Razão e anti-razão em mosso tempo
Karl Jaspers
Trad. Álvaro Vieira Pinto
Conferências na Universidade de Heidelberg 1950
Segunda Conferência: A Razão
Ontem tratamos da cientificidade como pressuposto de todo pensamento verdadeiro hoje em dia. Compreender o que é a ciência, adquirir a cientificidade como atitude de confiança, requer experiências pessoais de pesquisa, tais como cada estudante começa a fazer nos laboratórios, seminários, institutos e no trabalho livre, isto é, requer o trato metódico com as coisas mesmo, – e exige consciência metodológica.
Mas a ciência não basta para apreender a verdade. Hoje vamos tratar daquele “mais”, da razão, a partir da qual somente encontram o seu fundamento o sentido da ciência e a exigência de que deve existir a ciência.
Na linguagem corrente, razão é sinônimo de entendimento. De fato, ela não dá nenhum passo sem o entendimento, mas o supera.
Que é a razão? Este grande tema de filosofia não está esgotado por milênios de pensamento, não chega a completar-se mediante o conhecimento sistemático. Vou tentar caracterizar a razão.
A razão está em movimento sem estabilidade assegurada.
Impele à crítica de toda posição adquirida, e por isso está em oposição à tendência de nos dispensarmos, graças a ideias definitivamente fixadas, de continuar a pensar.
Deseja a reflexão; – opõe-se à arbitrariedade.
Realiza o autoconhecimento de cada um e, ao conhecer as limitações, a humildade pessoal; – opõe-se à arrogância.
Deseja sempre ouvir e sabe esperar; – opõe-se à estreitante embriaguez da paixão.
Nesses movimentos a razão desvencilha-se das cadeias do dogmatismo, da arbitrariedade, da arrogância, da embriaguez, – mas, para ir aonde?
A razão é a vontade de unidade. A força propulsora da razão e o cuidado da sua clarificação nascem da pergunta sobre o que é esta unidade.
A razão não quer apreender uma unidade qualquer, mas procurar a verdadeira e única unidade. Se esta unidade deve ser a última e absoluta, então a razão sabe que está perdida em toda apreensão prematura e parcial da unidade. Pois ela quer o Um, que é tudo.
Por isso, não lhe é permitido deixar de fora nada que existe, nada omitir, nada excluir. É em si uma abertura ilimitada.
Se estabelece, tirando-o da sua própria essência, o critério do universalmente válido, ela mesma não parece dar valor absoluto a este critério. Pois, para não perder a unidade de tudo, dirige-se logo a seguir justamente ao que não tem fundamento nesse critério, à exceção que irrompe e à autoridade histórica, incompreensível mas exigente. Porém, não se detém nestas coisas, pois também estas, quando medidas pelas exigências do Um, são apenas algo provisório na existência temporal. Em nenhuma grandeza, em nenhuma glória do mundo, pode encontrar repouso, e pôr um fim à sua pergunta.
A razão é atraída pelo que lhe é mais estranho. Mesmo aquilo que, transgredindo a lei do dia, se torna realidade destruidora, como paixão pela noite, mesmo isso, a razão desejaria, iluminando-o, conduzir ao Ser, emprestar-lhe uma linguagem e não deixá-lo desaparecer no nada. A razão não quer ser culpada de esquecimento, não quer perder o Um em uma harmonia ilusória, nem se enganar, por encobrimento. Acorre sempre ao lugar onde se rompe uma unidade, para, na ruptura, aprender ainda uma verdade dessa ruptura. Quebrando toda unidade bela na aparência, – que pela própria quebra revela a sua insuficiência – a razão quer impedir a ruptura metafísica, o despedaçamento do Ser mesmo, da autêntica unidade. Por isso, a razão, origem mesma da ordem, acompanha também o que destrói a ordem. Continua a ser a convivência, o dar ouvido ao que é mais estranho, ao que irrompe, ao que fracassa.
A razão desejaria inclinar-se sobre tudo o que existe e que, por isso, deve ser apto a adquirir uma linguagem, para preservá-lo, para fazê-lo ter um valor por sisi mesmo.
