fronteiriça rara — como nas figuras mais extremas e conturbadoras da alma, como Sócrates — mas é a possibilidade sempre presente para qualquer Existenz. Mas a sua própria natureza, a historicidade, contém a exceção que se tornou inseparavelmente una com o universal. Constitui uma característica da verdade da Existenz que, através de todas as formas e modos de universalidade, é sempre também uma exceção.

A exceção genuína, portanto, não é uma exceção arbitrária. Isto faria com que fosse um mero apóstata. Antes, em sua existência temporal está ele inseparavelmente vinculado à verdade da realidade abrangente. O que foi a princípio tomado em situações extremas como o mais alheio e, por conseguinte, como uma exceção, somos nós mesmos — é qualquer um na medida em que for um ser histórico, e ninguém na medida em que toda verdadeira exceção acha-se relacionada com o universal que a elucida. A verdade é sempre apreendida em abertura à exceção e com vistas a ela, mas de tal modo que aquele que apreende não deseja ser uma exceção, subordinando-se ao universal; ele aquiesce em ser o universal, sabendo de si mesmo que é desimportante em face do sacrifício feito pela exceção.
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À MEDIDA QUE penetramos na área da verdade encontramos no seu seio efetividade concreta, encontramos exceção e autoridade. A exceção questiona todas as coisas, é surpreendente e fascinante. A autoridade é a plenitude que dá apoio, que protege e que inspira confiança.

Descrevemos a autoridade assim:

A autoridade é a unidade de verdade que vincula todos os modos da realidade abrangente em um só e que nos aparece em forma histórica como universal e como um todo. Mais precisamente: a autoridade é a união histórica do poder da existência, que compele à certeza e à ideia, com a fonte da Existenz que, nesta união, sabe-se a si mesma relacionada à transcendência.

A autoridade é, por conseguinte, aquela forma de verdade em que a verdade não é nem exclusivamente conhecimento universal nem exclusivamente comando externo nem exclusivamente ideia de um todo, mas tudo isto de uma só vez. Desta forma, embora a autoridade na verdade venha como um comando externo e uma compulsão, ao mesmo tempo ela fala de dentro. A autoridade é uma pretensão baseada na transcendência que é obedecida ainda mesmo pela pessoa que, a qualquer tempo determinado, ordena a partir de suas bases.

A autoridade expressa em tais fórmulas, todavia, não pode existir no tempo numa forma única e universal para cada um sem se tornar superficial, sem degenerar-se em mero poder no mundo da existência, tornando-se violenta e destrutiva. Melhor ainda, toda autoridade tem forma histórica. Assim, a verdade da autoridade nunca pode ser tornada suficientemente transparente, nem o seu conteúdo pode ser estabilizado, cientificamente, por generalização racional. Antes, engloba tudo aquilo que for cognoscível sem destruí-lo.

O caráter incondicionado da autoridade consiste, desta forma, em que seja uma unidade histórica de verdade para a pessoa que por ela viva. Segundo os fundamentos colocados no início, a autoridade abarca o passado histórico que fala no presente, em imagens e em símbolos, em instituições, em leis e em sistemas de pensamento — tudo isto por assimilação histórica do presente singular que é idêntico a mim mesmo.

Mas esta calma de autêntica autoridade que parece estar presente nessas representações abstratas não existe. Porque a autoridade é histórica, e, em consequência temporal, acha-se em constante tensão, e em movimento devido a esta mesma tensão.

Primeiramente, há tensão entre a autoridade que deseja a estabilização eterna (que, se pudesse atingir seu objetivo, roubaria a verdade de toda vida) e a autoridade que irrompe para fora de qualquer forma fixa a fim de criar-se a si mesma sob nova forma (que, se tivesse de movimentar-se sem direção, transformaria todas as coisas em caos). A ordem acha-se enraizada no que uma vez irrompeu fora da ordem; a exceção destrutiva se torna fonte de nova autoridade.

Em segundo lugar, há tensão no interior da pessoa individual entre a autoridade e a liberdade. Junto às raízes de seu próprio ser, o indivíduo deseja redescobrir, como sua própria verdade, o que vem a ele como autoridade externa. Descreveremos este processo de liberação na autoridade.

