hedone

hêdoné: prazer

1. As primeiras discussões sobre a possibilidade de o prazer constituir a finalidade última do homem tiveram provavelmente lugar no clima altamente ético — e subjetivista — da geração de Sócrates e dos sofistas. Porém, a evidência direta é errônea e deve recorrer-se geralmente a reconstruções fora dos diálogos platônicos. Por exemplo, no Górgias (491e-492c) Sócrates debate a questão com um sofista que de outro modo seria desconhecido, chamado Cálicles, que advoga a posição hedonística. Fá-lo em termos de uma teoria psico-fisiológica do prazer dos sentidos que esteve aparentemente em voga no século quinto e para além dele, a da privação (kenosis) e plenitude (anaplerosis). Segundo uma teoria médica, apresentada por Alcméon de Crotona, a saúde consistia num estado de equilíbrio (isonomia) dos elementos do corpo (ver Aécio V, 30, 1). Esta teoria tinha vastas implicações filosóficas (ver harmonia, agathon, meson), particularmente na sua adaptação, talvez feita por Empédocles (ver Diels 31A95), para explicar a origem e natureza do prazer. Segundo este ponto de vista a privação (kenosis) de um dos elementos vitais do corpo conduz a um desequilíbrio, e o consequente e penoso sentido de necessidade (endeia) cria o desejo (epithymia, orexis, qq. v.), ou o impulso para uma «plenitude» (anaplerosis) complementar. É esta última correção da natural isonomia do corpo que é responsável pelo prazer.

2. Sócrates usa esta teoria no Górgias para refutar o hedonista radical Cálicles, chamando a atenção para o fato de nesta base o hedonista estar sempre insaciado. A mesma teoria aparece de novo no Timeu 64e-65b (sobre os antecedentes atomistas deste passo, ver pathos). Republica 585a, e Phil. 31b-32b, mas pelo menos nestes dois últimos passos está sobrecarregada de uma crescente consciência do psíquico enquanto oposto à natureza puramente somática do prazer, e à identificação do corpo como um instrumento de prazer (ver Republica 584c, Phil. 41c), distinção que eventualmente permitiu a Aristóteles negar a aplicabilidade da teoria da kenosis – anaplerosis (Ethica Nichomacos 1173b). O que levou a isto foi indubitavelmente o reconhecimento da existência óbvia de um prazer que acompanha atividades intelectuais (Republica 585b-c, Phil. 51e-52a; em ambos estes passos Platão faz uma certa tentativa de adaptar a teoria da kenosis a este novo tipo de prazer, mas sem grande sucesso), do mesmo modo que a análise psicológica mais subtil do papel da memória no prazer da antecipação (Phil. 32b-36c; esta análise conduz, 38a-40e, a uma ulterior discussão da possibilidade de prazeres falsos devidos aos nossos hábitos de «fantasias pintadas» – phantasmata ezographemena).

3. Tendo alargado os horizontes do prazer (verdadeiro/falso, misturado/não-misturado, psíquico/somático) Platão tenta integrá-lo na vida boa no Filebo. A posição puramente hedonística é rejeitada, como no Górgias, do mesmo modo que uma espécie de anti-hedonismo radical (Phil. 44a) negava a existência do prazer. A teoria do próprio Platão é moderada, a vida boa é a «vida misturada», i. e., uma vida que contém tanto o agradável como o intelectual (phronesis; Phil. 20a-b, 59c-61c).

4. Esta posição que tenta reconciliar as pretensões em conflito do hedonismo e do intelectualismo socrático deixa transparecer os desacordos dentro da própria Academia. Sabemos, por Aristóteles, que Espeusipo negara que o prazer fosse de qualquer modo um bem (ver Ethica Nichomacos VII, 1152b, 1153b), uma posição ao que parece referida no Phil. 53c-55d. Espeusipo argumentou que a) o prazer é um processo (genesis) e um processo é um meio e não um fim, e b) sobre a teoria do meio (meson) tanto o prazer como a dor são excessos e por isso não podem ser um bem.

No passo do Filebo Platão coincide no primeiro argumento pelo menos até ao ponto em que diz respeito ao prazer físico, mas não admitia que se refira aos prazeres mais elevados, não misturados, descritos no Phil. 51a-52b. Quanto ao segundo argumento de Espeusipo, de que o bem reside no estágio médio ou neutro entre o prazer e a dor, Platão tem consciência do estágio (Phil. 42c-44a) mas não o vê corno um bem; não está disposto a banir o prazer da vida boa.

5. Nem aceita o hedonismo empírico de um outro acadêmico contemporâneo, Eudóxio, que sustentava que o prazer era o único bem para o homem, dado que todas as criaturas o procuram (Ethica Nichomacos X, 1172b). Este não é exatamente o ponto de vista hedonístico apresentado por Filebo que havia sugerido (Phil. 60a-b) que todos os homens deviam procurar o prazer dado que ele é o bem mais alto, e embora a presença do prazer na vida boa de Platão no Filebo e a admissão correlata de que a phronesis não é um fim inteiramente suficiente para o homem (Phil. 27b) possa ser uma concessão à força do ponto de vista de Eudóxio, a linha contra o hedonismo é firmemente sustentada.