Para poder procurar o Um, é preciso que quem o procura realize em sisi mesmo a unidade. Esta é a exigência que ouvimos na história da filosofia, em palavras inesquecíveis, não demasiado frequentes. Platão considerava que o homem só é êle próprio quando é um consigo mesmo, quando não se contradiz, – e via a desgraça suprema do homem no fato de dividir-se este em sisi mesmo, julgando e sendo ora isto ora aquilo, sem relação um com o outro, no torvelinho do acaso. Kant repetiu isto, e Weininger diz, talvez com razão, que a ética de Kant é “a única que não procura abafar a rigorosa e severa voz interior do Um com o ruído do múltiplo. Êle nos lembra Goethe: “pode-se perder tudo, desde que se continue sendo o que se é,” – e as palavras do “Brand” de Ibsen:
“E as vítimas que ides sacrificar? – Todos os ídolos Que para vós substituem o Deus eterno… O prêmio da vitória? A unidade do querer”.
Dirigida para a unidade do Um, a razão quer, por assim dizer, ajudar tudo o que existe a fazer valer os seus direitos. Mas a razão, que é capaz de despertar todas as origens adormecidas, não produz nada de si mesma. Penetrando no coração de tudo o que existe, pode fazê-lo pulsar, fazer que se mova e se revele. Mas é preciso que atinja o coração das coisas, para ser eficaz.
A razão aponta, por conseguinte, duas coisas: a natureza inacessível daquele Um, sob cuja infinita atração ela pensa; e esse “outro” das origens, que, vivificadas por ela, se tornam perceptíveis. A razão faz que aquilo que existe e pode existir se desdobre necessariamente, é aquilo que abre todas as coisas. E impele o que foi aberto para o Um, referido ao qual isso que foi aberto não afunda no nada da dispersão.
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Desejaria agora completar esta breve caracterização da razão, pela discussão de algumas possibilidades que ela proporciona.
A razão e a vontade de comunicação ilimitada são uma só e mesma coisa. A razão, porque, inteiramente aberta, dirigida ao Um, em todo existente, impede que se interrompa a comunicação. Se a ruptura ê forçada na existência concreta, a razão nunca a reconhece como necessária em princípio. Com uma confiança inabalável nas incalculáveis possibilidades que derivam da totalidade do ser, a razão exige sempre que a comunicação seja tentada novamente. Negá-la é, para ela, como a negação da própria razão.
Porém, ainda mais: para a razão, na existência concreta temporal, a verdade está ligada à comunicação. Uma verdade sem comunicação é para ela idêntica à não-verdade. A verdade que se liga à comunicação não está concluída, escuta a sua ressonância na comunicação e se examina a si mesma e ao outro. Diferencia-se de todo pronunciamento unilateral. Não sou eu quem traz a verdade, mas procuro a verdade em comum com a pessoa com quem me encontro, ouvindo, perguntando, investigando.
A verdade não pode estar completa no tempo, porque a comunicação não é completa. Mas o caráter incompleto da comunicação torna-se a revelação de uma profundeza, que nada pode preencher senão a Transcendência ou o Ser que não vem a ser, antes, ao contrário, para além do Ser e do vir a ser, é.
Podemos então dizer: se Deus é eterno, para o homem, no tempo, a verdade existe como verdade que vem a ser na comunicação.
Em face da Transcendência, porém, desaparece a incompletação da comunicação, e, com isso, a da verdade. Somos atingidos no tempo por um ponto de partida desconhecido, o Um, dirigindo-se ao qual a nossa verdade comunicativa adquire sentido, e partindo do qual recebe a sua plenitude: dentro do tempo, transversalmente ao tempo. É em um jogo de símbolos que nos representamos esta realidade fundamental, na imagem de uma origem pré-temporal da necessidade temporal de comunicação ou na imagem de uma perfeição final de eterna harmonia, em que a comunicação é superada. Na origem era o Um, a verdade, como agora nos é inacessível. Mas o Um perdido é o apelo que provém das profundezas de toda temporalidade, como se devesse ser recuperado na dispersão mediante a comunicação, como se a confusão da multiplicidade pudesse resolver-se na paz do ser do Um, como se uma verdade esquecida, que nunca alcançaríamos de novo no tempo, estivesse, contudo, constantemente presente no movimento que nos conduz a ela.
A razão é, então, o lugar desta comunicação ilimitada. Mas é apenas um mínimo. Pois a força da comunicação deriva somente do amor, da Existência histórica, e não já da razão a-histórica, a qual, ao contrário, recebe daquela o seu impulso e a sua plenitude.
Mas este mínimo é já o que dá asas a quem filosofa. É êle que cria os momentos supremos da razão livre no acordo mútuo de homens, que são ao mesmo tempo ainda muito estranhos entre si, este encontro que se dá, graças à razão, no âmbito da absoluta possibilidade. A razão não é ainda então a realidade do amor, mas, por sua parte, já é liberdade, e logo condição da verdade e pureza também do amor.
