Hume (IEH:53-61) – causa e efeito

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1 Todos os objetos da razão ou investigação humanas podem ser naturalmente divididos em dois tipos, a saber, relações de ideias e questões de fato. Do primeiro tipo são as ciências da geometria, álgebra e aritmética, e, em suma, toda afirmação que é intuitiva ou demonstrativamente certa. Que o quadrado da hipotenusa é igual ao quadrado dos dois lados é uma proposição que expressa uma relação entre essas grandezas. Que três veges cinco é igual à metade de trinta expressa uma relação entre esses números. Proposições desse tipo podem ser descobertas pela simples operação do pensamento, independentemente do que possa existir em qualquer parte do universo. Mesmo que jamais houvesse existido um círculo ou triângulo na natureza, as verdades demonstradas por Muclides conservariam para sempre sua certeza e evidencia.

2 Questões de fato, que são o segundo tipo de objetos da razão humana, não são apuradas da mesma maneira, e tampouco nossa evidência de sua verdade, por grande que seja, é da mesma natureza que a precedente. O contrário de toda questão de fato permanece sendo possível, porque não pode jamais implicar contradição, e a mente o concebe com a mesma facilidade e clareza, como algo perfeitamente ajustável à realidade. Que o sol não nascerá amanhã não é uma proposição menos inteligível nem implica mais contradição que a afirmação de que ele nascerá; e seria vão, portanto, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa, implicaria uma contradição e jamais poderia ser distintamente concebida pela mente.

Assim, pode ser um assunto digno de interesse investigar qual é a natureza dessa evidência que nos dá garantias quanto a qualquer existência real de coisas e qualquer questão de fato, para além do testemunho presente de nossos sentidos ou dos registros de nossa memória. Observe-se que tanto os antigos como os modernos pouco cultivaram essa parte da filosofia, e isso torna mais desculpáveis nossos erros e hesitações ao empreendermos uma investigação tão importante, percorrendo trilhas tão difíceis sem nenhum guia ou orientação. Esses erros podem até mesmo revelar-se úteis, estimulando a curiosidade e abalando aquela e segurança irrefletidas que são a ruína de todo raciocínio e de toda investigação imparcial. A descoberta de defeitos na filosofia ordinária, se os houver, não atuará, presumo, como um desencorajamento, mas antes como um estímulo, como é usual, para buscarmos algo mais pleno e satisfatório do que o que se tem até agora proposto ao público.

Todos os raciocínios referentes a questões de fato parecem fundar-se na relação de causa e efeito. É somente por meio dessa relação que podemos ir além da evidência de nossa memória e nossos sentidos. Se perguntássemos a um homem por que ele acredita em alguma afirmação factual acerca de algo que está ausente — por exemplo, que seu amigo acha-se no interior, ou na França —, ele nos apresentaria alguma razão, e essa razão seria algum outro fato, como uma carta recebida desse amigo ou o conhecimento de seus anteriores compromissos e resoluções. Um homem que encontre um relógio ou qualquer outra máquina em uma ilha deserta concluirá que homens estiveram anteriormente nessa ilha. Todos os nossos raciocínios relativos a fatos são da mesma natureza. E aqui se supõe invariavelmente que há uma conexão entre o fato presente e o fato que dele se infere. Se nada houvesse que os ligasse, a inferência seria completamente incerta. Por que a audição de uma voz articulada e de um discurso com sentido na escuridão nos assegura da presença de alguma pessoa? Porque esses são os efeitos da constituição e do feitio do ser humano, e estão intimamente conectados a ele. Se dissecarmos todos ós outros raciocínios dessa natureza, descobriremos que eles se fundam na relação de causa e efeito, e que essa relação se apresenta como próxima ou remota, direta ou colateral. Calor e luz são efeitos colaterais do fogo, c um dos efeitos pode ser legitimamente inferido do outro.

5 Assim, se quisermos nos convencer quanto á natureza dessa evidência que nos assegura quanto a questões de fato, devemos investigar como chegamos ao conhecimento de causas e efeitos.