A princípio, a autoridade aceita como é a única fonte de educação genuína que afeta a própria natureza do homem. Nesta finitude, cada indivíduo começa sob nova forma. Para a sua maturação depende da autoridade a fim de fazer adequar o conteúdo que pode ser transmitido pela tradição. À medida que cresce dentro da autoridade, a arena em que por todos os lados encontra o ser, abre-se para ele. Se crescer sem autoridade, virá na verdade a possuir conhecimento, dominará a fala e o pensamento, mas permanecerá à mercê das possibilidades vazias da esfera em que o Nada olha-o na face de olhos arregalados.

No processo de maturação, o indivíduo atualiza sua própria origem em seu próprio pensamento e na sua própria experiência. Os conteúdos de autoridade vêm vivos, na medida em que ele os torna seus próprios. Se isto não acontece, permanecem estranhos; levantando-se contra eles surge a liberdade, que só admite o que pode assimilar para dentro de si mesmo. A liberdade, que veio a ser por agarrar-se à autoridade, pode então resistir à autoridade (em aparições determinadas). Tendo tomado posse de si mesmo por meio da autoridade, o indivíduo ultrapassa-a, deixa-a para trás em crescimento. Um conceito de fronteira torna-se possível, de um homem maduro e autônomo que continuamente se lembra, que nada esquece, que configura sua vida a partir das fontes mais profundas; um homem capaz, apesar disso, com a mais ampla visão, de atuar com decisiva confiança; alguém que, à base da autoridade que o produziu, é fiei a si mesmo. Durante o seu desenvolvimento precisou de apoio; viveu segundo o respeito e a obrigação; no que não pudesse ainda decidir à base de sua origem, valia-se das decisões que os outros tomavam por ele. No processo gradativo de sua liberação, uma fonte interior veio a crescer rumo à clareza e ao poder resoluto até que ouvisse a verdade em sisi mesmo com plena decisão. Agora, que fora libertado, apoderou-se desta verdade para ele mesmo, ainda em oposição às exigências da autoridade externa. Para ele a liberdade tornou-se a necessidade da verdade que ele próprio capturou; a arbitrariedade foi superada. A autoridade é a transcendência que internamente experimentou e que fala através de sua eu-idade.

Mas esta fronteira do homem absolutamente livre e autónomo não pode nunca ser atingida de uma vez por todas. Cada indivíduo fracassa, neste ou naquele momento; nunca se transforma no homem ideal. Por conseguinte, independentemente de quantos degraus haja subido, ao longo do caminho rumo à liberdade madura, o indivíduo honesto não pode livrar-se da tensão entre a sua liberdade e a autoridade; sem ela, seu caminho pareceria incerto e instável, a ele. Os conteúdos de sua própria liberdade bradam pela confirmação por parte da autoridade; ou então bradam pela resistência à autoridade — provar a si mesmos nesta resistência torna-se um sinal da possível verdade deles, sem o qual não seriam diferentes dos impulsos arbitrários e de acaso. A autoridade ou fornece uma força confirmadora ou, através da resistência, dá forma e apoio e coíbe a arbitrariedade. O indivíduo que pode ajudar-se a si mesmo é precisamente aquele que deseja que a autoridade exista no mundo.

Mesmo se vários indivíduos fossem capazes de adquirir genuína liberdade na comunidade, ainda assim permaneceria a vasta maioria que, nessa caminhada rumo à liberdade, cairia simplesmente vítima do caos e do poder de seus impulsos-de-existência. Portanto, a autoridade permanece como necessária na realidade da comunidade que abarca todos os homens, como a forma de verdade que pretende apoiar toda verdade; ou, se for perdida, a autoridade se reconstitui a si mesma, a partir do caos resultante, numa forma fatídica.

A apresentação desses movimentos que surgem da tensão constante leva-nos retroativamente à autoridade englobadora. A autoridade é o enigma corporificado da unidade da verdade em histórica realidade. A concorrência da verdade de todos os modos da realidade abrangente com o poder mundano e com o pináculo da excelência humana que veiculam essas verdades e que têm este poder é a essência da autêntica autoridade.