Uma outra possibilidade da razão é o radical desligamento como meio de aproximar-se da origem do Um.
O que se tornou finito e determinado, tenta-nos a que o ponhamos em lugar do Um, conforme nos aparecem essas formas em inúmeros fatos objetivos históricos. A razão apodera-se da força negativa do entendimento, que mostra limites em tudo, que pode, pela crítica, decompor tudo que é finito e, por fim, é capaz de chegar à notável ideia de abstrair, em geral, de tudo o que existe. Leibniz, Kant, Schelling puderam levantar a pergunta, que Schelling formulou deste modo: por que existe alguma coisa em geral, por que não é o nada? – pergunta aparentemente gratuita, que parece um fútil jogo do entendimento, não permitindo nenhuma resposta inteligível, – e que contudo se impôs àqueles filósofos. Em consequência dessa ideia, experimentaram uma perda dos fundamentos em que se apoiavam, a partir da qual somente um novo modo de todo conhecimento do Ser permite reconquistar um fundamento inteiramente diferente. A pergunta nos torna conscientes da presença do Ser, como o inconcebível, o impenetrável para nós, existente já anteriormente a todo o nosso pensamento, e que vem ao nosso encontro. Esta simples pergunta, sem sentido para o entendimento, é para a razão uma forma que possibilita à nossa Existência, guiada pelo fio condutor desta ideia, lançar-se, fugindo de toda sujeição finita, para o lugar de onde viemos, anterior ainda a todos os mundos.
Esta razão que abrange tudo, que negativamente abstrai de toda determinação, referida positivamente ao Um, faz reaparecer de repente tudo o que existe, de uma forma nova, maravilhosamente transparente, que nos fala como nunca antes.
A razão realiza ainda uma outra forma de desligamento. O eterno só se torna presente em forma histórica. A historicidade é existencialmente a unidade da temporalidade e da eternidade, consiste cm que o eterno se decide como fenômeno no tempo. Enquanto Existência imersa na existência concreta (Dasein), somos históricos, não somos o caso particular de um conceito geral.
Esta historicidade significa plenitude e vinculação. Identificamo-nos a ela. Mas, ao tomarmos consciência do seu caráter, graças à razão, transcendemo-la. Preservando a nossa historicidade, podemos regressar através dela mesma ao supra-histórico.
Sem a razão, presos na historicidade, estamos limitados na Existência, porque não tomamos consciência verdadeiramente do seu próprio caráter histórico. A razão, ao nos destacar, por assim dizer, pela sua operação, leva-nos, só então, à completa consciência da nossa historicidade, e prepara-nos ao mesmo tempo um lugar, onde sem dúvida não estamos em casa, mas, referidos ao qual, estamos mais em casa aqui mesmo, porque ligados a ele.
A razão bem desejaria apreender com ideias do entendimento isto que é anterior a todo fenômeno, a todo tempo, ao mundo, mas que igualmente lhes é posterior, ou melhor, que não é nem uma coisa nem outra, mas que é algo no fenômeno, no tempo, no mundo, o Ser mesmo, autêntico, a-histórico. É aquilo que não se torna, mas é. Porém a razão não pode pensá-lo, mas apenas mantê-lo puro da contaminação por um falso pensamento, que desejasse aprisioná-lo em categorias, imagens, ou formas verbais. ,
Quando falamos da razão, haveria sem dúvida muito que dizer das suas ramificações, muito que informar sobre as suas realizações concretas, mas tudo isto e o seu fundamento, e o que ela é na sua totalidade transcrevemos inevitavelmente em forma histórica. Quando julgamos, às vezes, saber aqui, a-historicamente, mais do que podemos pensar e dizer em forma sempre histórica, é que procuramos algo análogo.
Com linguagem diferente, os budistas e taoístas falam do Nada, do Vazio, alcançar o qual seria a própria plenitude. O Vazio é concebido como o recipiente, como o envolvente de tudo – o que é menos do que cada Ser e mais do que tudo – como o Nada, que contém como possibilidade a riqueza do todo, e que existe realmente no sábio que conquistou o conhecimento. Uma vez enunciado, este Nada oscila necessariamente na ambiguidade que há entre o Ser, que é ao mesmo tempo um guia para quem chegou até ele, e o Vazio absoluto, que é o abismo, que não é nada, de fato impossível de preencher. Podemos chegar a compreender, em analogias para a razão, muitas fórmulas deste pensamento, deste Envolvente, no qual se faz abstração de tudo e em seguida se restabelece tudo autenticamente.