6 Arrisco-me a afirmar, a título de uma proposta geral que não admite exceções, que o conhecimento dessa relação não é, em nenhum caso, alcançado por meio de raciocínios a priori, mas provém inteiramente da experiência, ao descobrirmos que certos objetos particulares acham-se constantemente conjugados uns aos outros. Apresente-se um objeto a um homem dotado das mais poderosas capacidades naturais de raciocínio e percepção — se esse objeto for algo de inteiramente novo para ele, mesmo o exame mais minucioso de suas qualidades sensíveis não lhe permitirá descobrir quaisquer de suas causas ou efeitos. Adão, ainda que supuséssemos que suas faculdades racionais fossem inteiramente perfeitas desde o início, não poderia ter inferido da fluidez e transparência da água que ela o sufocaria, nem da luminosidade e calor do fogo que este poderia consumi-lo. Nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, nem as causas que o produziram, nem os efeitos que dele provirão; e tampouco nossa razão é capaz de extrair, sem auxílio da experiência, qualquer conclusão referente à existência efetiva de coisas ou questões de fato.

Essa proposição de que causas e efeitos são descobertos não pela razão, mas pela experiência será facilmente aceita com relação a objetos de que temos a lembrança de nos terem sido outrora completamente desconhecidos, dado que estamos com certeza conscientes de nossa total inabilidade, na ocasião, de prever o que deles resultaria. Apresente a um homem não versado em filosofia natural duas peças lisas de mármore: ele jamais descobrirá que elas irão aderir uma à outra de tal maneira que uma grande força é requerida para separá-las ao longo de uma linha perpendicular às superfícies em contato, embora seja mínima a resistência que oferecem a uma pressão lateral. Também se admite prontamente, no caso de fenômenos que mostram pouca analogia com o curso ordinário da natureza, que eles só podem ser conhecidos por meio da experiência, e ninguém imaginaria que a explosão da pólvora ou a atração do magneto pudessem jamais ter sido descobertas por argumentos a priori. De maneira semelhante, quando se

supõe que um efeito depende de um complicado mecanismo ou estrutura secreta de partes, não temos dificuldade em atribuir à experiência todo o conhecimento que temos dele. Quem se apresentará como capaz de fornecer a razão última pela qual pão e leite são alimentos apropriados para um ser humano, mas não para um leão ou tigre?

8 Mas essa mesma verdade pode não parecer, à primeira vista, dotada da mesma evidência no caso de acontecimentos que nos são familiares desde que viemos ao mundo, que apresentam uma íntima analogia com o curso geral da natureza, e que supomos dependerem das qualidades simples de objetos sem nenhuma estrutura secreta de partes. No caso desses efeitos, tendemos a pensar que poderiamos descobri-los pela mera aplicação de nossa razão, sem recurso à experiência. Imaginamos que, se tivéssemos sido trazidos de súbito a este mundo, poderiamos ter inferido desde o início que uma bola de bilhar iria comunicar movimento a uma outra por meio do impulso, e que não precisaríamos ter aguardado o resultado para nos pronunciarmos com certeza acerca dele. Tal é a influência do hábito: quando ele é mais forte, não apenas encobre nossa ignorância, mas chega a ocultar a si próprio, e parece não estar presente simplesmente porque existe no mais alto grau.

9 Para convencer-nos, entretanto, dc que todas as leis da natureza e todas as operações dos corpos, sem exceção, são conhecidas apenas por meio da experiência, bastarão talvez as seguintes reflexões. Se um objeto nos losse apresentado e fôssemos solicitados a nos pronunciar, sem consulta à observação passada, sobre o efeito que dele resultará, de que maneira, eu pergunto, deveria a mente proceder nessa operação? Ela deve inventar ou imaginar algum resultado para atribuir ao objeto [51] como seu efeito, e é óbvio que essa invenção terá de ser inteiramente arbitrária. O mais atento exame e escrutínio não permite à mente encontrar o efeito na suposta causa, pois o efeito é totalmente diferente da causa e não pode, consequentemente, revelar-se nela. O movimento da segunda bola de bilhar é um acontecimento completamente distinto do movimento da primeira, e não há nada em um deles que possa fornecer a menor pista acerca do outro. Uma pedra ou uma peça de metal, erguidas no ar e deixadas sem apoio, caem imediatamente; mas, considerando-se o assunto a priori, haveria porventura algo nessa situação que pudéssemos identificar como produzindo a ideia de um movimento para baixo e não para cima, ou outro movimento qualquer dessa pedra ou peça de metal?

E como em todas as operações naturais a primeira imaginação ou invenção de um efeito particular é arbitrária quando não se consulta a experiência, devemos avaliar do mesmo modo o suposto elo ou conexão entre causa e efeito que os liga entre si e torna impossível que algum outro efeito possa resultar da operação daquela causa. Quando vejo, por exemplo, uma bola de bilhar movendo-se em linha reta em direção a outra, mesmo supondo-se que o movimento da segunda bola seja acidentalmente sugerido à minha imaginação como resultado de seu contato ou irtapulso, não me seria porventura possível conceber uma centena de outros diferentes resultados que se seguem igualmente bem daquela causa? Não poderíam ambas as bolas permanecer em absoluto repouso? Não podería a primeira bola recuar em linha reta ou saltar para longe da segunda em qualquer curso ou direção? Todas essas suposições são consistentes e concebíveis. Por que, então, deveriamos dar preferência a uma suposição que não é mais consistente ou concebível que as demais? Todos os nossos raciocínios a priori serão para sempre incapazes de nos mostrar qualquer fundamento para essa preferência.