Conheço a autoridade na medida em que cresci no seu seio. Posso viver através dela, mas nunca deduzi-la ou classificá-la. Posso penetrá-la historicamente, mas nunca captá-la do exterior.

Esta autoridade não pode ser explorada. Não a confronto como alguma coisa totalmente outra. Mas nunca percebo o conteúdo de uma autoridade que eu apenas veja do exterior e em cujo seio não tenha eu vivido — nunca a visualizo como autoridade.

A que autoridade devo o meu amadurecimento em eu-idade, que tipo de autoridade captei e a que tipo de autoridade me devotei (embora, talvez, apenas a seus remanescentes) é questão do meu destino transcendentalmente estruturado. Mas não é possível comparar autoridades conscientemente, comprová-las, e subsequentemente escolher qual delas é a verdadeira ou a melhor. Ao tomar a autoridade como autoridade, já a escolhi. Nem é possível — à força da introvisão filosófica (insight) — procurar a verdadeira autoridade na continuidade que se estende da origem ao presente, querê-la e constituí-la como um objetivo.

Não obstante, ao filosofar posso explicar como a autoridade declina e gradativamente perde o seu poder. A autoridade se torna não-verdadeira quando esses modos individuais da verdade separam o que deve existir em conjunto — existência, certeza imperiosa ou espírito — e tenta tornar-se autônoma, usurpando a autoridade para eles próprios; quando ela se torna um mero poder em existência sem vivificar todas as fontes de verdade; quando pretende a validade meramente por virtude da posição dos indivíduos singularmente considerados que não têm nenhum poder neste mundo, que não fazem sacrifícios e não assumem riscos necessários para vencer e para manter a autoridade; quando eu abro mão da liberdade da eu-idade e à força de uma suposta introvisão (insight) “livremente renuncio à minha liberdade”; quando atuo em obediência impensada em iugar de me entregar às profundidades da autoridade.
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EM SUA EFETIVIDADE HISTÓRICA, a exceção e a autoridade são a insondável realidade abrangente. O que revelam parece sem sentido e censurável à mera compreensão: a verdade una e a natureza humana una não existem; a verdade, para os homens, existe no tempo e é, por conseguinte, histórica, — portanto uma tarefa continuamente ameaçada.

Quando ocorrem, a verdade autorizada e a verdade enunciada pela exceção são a verdade mais impressionante e majestosa — e quando não estão presentes, os homens sentem a sua nostalgia da maneira mais desesperada, com todo o seu ser. Apenas onde os homens escondem o que é originário e intrinsecamente valioso por meio de uma clareza espúria da verdade meramente correta do entendimento esta realidade abrangente da verdade efetivamente desaparece. Mas é apenas nesta realidade que conheço a mim mesmo como Existenz.

A exceção e a autoridade levam ao terreno da verdade que não mais pertence apenas a um modo da realidade abrangente mas, penetrando e surgindo em todos eles, pode constituir uma unidade. Nesta unidade, os conflitos que surgem da luta entre os modos da realidade abrangente parecem momentaneamente ser resolvidos — não violentamente por uma única realidade abrangente que ganhe preeminência, mas através da transcendência, que parece falar com o Único em todos os modos da realidade abrangente. Isto não é uma harmonia dos modos da realidade abrangente, mas uma fusão momentânea dentro do Único que ainda, na verdade, permite à tensão persistir e dá lugar a novas rupturas.

Embora absolutamente opostas uma à outra, a exceção e a autoridade são da mesma classe como indicadores do terreno da verdade. Caracterizemos o elemento comum em sua polaridade, mais uma vez:

1. Estão fundamentados na transcendência. Onde apareçam, dão testemunho da transcendência, certeiramente. Sem uma relação com a transcendência, não há nenhuma exceção existencial e nenhuma autoridade genuína.

2. Ambas são incompletas. Acham-se em movimento, quase que em auto-anulação em que, em seu momento próprio, emergem da tensão como a verdade una.

3. Ambas são históricas, sempre particulares e não-intercambiáveis. A verdade original que contêm não pode, desta maneira, ser imitada ou repetida. Mas, desde que historicamente enfeixam e abrangem todas as coisas, acham-se na sua concentração histórica abertas em todas as direções.