Se o Vazio dos asiáticos e a razão dos ocidentais parecem coincidir em algum ponto, não é por algum elemento comum, abstratamente pensável, mas é na origem, que ambos atingem.
A manifestação histórica desta verdade envolvente, em formas, em gestos, em aspectos e em uma atmosfera, isto que não chega a ser de modo algum universal, o segredo desta manifestação, não é a simples individualidade de todo fato natural, mas é esta individualidade conservada no espírito, animada pela Existência, sublimada e permeada pela Transcendência que, através disso, parece falar como razão no tempo, somente em forma absolutamente histórica.
Quando, na tentativa de distinguir radicalmente o Oriente do Ocidente, contrapomos o movimento do ocidental à tranquilidade do asiático, o que encontramos é apenas uma polaridade da razão mesma, que é própria de ambos (Oriente e Ocidente). É a tensão que se manifesta por sua vez historicamente aqui e lá, mas que não é suficientemente distinguível na sua manifestação por meio de categorias universais. A historicidade como tal nunca se torna objeto de conhecimento. Não sabemos nada de essencial uns dos outros, senão quando entramos em comunicação uns com os outros.
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As manifestações que ocorrem na ausência da razão podem ser caracterizadas como em número infinito. Um princípio da não-razão é a vontade de existência concreta (Da-sein), que atribui a si mesma a proeminência. Para frisar o contraste com a razão, pode-se formular o seguinte:
A razão liga, a mera existência concreta separa. A vontade de existência concreta quer apenas a si mesma, põe tudo o mais sob a condição de que venha a fortalecer o seu próprio existir. A existência concreta encobre a sua vontade egoísta nas roupagens da objetividade, a sua solidão na linguagem sobre a comunidade e em gestos de afeição.
A razão conserva-se aberta a todo Envolvente e aprofunda toda ligação iluminando-a, realiza a continuidade da nossa Existência. A não-razão fecha a existência concreta em si mesma, renega o que foi dito e o que foi feito. A ligação com o orgulho e o interesse obriga a um útil esquecimento e aniquila a fidelidade para com os outros e para consigo mesmo. Com o afundamento na existência concreta, resta aquilo que é absolutamente separador, o vazio do um-sem-o-outro. Nenhum passado sustenta essa existência concreta, mas recomeça constantemente desde o princípio. É por isso que tudo parece desaparecer no Nada.
Enquanto o pensamento a serviço da razão é crítico, deseja a verdade, a existência concreta pensante procura sua auto-justificação na sofistica e sua certeza do Ser na superstição da gnose metafísica.
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E agora a coisa decisiva: a razão não existe por natureza, mas realmente apenas por decisão. Não acontece por si mesma, como um fato natural e como a totalidade da existência humana concreta, na medida em que esta tem caráter de natureza, mas nasce da liberdade.
A resolução torna-se consciente em face da comunidade humana no dar-se o indivíduo conta de que sabe o que quer.
Lancemos a vista primeiramente sobre a comunidade humana.
Há um otimismo, que acredita que a verdade se imporá. Somos obrigados a confessar que não se pode de modo algum contar com isso. A verdade pode ser aniquilada. A história dos heréticos é, em grande parte, a história de tal verdade, violentamente aniquilada na sua realidade histórica. Os Estados totalitários nos mostram que populações inteiras podem ser tornadas embrutecidas, por meio da retenção das notícias, pela proibição da discussão pública livre ou habituando-as à inverdade constantemente repetida.
O otimismo diz ainda mais, diz que a verdade sempre traz só bons resultados. Mas a verdade, para a nossa visão finita, pode ter consequências tão terríveis, que Schiller escreveu: “Só o erro é a vida, a verdade é a morte.”
Somente quando percebemos claramente que, em tais proposições gerais, à palavra verdade liga-se um sentido múltiplo, um sentido inesgotável; quando nos convencemos de que a verdade só é realmente verdade numa correlação, e só na totalidade das correlações e dos graus, e que, portanto, na finitude e na temporalidade, em determinado contexto ela está sempre de algum modo ligada à inverdade; e que isto só se pode tornar claro numa sistemática filosófica minuciosa – ‘Somente então, em vez de um otimismo prematuro, podemos adquirir uma confiança na verdade, que não se pode demonstrar a si mesma, mas tem já o caráter de decisão e de fé.
Esta verdade envolvente era aquilo em que Goethe pensava quando escreveu: “Nada é grande senão a verdade, e a menor das verdades é grande… mesmo uma verdade nociva é útil, porque só pode ser nociva por um instante e conduz, imediatamente a outras verdades que hão de ser sempre úteis; e inversamente, um erro útil é nocivo, porque só pode ser útil momentaneamente e conduz a outros erros que se tornam cad3 vez mais nocivos.”