Em uma palavra, portanto: todo efeito é um acontecimento distinto de sua causa. Ele não podería, por isso mesmo, ser descoberto na causa, e sua primeira invenção ou concepção a priori deve ser inteiramente arbitrária. E mesmo após ter sido sugerido, sua conjunção com a causa deve parecer igualmente arbitrária, pois há sempre muitos outros efeitos que, para a razão, surgem como tão perfeitamente consistentes e naturais quanto o primeiro. Em vão, portanto, pretenderiamos determinar qualquer ocorrência individual, ou inferir qualquer causa ou efeito, sem a assistência da observação e experiência.

Podemos, a partir disso, identificar a razão pela qual nenhum filósofo razoável e comedido jamais pretendeu indicar a causa última de qualquer operação natural, ou exibir precisamente a ação do poder que produz qualquer um dos efeitos particulares no universo. Reconhece-se que a suprema conquista da razão humana é reduzir os princípios produtivos dos fenômenos naturais a uma maior simplicidade, c subordinar os múltiplos efeitos particulares a algumas poucas causas gerais, por meio de raciocínios baseados na analogia, experiência e observação. Quanto ás causas dessas causas gerais, entretanto, será em vão que procuraremos descobri-las; e nenhuma explicação particular delas será jamais capaz de nos satisfazer. Esses móveis princípios fundamentais estão totalmente vedados á curiosidade e á investigação humanas. Elasticidade, gravidade, coesão dc partes, comunicação de movimento por impulso — essas são provavelmente as últimas causas e princípios que nos será dado descobrir na natureza, e devemos nos dar por satisfeitos se, por meio de um cuidadoso raciocínio e investigação, pudermos reportar os fenômenos particulares a esses princípios gerais, ou aproximá-los deles. A mais perfeita filosofia da espécie natural apenas detém por algum tempo nossa ignorância, assim como a mais perfeita filosofia da espécie moral ou metafísica serve talvez apenas para descortinar porções inaís vastas dessa mesma ignorância. Assim, o resultado de toda filosofia é a constatação da cegueira e debilidade humanas, com a qual deparamos por toda parte apesar de nossos esforços para evitá-la ou dela nos esquivarmos.

13 Mesmo a geometria, quando chamada a auxiliar a filosofia natural, é incapaz de corrigir esse defeito ou de nos levar ao conhecimento das causas últimas, apesar de toda precisão de raciocínio pela qual é tão justamente celebrada. Cada ramo da matemática aplicada procede a partir da suposição de que certas leis são estabelecidas pela natureza em suas operações, e o raciocínio abstrato é empregado ou para auxiliar a experiência na descoberta dessas leis, ou para determinar sua influência em casos particulares, nos quais essa influência depende, em algum grau preciso, da distância e da quantidade. Assim, é uma lei do movimento, descoberta pela experiência, que o momento ou força de qualquer corpo em movimento é a razão composta, ou proporção, de seu conteúdo sólido e sua velocidade; e, consequentemente, que uma pequena força pode remover o maior obstáculo ou erguer o maior peso se, por meio de algum dispositivo ou maquinário, pudermos aumentar a velocidade dessa força de modo a fazê-la sobrepujar o antagonista. A geometria nos ajuda a aplicar essa lei, forneceu do-nos as dimensões corretas de todas as partes e grandezas que podem entrar em qualquer espécie de máquina; mas a descoberta da própria lei continua devendo-se simplesmente â experiência [60], e todos os raciocínios abstratos do mundo nunca poderíam nos levar a um passo adiante na direção de sua descoberta. Quando raciocinamos a priori e consideramos um objeto ou causa apenas tal como aparece à mente, independente de toda observação, ele jamais poderá sugerir-nos a ideia de algum objeto distinto, como seu efeito, e muito menos exibir-nos a conexão inseparável e inviolável entre eles. Seria muito sagaz o homem capaz de descobrir pelo simples raciocínio que o cristal é o efeito do calor e o gelo o efeito do frio, sem estar previamente familiarizado com as operações dessas qualidades.

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