4. Ambas contêm a verdade que escapa à configuração num objeto observável e cognoscível. Se são objetivamente construídas, como um princípio de dedução racional, a exceção e a autoridade são constringidas, escamoteadas da sua vida e da sua verdade. Imediatamente as perco se as constituo como objetos do meu planejamento e da minha ação intencionais. As palavras “exceção” e “autoridade” parecem denotar fenômenos sem ambiguidade. Mas o significado destas palavras se refere a um transcendente em que o fundamento da verdade que abrange todas as coisas numa única se torna presente. Nem a poesia nem a filosofia dominam esta verdade. A poesia toca a fronteira em que aquilo a que dá forma não é a derradeira interioridade com que está realmente preocupada. A filosofia toca a fronteira a que o seu pensamento nunca é idêntico ao ser da verdade em si mesma, embora a procura da verdade seja o objetivo derradeiro do filosofar.
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QUANDO SE TENHA votado à verdade racionalmente cognoscível na forma da ciência concreta — quando se tem imaginado, além do mais, o significado da verdade em que efetivamente já se viveu, dentro dos modos da realidade abrangente — e quando, finalmente, se tem percebido a forma da verdade na exceção e na autoridade, está-se caminhando, a passos regulares, de volta à realidade.

Mas filosoficamente não se alcança o derradeiro, tanto pelo choque dado pela exceção quanto pela calma dada pela autoridade.

Viver não-interrogativamente no seio da autoridade é impossível para quem quer que tenha, realmente, filosofado. Uma coisa é viver no seio da autoridade, e outra muito diversa pensar criticamente seu caminho na direção dela. Se eu vivo no seio da autoridade, a verdade existe, em ingênua simplicidade; se penso o meu caminho em sua direção, todavia, é infinitamente complexa: se se tenta dar expressão racionalmente adequada à efetividade histórica da autoridade, nenhuma análise racional faz justiça a este esforço. Não obstante, à medida que se amadurece no filosofar, o pensamento acha-se inseparavelmente ligado com a vida na autoridade.

Este filosofar não pode deduzir a autoridade. O fato de eu acreditar numa autoridade tem a sua fonte na totalidade da realidade abrangente; se devo acreditar nela, nunca poderá ser provado. A elucidação da autoridade em geral nunca justifica uma autoridade historicamente determinada e concreta.

O pensamento filosófico ainda não se silencia na presença da exceção e da autoridade, todavia. Na verdade, o paradoxo surge no sentido de que a autoridade requer justificação, dado que toda justificação anula-a como autoridade no ato de justificá-la. Mas o pensamento filosófico não apenas solapa as deduções que se tornam falsas; pode também apresentar de maneira a mais clara e a mais pura o que vem da origem.

A estrada que não se interrompe na presença da exceção e tía autoridade, mas que as penetra — a estrada da verdade filosófica — é chamada Razão (NA: Os filósofos alemães de há multo já fizeram uma distinção radical entre entendimento e razão — Verstand e Vernunft. Mas a diferença não penetrou na linguagem ordinária. O significado profundo da palavra razão deve ser continuamente atada recapturado.). Em lugar de possuir, conclusivamente, a verdade em quaisquer das formas discutidas até aqui e de exibir a verdade em seu conteúdo, terminaremos por falar acerca da razão.

Saber o que seja razão, realizando-a, tem sido sempre e sempre será a tarefa específica da filosofia.
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A CARACTERÍSTICA BÁSICA da razão é a vontade de unidade. Mas tudo está em saber-se em que consiste tal unidade. É decisivo para a verdade que a unidade seja capturada como una, única, uma unidade efetiva, e não como uma verdade que ainda deixe alguma coisa fora dela. Em toda captação prematura e parcial da unidade, nunca se atinge ou já se perdeu a verdade,

Mostramos que a verdade não é una, porquanto a exceção irrompe dela, e porque a autoridade imagina a verdade apenas em forma histórica. Mas, na medida em que a razão esteja presente, o impulso de ultrapassar a multiplicidade rumo à verdade universal una permanece não-diminuído, a despeito do espetáculo da exceção e a despeito da obediência à autoridade:

O caminho para capturar adequadamente esta verdade una no mundo da consciência-em-geral, ao cabo de contas, como cognição correta e como conduta correta segundo o conhecimento intelectual imperioso deste mundo, é intransponível. Se me confino a este caminho, perco a verdade por que vivo.