Esta confiança na verdade implica um esforço ininterrupto em atingi-la. A suposta verdade, que possuo e julgo ter, quando, por exemplo, enfurecido, quero então “dizer de uma vez a verdade”, não é essa que é a verdade. Ao contrário, a verdade reside somente num constante pôr em questão e na apropriação crítica. Seguir este caminho é o mesmo que a decisão de querer viver da razão no mundo da não-razão e da contra-razão, sem saber o que resultará daí, numa investigação incessante, na tentativa, no risco e no não-saber. É uma decisão que não se pode fundamentar a si mesma mais do que unicamente pela auto-iluminação da razão, em vista das manifestações e consequências da não-razão e da contra-razão.
Consideremos o indivíduo:
O homem não se encontra a si mesmo como um ser racional, mas, por assim dizer, se converte em racional, a partir da existência concreta que lhe é dada. Atinge o caminho da razão pela sua própria liberdade, e não automaticamente.
O fato de que possa fazer isso é um mistério. Ele se deve a si mesmo, e contudo não sabe como foi capaz disso. Vê os limites da sua liberdade, vê que só pode querer sendo livre, mas não pode querer a liberdade. Daí se conhecer, por assim dizer, como que dado de presente a si mesmo, sem que saiba, experimente ou descubra por meio de alguma vivência fidedigna, que se deve a um outro Poder. Conhece-se como dado de presente a si próprio, sem saber qual a origem; esta condição de ser um presente tem o caráter de dever-se nisso a si mesmo e exige todo esforço, franqueza e boa vontade.
Este passo, a resolução em favor da razão – que coincide com a resolução pela liberdade, pela verdade, pela incondicionalidade da decisão existencial – vai contra a natureza, o curso dos acontecimentos, a necessidade. Pode denominar-se este passo “o não-natural”, por oposição à “inocência da natureza”. É a decisão de reconhecer a culpa na escolha do que se tem de aceitar, de assumir a responsabilidade na resolução presente. Significa rejeitar as palavras de consolo, más e embaladoras, tais como: “deve-se esquecer, a vida é assim mesmo”, “o que aconteceu tinha necessariamente de acontecer, não podia ser de outra forma”. Não: somente na consciência da culpa é que me torno livre, do contrário continuo escravo da natureza, e torno-me livre unicamente na decisão, que é como um renascimento, uma transformação, uma revolução do meu modo mesmo de pensar. Assim o entenderam Platão, a religião bíblica e Kant.
É o encontro do caminho de volta, partindo do “assim-me-é-dado” para chegar ao pensamento próprio, como fundamento da seriedade da responsabilidade; partindo da dispersividade do ir e vir para chegar à origem; partindo das complicações encobridoras para a simplicidade; do deixar-correr, para a decisão.
Nossa ação dotada de sentido tem por toda parte um ponto de apoio no mundo. Aqui, porém, na conversão que é a decisão filosófica, faz-se uma coisa que, tecnicamente, não tem nenhum ponto de apoio. É o mistério, e ao mesmo tempo a presença, da atividade interior, deste trato consigo mesmo, no ato de apreender o incondicionado.
Aqui, nesta conversão, está a origem de toda comunicação verdadeira, incondicional, aqui está o fundamento da segurança dentro do incalculável.
A razão só se realiza com Existência mediante um salto partindo da realidade, aparentemente fechada, da existência concreta para a realidade do Ser mesmo.