6. Eudóxio é escolhido por Aristóteles como exemplo da escola hedonista, provavelmente devido à longa associação desta última com a Academia. Mas um proponente desta posição ainda mais proeminente, um dos próprios contemporâneos de Platão, foi Aristipo, fundador do grupo cirenaico, cujo hedonismo, se fosse melhor conhecido por nós, era pelo menos tão radical como o de Eudóxio. O prazer é o fim de toda a atividade e o objeto de toda a escolha como se prova pela nossa opção instintiva e espontânea do prazer. Assim, todo o prazer é bom e os prazeres físicos melhores do que os da alma (D. L. II, 87-88). E além disso, uma vez que a felicidade, i. é., o prazer calculado por uma vida, é uma espécie de desilusão visto que só o presente é real, cada momento de prazer deve ser procurado por si próprio (Eliano, Var. hist. XIV, 6).

7. Aristóteles, fiel ao seu método histórico (ver endoxon), revê tanto as posições hedonistas (Ethica Nichomacos X, 1172a-1174a) como as anti-hedonistas (ibid. VII, 1152b-l 154b). Não se satisfaz com nenhumas nem, de fato, com as objeções postas por Platão. Nega que o prazer seja um processo (ibid. X, 1173a-b), mas acharia preferível chamar-lhe uma atividade (energeia) ou, mais amplamente (ibid. VII, 1153a), «uma atividade não embaraçada com um estado (hexis) característico em concordância com a natureza». De acordo com esta definição o estatuto moral dos hedonai é realizado em termos de energeiai com as quais cada um está propriamente associado. Primeiro, o prazer é um todo, completo em cada momento do tempo, muito semelhante ao ato de ver (ibid. X, 1174b). O prazer é algo que é sobreposto a, e completa uma atividade quando esta não é obstruída, v. g. por um defeito no sujeito ou objeto dessa atividade (ibid. X, 1174b). Eudóxio quase tinha razão: todos os homens parecem de fato desejar o prazer, mas é porque todos os homens desejam viver e o prazer completa a atividade básica do viver; é a vida que é desejável, não o prazer (ibid. X 1175a). Em resumo, são as atividades que são boas ou más, não os seus prazeres sobrepostos (ibid. X, 1175b).

8. Destes pontos de vista diversos, resulta o hedonismo de Epicuro. Como Eudóxio ele é um hedonista de base empírica: o prazer é o bem procurado pelos homens (D. L. X, 128). Mas a prova é a mais sofisticada de Aristipo que aponta para o comportamento instintivo e não aprendido (D. L. X, 137); ver Sexto Empírico, Adv. Math. XI, 96). Aqui há uma correlação com a sua teoria da sensação (aisthesis) baseada no atomismo: tal como a sensação é o critério da verdade, assim também os movimentos ou experiências (pathe) do prazer e da dor, que são concebidos como tipos de deslocação atômica (Lucrécio II, 963-966), servem como critérios do bom e do mau, visto que o prazer é aquilo que é natural, tal como o bem, enquanto a dor é contrária à natureza, da mesma forma que o mal (D. L. X, 34).

9. Epicuro aceita a análise kenosis – endeia – epithymia – anaplerosis do prazer e da dor (D. L. X, 144; confrontar Lucrécio IV, 858-876) e insiste na primazia dos prazeres físicos, particularmente os do estômago (Ateneu XII, 546). Também aceita o corolário de que o prazer, sendo físico, deve ser medido pela quantidade (poson) e não pela qualidade (poion; cf. Eusébio, Praep. Evang. XIV, 21, 3). Mas ao submeter o processo a uma análise ainda mais aturada, Epicuro detecta um outro tipo de prazer mais puro além do corretivo «preenchimento» de uma necessidade física que está, afinal, sutilmente misturada com a dor (ver o comentário perceptivo de Sócrates no Fédon 60b). Este prazer mais puro não é então o prazer cinético da anaplerosis, mas o prazer estático (katastematike) do equilíbrio, a ausência de dor (algos) do corpo (aponia) e a ausência de perturbação da alma (ataraxia) (D. L. X, 131). Esta posição fica a dever bastante ao estado neutro de Espeusipo (ver Clemente de Alexandria, Strom. II, 22, 133), mas o que é evidente é que Epicuro se afastava da explicação mais mecânica de Aristipo que só sustentou o prazer cinético (D. L. X, 136) e desprezou o lado psíquico do prazer. Epicuro, por outro lado, visto que defendeu firmemente a realidade experiencial do passado e do futuro, posição que salienta os prazeres mentais (e as dores), desvia o foco da ênfase do «momento agradável» para «a vida feliz» (D. L. X, 137, 133). Assim é a atividade do espírito que detém as chaves, isto é, a memória e a imaginação, do prazer ao longo de toda a vida feliz, e que controla e tempera o hedonismo epicúreo. [FEPeters]