A razão é frequentemente confundida com o entendimento porque não pode dar um único passo sem o entendimento. Mas, dentro do impulso da cognição intelectual (Verstandeserkennen) — às unidades parciais do nível em que as proposições necessárias são válidas — acha-se escondido o impulso do entendimento para esta unidade mais profunda para que a unidade do entendimento é apenas um meio. O pensamento do entendimento ainda não é, em sisi mesmo, de forma alguma, o pensamento da razão.

A razão busca a unidade, mas não qualquer unidade meramente pela unidade. Busca o Uno que contém toda a verdade. É como se a razão trouxesse o Uno de uma distância inatingível e o colocasse presente como força de atração que ultrapasse todas as divisões.

No nosso enfocamento desta unidade a razão realiza um papel unificador em todas as situações. A razão procura trazer tudo de volta a partir da dispersão da indiferença mútua para a inter-relacionalidade dinâmica. Do declínio da alienação mútua, a razão deseja trazer tudo de volta para a relação com tudo o mais. Cada carência de relação tem de ser ultrapassada. Nada tem de perder-se.

O poder unificador da razão acha-se em atuação até mesmo agora nas ciências como impulso para atravessar qualquer limite de qualquer ciência particular, como busca sistemática das contradições, das relações, das complementações, como ideia da unidade de todas as ciências.

A razão pressiona para além desta unidade do conhecimento científico rumo a uma unidade de realidade abrangente integral. É a razão que elucida os modos da realidade abrangente, que então impede o seu isolamento e pressiona rumo à união de todos os modos da realidade abrangente.

Portanto, a razão diz respeito ao que é estranho segundo os padrões do pensamento científico. Volta-se — esperando a verdade — para a exceção e a autoridade. Mas a razão não pára nem mesmo neles, como se tivesse atingido o seu objetivo. Comparadas ao desafio do Uno, até mesmo a exceção e a autoridade são provisórias; pertencem à existência temporal, e são por ela compelidas. Mas a razão não pode descansar em nada provisório, independentemente de quão grandioso possa parecer.

A razão é atraída até mesmo pelo que é de natureza mais diversa, mais estranha. Deseja convergir para o ser lúcido, dotar de linguagem, e guardar contra a desaparição — como se nada fosse, até mesmo o que, rompendo a lei diurna, faz com que a paixão noturna seja uma realidade através da auto-destruição. A razão empurra rumo a onde quer que houver uma fratura da unidade, a fim de, dentro desta ruptura, ainda captar a sua verdade e de obstar uma ruptura metafísica, a desintegração do próprio ser, nesta fragmentação. A razão, fonte da ordem, acompanha tudo aquilo que destrói a ordem; permanece paciente — incessante e infinita — em face de tudo que seja estranho, antes da irrupção vinda de fora ou do fracasso vindo de dentro.

[NT: Jaspers usa a expressãopaixão noturna” e “lei diurna para referir aos elementos voluntarísticos e racionais da vida, respectivamente. São mais ou menos equivalentes aos termos usados por Nietzschedionisíaco e apolíneo.]

A razão é, portanto, a total vontade de comunicação. Tende a inclinar-se rumo a, e a preservar, tudo que possa ser expresso em linguagem, tudo que existe.

A razão busca o Uno por meio da honestidade que, em contraste com o fanatismo em busca da verdade, possui uma abertura ilimitada e uma ilimitada viabilidade para o questionamento; e por meio da justiça, que quer que se deixe toda coisa originária contar como ela mesma, até mesmo fazendo com que soçobre nos seus limites.

A razão, como conteúdo, não é fonte adequadamente falando. É como a fonte que parece irromper de uma faceta da realidade abrangente pura e simples — para irromper dela de tal maneira que todas as origens de todos os modos da realidade abrangente convergem rumo à sua abertura, para serem relacionadas ao Uno e, assim, vinculadas umas às outras.