A revolução do nosso modo de pensar, esta decisão que não é objeto de conhecimento da psicologia, é discutida pelos filósofos. Há em suas obras passagens escondidas que evidentemente repousam em uma experiência pessoal. Escolho como exemplo Kant. Ele fala do caráter que não é um caráter particular, uma possibilidade entre outras, mas fala do caráter pura e simplesmente, que o homem se dá a si mesmo pelo fato de se ligar a princípios que, pela sua própria razão, prescreveu a si mesmo irrevogavelmente. Sobre esse caráter diz êle:
“O homem que é consciente de um caráter, no seu modo de pensar, não o tem por natureza, mas deve tê-lo adquirido constantemente. Pode-se também admitir que a fundação desse caráter, qual uma espécie de renascimento, certo solene voto de dedicação feito a si mesmo, faz que essa fundação e o momento em que tal transformação se passa no homem, tornem-se inesquecíveis para êle, semelhante a uma nova época. A educação, os exemplos… não poderiam produzir pouco a pouco, de modo geral, esta firmeza nos princípios, mas a produzem, a bem dizer, por uma explosão… Talvez sejam somente poucos os que tenham tentado esta revolução antes dos trinta anos, e ainda menos os que a tenham firmemente instituído antes dos quarenta. Querer fragmentàriamente tornar-se um homem melhor, é uma tentativa vã… a fundação de um caráter é a unidade absoluta do princípio interior e da conduta, em geral…” E diz depois: “Numa palavra: a veracidade… convertida em máxima suprema, é a única prova que a consciência de um homem lhe dá, de que ele tem um caráter; e como ter caráter é o mínimo que se pode exigir de um homem racional, mas ao mesmo tempo também é o máximo de valor interior (de dignidade humana), ser um homem de princípios deve ser possível à razão humana comum.” [Kant, “Antropologie in pragmatischer Hinsicht, II Teil § 87 (Ed. Hartenstein, Vol. VII, pág. 616).]
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Em nossa época, Koestler encontrou notáveis e emocionantes palavras para referir-se à conversão que o libertou do comunismo e o fez um ardente defensor da liberdade e da humanidade. Fala da “vivência” que, “logo que a vestimos com palavras, aparece sempre na roupagem falsa dos eternos lugares comuns”, – “que o homem é uma realidade e a humanidade uma abstração: que não se pode tratar os homens como números em uma equação política, porque eles se comportam como os sinais de zero ou de infinito, que transtornam todos os cálculos matemáticos; que só dentro de limites muito estreitos é que o fim justifica os meios; que a ética não é só uma função de utilidade social e o amor do próximo um sentimento pequeno-burguês, mas a força de gravitação que mantém unida toda civilização.”
“Nada deve soar mais vulgar, escreve ele, do que tentar exprimir em palavras uma vivência que, por sua própria natureza, escapa a toda apreensão verbal, e contudo cada um desses triviais lugares-comuns era incompatível com a fé comunista.”
Koestler chama de “vivência” o que de fato é a decisão de fazer uma revolução do modo de pensar.
Será que ele, como homem de letras e de influência literária atual, tem medo de palavras e frases conhecidas? O desprezo do que é simples e corrente na linguagem estará talvez em relação com a tendência moderna à acentuada originalidade, com a desvalorização de tudo o que se denomina tradicional? E será que ele próprio, então, cai numa palavra tão gasta pelo uso e tão enganadora como a palavra “vivência”?
É verdade que os eternos lugares-comuns soem vulgares?
Este desprezo é compreensível, porque houve demasiado abuso deles, por uma banal edificação moral, pela simples tagarelice, ou pela aplicação descuidada. Mas eu desejaria combater esse desprezo.
Não será talvez que, ao contrário, as frases simples são inesgotáveis? Não devem elas ser constantemente interpretadas e assimiladas de novo, porque sua verdade é insondável? Não temos também ainda hoje que conquistar a apreensão de coisas antiquissimas como a verdade, no fundo, essencial para nós, naquelas velhas fórmulas?
Princípios, como a proposição kantiana que diz que o homem nunca deve ser somente meio, mas deve permanecer sempre como um fim em sisi mesmo; ou a de Platão, segundo a qual a ignorância é o maior dos males; ou os dez mandamentos; ou as grandes» e eternas ideias fundamentais da filosofia – esses princípios são fáceis de declamar, mas compreendê-los realmente e assimilá-los, é coisa para a qual se necessita mais do que o simples entendimento, exige a razão. Adquiri-los e torná-los realmente próprios é ainda hoje a pressuposição de toda filosofia que quer ser verdadeira.
Os simples princípios da razão filosófica podem parecer sem conteúdo, puramente formais, porque na sua generalização nada dizem. Mas precisamente por isso têm uma significação oni-envolvente. Agem como fórmulas mágicas, que, entretanto, são transparentes à razão. Lembram-nos o que é decisivo, sem nos constranger. Fazem ver e dão impulso. Graças ao seu caráter formal, podem, por assim dizer, curar-nos da nossa cegueira, porém a visão concreta, essa eles a deixam à nossa liberdade. Não são proclamações, mas fazem um apelo à razão daquele que vem ao seu encontro, que os ouve e deles se apropria e, ao transformar-se a si mesmo, toma a decisão.
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A razão cria o âmbito de pensamento no qual aquilo que existe pode ser apreendido, adquire expressão, e, portanto, valor, enquanto ser próprio. Este âmbito da razão é como a água, o ar e a luz, em que toda vida pode medrar, e por isso é ávido de preenchimento por essa vida, mas com a condição de ser penetrado pela razão.