Desta maneira, a razão aponta para a fonte da razão: tanto para o Uno inatingível que atua através da razão quanto para outras fontes que se tornam perceptíveis por meio dela.

A razão é a firme caminhada em direção ao Outro. Torna possível a junção universal e o envolvimento universal, e uma audição ubíqua em relação àquilo que fala e àquilo que faz a própria razão falar em primeiro lugar, antes de mais nada.

Mas a razão não é indiferentemente tolerante a todas as coisas que encontra; é, antes, uma preocupação receptiva e aberta. Elucida não apenas para conhecer; permanece um questionar que se parece com um cortejar. A razão nunca se transforma em conhecimento possessivo que necessariamente limita e fixa-se a si mesmo, mas permanece uma abertura ilimitada.

Em sua luta pelo Uno, a razão mostra-se não somente capaz de perceber e de se tornar envolvida em realidade, como põe em movimento tudo aquilo em que toca. Porque questiona e confere linguagem, cria o desassossego. Desta forma, a razão torna possível o fato de todas as origens se desdobrarem, se abrirem, tornarem-se claras, encontrarem o discurso e se relacionarem. Torna possível ao conflito genuíno e à luta surgirem no seio e entre os modos da realidade abrangente e se tornarem fonte de novas experiências do Uno.

Ligada e sustentada pela Existenz, sem a qual desapareceria, a razão à sua vez torna possível à verdade da Existenz imaginar-se a si mesma e tornar-se manifesta a si mesma.

Embora a razão não produza nada a partir de si mesma, é apenas porque a razão se acha presente no coração mais íntimo de todas as realidades abrangentes que se mostra capaz de despertar a todos eles e realizar a sua efetividade e a sua verdade.

Em sua não-limitada busca da vontade integralmente aberta de unidade, que nada omite, a razão exige e arrisca a possibilidade de um radical desligamento de todas as coisas que se tenham tornado finitas e determinadas e, por conseguinte, fixadas.

Portanto, a razão apressa o poder negativo do entendimento para abstrair-se de tudo. Desde que percebe as possibildades mais remotas, pode até mesmo alimentar o pensamento de que poderia ter sido possível que o nada existisse, de qualquer modo. Este pensamento não é apenas um jogo intelectual arbitrário, vazio. Diante do abismo, Leibnitz, Kant e, acima de tudo, Schelling, poderia formular a pergunta, e permitir que eles próprios se emocionassem por meio dela: Por que é que existe algo, afinal de contas, e não o nada? A despeito de sua palidez racionalística, esta pergunta nos coloca em presença da situação em que primeiramente experimentamos autenticamente o ser qua o ser, como algo que nos é dado, incompreensível, impenetrável, alguma coisa que precede todo pensamento e que vem ao nosso encontro.

Além disso, o pensamento da razão acha-se apenas naquele movimento que não conhece qualquer parada ou término. O entendimento deseja segurança em algo firmemente estabelecido; deseja conhecer o Uno e possuir o Todo numa doutrina. A razão, por contraste, derruba continuamente o que tem sido adquirido pelo entendimento. A unidade por que luta a razão não é uma visão por cima do todo, irrompendo de uma vontade enganada para conseguir o poder por meio de um mero entendimento. Não é nada mais do que o impulso para sobre-passar e configurar uma junção de conjunto. Há um orgulho do entendimento em suas posses, mas nenhum orgulho de razão — apenas o movimento que põe à mostra e a fundamental calma da razão.

O homem que assenhoreou-se do que lhe pertence através do entendimento vê-se desvalido quando experimenta o caos das derrubadas e não as compreende através da razão. Quando sua confiança no entendimento é abalada, enfrenta a alternativa: ser ou menos ou mais do que o entendimento; ou no colapso de suas aquisições, afundar-se na impulsividade da mera vitalidade e, daí, salvar-se através de uma obediência impensada (sem pensamento) ou superar o perigo por meio da razão, que funde toda verdade como conhecimento objetivo e eleva-a à verdade que se avizinha da realidade abrangente.