Isto mesmo pode ser expresso de outra maneira: a razão ilumina o incondicionado, mas não fornece o conteúdo mesmo. Traz as formas, que ainda precisam ser preenchidas, para se tornarem reais no tempo. Compreende a historicidade, porém ela própria por essência não é histórica. Cria o âmbito para a incondicionalidade dos conteúdos da Existência.
Os limites da razão estão situados, de um lado, na realidade da existência concreta (Daseinsrealitât) que lhe é dada como estranha à razão; e de outro, na realidade que lhe é dada como Existência (Existenz), iluminável racionalmente ao infinito. A razão mesma é sustentada por essa Existência enquanto a Existência somente alcança sua plena realidade por meio da razão. Razão e Existência são inseparáveis.
Representemo-nos a unidade do movimento de razão e Existência, tanto nos seus sucessos quanto nos seus fracassos dizendo algumas palavras sobre o amor, que, por si, não é a razão, mas é racional, – a tal ponto que Platão pôde conceber Eros e Conhecimento como sendo uma só coisa.
O amor está imerso na existência concreta, numa identidade incondicional, é histórico. Quando se apodera de mim, é como se só então eu realmente existisse. Venho a mim mesmo; tudo que existe se ilumina. Somente então a vida se torna séria. O que agora faço, é para mim como se fosse aceito ou rejeitado pela eternidade, ou então como se fosse uma reminiscência do eterno, ou afundasse no vazio do Nada.
Quando ao amor é concedida a sua realização, é a felicidade do desabrochar de uma vida. Os homens, por assim dizer, se reconhecem de novo no tempo. O mundo converte-se para eles em linguagem da Transcendência. Para além do direito e das convenções, para além da moral, surge para eles no fundamento transcendente, de modo incalculável, a confiança. A existência concreta realiza-se então como um jogo, na base da mais profunda seriedade, a descoberto, crescendo mais profundamente na atualidade, à sombra do fim que é próprio de toda existência concreta.
Ou então a realização do amor fracassa. Um dos amantes se perde na existência concreta pela morte, pela loucura, pela infidelidade. O outro amante, tornado só, parece definhar. Mas desse definhar brota uma vida estranha. É como se esse amante mesmo tivesse morrido e agora agisse aqui, vindo de algum outro lugar, tolerante, num altruísmo abnegado, mas a infinita distância, consumindo-se, infeliz, na sua impossibilidade de tomar parte na vida, porém tão intensamente presente, na condição de alguém que se tomou outro, que muitas pessoas, ao contato dele, sentem-se inexplicavelmente atraídas e mesmo transformadas, encarando-o como um Gênio bom em cativeiro, que não pertence a ninguém e que, em encontros fortuitos, prodigaliza a sua solicitude, mas nem um pouco de si mesmo. O que aí existe e acontece parece inobjetivável, é, enquanto fato, indemonstrável, recusa-se a toda apreensão pelo pensamento; só pode ser visto silenciando, emocionante e inesquecível.
Consideremos um outro amor, o amor à origem, à terra natal, ao nosso fundamento histórico, pelo conhecimento que temos de derivar de uma raiz. Sei que sou sustentado e rodeado até nas realidades existenciais do ambiente cotidiano; sei que sou guiado a partir deste fundamento, que incorporo a mim tão mais decididamente quanto mais me torno eu mesmo.
Mas este amor pode entrar em confusão. O homem pode ser arrancado do seu solo. Os milhões de emigrantes expulsos, de proscritos, de fugitivos – principalmente na Europa e na China – experimentam essa terrível realidade. O amor perdeu a presença corpórea do seu mundo. O homem é traído pela sua própria pátria e por seu povo, ou oprimido pela força de Estados estrangeiros. Sem esperança, vive a sua existência concreta excluído da realização de que historicamente participa, sabendo não pertencer a ela. A seriedade do seu amor não pode encobrir as coisas. Ele não pode pertencer a nenhuma outra pátria. Privado do solo, paira no espaço vazio e a-histórico, devolvido, sozinho, a si mesmo, por uma impiedosa indiferença.