Quando o homem busca as suas mais altas possibilidades, pode enganar-se a si mesmo da forma mais radical. Pode cair de todos os degraus a que havia subido e terminar em nível mais baixo do que o em que havia começado. A fim de preservar o seu ser precisa agarrar-se a cada modo da razoabilidade, porquanto somente isto preserva, para ele, o significado das suas aquisições intelectuais. Ao desistir de toda fixação do entendimento, a razão passa a ser a condição de qualquer outra verdade.

Nas ideias da vontade totalmente-abrangente da unidade e da negatividade que ultrapassa e possibilita, exprimimos as características fundamentais da razão. Mas o que seja a razão não foi, neste contexto, esclarecido da mesma maneira pela qual uma coisa pode ser a mim esclarecida.

Aquilo a que almeja a razão parece impossível conseguir-se na nossa fragmentada existência temporal. O objetivo da razão no Uno não pode ser descrito de modo que o torne modelo visível a que se pudesse seguir. Em lugar disto, atraída pelo Uno, a razão entra no domínio livre da possibilidade, a fim de, assim parece, encontrar o seu caminho no abismo.

A razão — como a Existenz — é alcançada por um salto para fora do reino fechado das coisas imanentes. Comparada com todos os fenômenos imanentes tais como o entendimento, a razão parece-se com um nada. Embora a razão seja a realidade abrangente que somos nós, na forma de um motivo a buscar-se e a realizar o Uno, esta realidade abrangente tem uma fonte transcendente, e não obstante aparece somente em motivos, pretensões e ações imanentemente experimentados.

Existe, por assim dizer, uma atmosfera de razão. Prevalece onde quer que os olhos amplamente abertos percebem a realidade em si mesma, suas possibilidades e a sua não-limitada interpretabilidade. A razão não se impõe aqui como um juiz, nem emite quaisquer pronunciamentos doutrinários absolutos; mas, com honestidade e imparcialidade penetra toda realidade e permite que esta venha a mostrar-se. Não explica nada satisfatoriamente; não esconde ou super-simplifica.

A atmosfera da razão acha-se presente na mais sublime das poesias, especialmente na tragédia. Os grandes filósofos a possuem, e pode ainda ser detectada onde quer que a filosofia esteja presente, de um modo ou de outro. É perfeitamente evidente nos indivíduos únicos como Lessing, indivíduos que — mesmo sem conteúdo substancial — nos afetam como se fossem a própria razão e cujas palavras lemos exatamente a fim de respirarmos essa atmosfera.

A filosofia através dos milênios é como se fosse um grande hino à razão — embora ela continuamente iluda-se a si mesma como um conhecimento acabado e tombe no entendimento carente de razão. Como resultado, está sempre caindo num falso desdém do entendimento, e tem sido sempre menosprezada como uma exigência despótica feita aos homens, exigência que não lhes permite qualquer forma de paz.

A razão destrói a estreiteza da pseudo-verdade, dissolve o fanatismo e não permite qualquer confortável segurança baseada tanto no sentimento quanto no entendimento. A razão é “misticismo para o entendimento”. Não obstante, desenvolve todas as possibilidades do entendimento a fim de fazer com que ela própria, a razão, seja comunicável.
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SE, AO FILOSOFAR, DESEJO um conteúdo conhecido a que possa me agarrar, se pretendo ter conhecimento em lugar de , receitas técnicas para tudo em lugar de uma Existenz baseada no todo de todos os modos da realidade abrangente, se desejo instruções psicoterapêuticas em lugar da liberdade da eu-idade — da personalidade — então a filosofia me deixa ao desamparo. Ela fala somente onde o conhecimento e a técnica fracassam. Ela aponta, mas não dá. Move-se com raios de luz fuminosos, mas nada produz.

Exatamente como na nossa descrição da realidade abrangente terminamos com nada mais do que amplas esferas, em que encontramos o ser possível, assim também na descrição da verdade nada alcançamos mas apenas avenidas que levam a tais possibilidades.

Mas o propósito do nosso impulso filosófico vai mais longe. Não queremos possibilidades, — queremos realidade.

A filosofia, é claro, nem produz realidade nem a dá a quem esteja sofrendo de sua carência. Mas o filósofo, incansavelmente, continua em pensamento com todo o seu ser a fim de dar com os olhos na realidade e de realizar-se a si mesmo.

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