Porém, então, como no caso da perda da pessoa amada, pode suceder a transformação que Platão, pela primeira vez, realizou, mostrando, para todo o sempre, esta possibilidade; do amor a um bem perdido, do desespero da impotência, nasce a reflexão sobre as condições e os fundamentos da vida em comunidade. O que não existe agora na realidade deve ser preparado em pensamento. Este pensamento terá sua forma dada pela circunstância histórica mundial dentro da qual é pensado. Quando um homem, tendo em vista o que possivelmente vai acontecer, é forçado a confessar a si mesmo estar expulso da sua pátria política, não é recolhido por uma outra pátria, – que não existe – , mas pela pátria que é a história da humanidade. Pelo pensamento, coopera para a cidadania mundial futura. Procura confirmação do seu “estar em casa” no ser do homem enquanto tal. Partindo da desgraça da sua mesma proveniência histórica, daquilo que era nobre no passado da sua pátria, do que exigiam os seus grandes antepassados, e sempre sustentado por esta fonte histórica do seu amor, remonta agora até a origem da humanidade, da humanidade histórica concreta, ligado, enquanto homem, a todos os homens, como uma grande família. Isto porém não é dado naturalmente, mas é algo que só acontece quando se renasce por meio da razão.
Pareceria como se, no meio da ruína, mas desde que a existência concreta não esteja aniquilada, a razão pudesse levar o ser autêntico da Existência a uma transformação em novas possibilidades de construção do ser humano – com o que o ser autêntico de um indivíduo e o ser autêntico de outro se encontram num chamado recíproco por sobre o mundo.
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Para terminar, digamos, ainda uma vez, o que pode ser a razão.
Onde a razão cria um espaço, aí se desvanecem as ilusões, passam a embriaguez e a selvageria. Entregue a um sentido que se refere à Transcendência, a existência concreta torna-se Existência.
A Existência da razão faz da existência concreta um risco, mas não uma aventura; leva-a à prodigalidade, mas não ao desperdício.
A Existência, no âmbito da razão, pode fazer que tudo que é temporal se consuma na historicidade cumprida, como forma, a cada vez única, de manifestação do eterno.
Mas é a razão que ilumina então a relação do histórico ao supra-histórico, procura o fundamento lá onde ninguém na consciência da existência concreta finita pode realmente chegar no tempo.
O homem que provou da razão não a pode mais abandonar.
Há dezenas de anos, falei da filosofia da Existência (Existenzphilosophie) e acrescentei, então, que não se tratava de uma filosofia nova, de uma filosofia particular, mas da única e eterna filosofia, a que, em um momento de perdição na pura objetividade, foi lícito que se desse, como acento, o pensamento fundamental de Kierkegaard.
Hoje, preferiria chamar a filosofia de filosofia da razão, porque parece urgente acentuar esta velhíssima essência da filosofia. Se a razão se perde, a filosofia mesma está perdida. Sua tarefa desde o início foi, e continua a ser, conquistar a razão, restaurar-se a si própria como razão, e, de fato, como a autêntica razão, a qual, ao curvar-se às necessidades do entendimento concludente, apropriando-se inteiramente dele, não incorre contudo nas restrições do entendimento.
A razão aparece como o projeto do ser do homem que esperamos, tanto quanto está em nós mesmos produzi-lo. É um ser do homem acessível a todos os homens, que os liga, e, ao mesmo tempo, não somente permite o seu cumprimento histórico até a Existência, única e insubstituível, de cada indivíduo, como até mesmo o exige. A razão, enquanto modo de conduta fundamental, seria o elemento de ligação do que é estranho mutuamente, do que é historicamente diverso pela origem. Viria possibilitar a crescente comunicação da multiplicidade em desenvolvimento, multiplicidade que sabe estar ligada ao Um, este Um que não pertence a ninguém e ao qual todos pertencem.
Mas, talvez muitos de vós digam:
falar da razão é como falar de um sonho;
tudo que hoje expus, é um discurso sobre coisas que não existem.
De fato: não existem como objeto de um conhecimento que as constata, mas apenas enquanto conteúdo de decisão.
Por meio desta decisão, pode tornar-se real aquilo que, em sua origem, escapa a todo conhecimento causai. Só conheço causalmente o que é destituído de razão; – é somente com a razão mesma que compreendo o racional, que encontro em tudo que há de grande na História, em tudo que é não apenas “histórico” (historisch), mas histórico (geschichtlich) como eterna presença.
Dizer “isso não existe” significa dizer: “eu não o quero”.
Mas a razão não existe pelo fato de que a conheço, mas apenas pelo fato de que a realizo, nas ciências, na vida prática, e em criações espirituais que penetram mais profundamente dentro da verdade do que as ciências podem fazer.
A razão tem a ousadia de manter-se firme em um mundo de não-razão e em face das suas constantes deturpações em contra-razão.