Groddeck: sou vivido pelo Isso

nossa tradução

Estas considerações tratam do Isso. Em vez da proposiçãoeu vivo”, eles defendem a ideia: “Sou vivido pelo Isso”.

À pergunta: o que e o Isso, não posso responder. Mas estas poucas observações indicarão como entender o que segue.

1. A criança de três anos fala de si mesma na terceira pessoa; ele se põe ao lado de si mesma e faz como se uma personalidade estranha, vivida por algo outro, se escondesse em sua pele. A palavra e o conceito “eu”, a criança não os entende senão tardiamente, enquanto ela pensa e age razoavelmente desde muito tempo. Este fato fundamental nunca deve ser esquecido. Ele sugere que o eu é apenas um modo de manifestação, uma expressão do Isso.

2. No momento do nascimento, a criança começa a respirar. Ela age de maneira adequada e, em se adaptando ao seu novo meio vital, a atmosfera, ele executa um ato que denota – assim que o consideramos sem preconceitos – tanta reflexão quanto, por exemplo, a fuga de um homem fora de uma casa em chamas. Surge então a questão da diferença entre a vida consciente e a inconsciente; e temos que nos perguntar se tudo o que geralmente consideramos como manifestação consciente da personalidade não é a ação oculta do inconsciente, disso uma das regras é a compulsão de auto-mistificação.

3. O esperma e o óvulo humanos dão nascimento a um homem, não um cachorro ou um pássaro; um Isso é/está neles que compele a formação do homem e edifica seu corpo e sua alma. E o Isso dota sua criatura – a personalidade, o ego do homem –, com nariz, boca, músculos, ossos e cérebro; torna estes órgãos capazes de funcionar, exercita-os antes do nascimento e faz cumprir ao homem em gestação os atos adequados antes mesmo que seu cérebro seja formado. Temos que nos perguntar se o Isso, capaz de coisas tão grandes, também não pode construir igrejas, compor tragédias ou inventar máquinas, e se alguma manifestação da vida humana, corporal ou espiritual, saudável ou doente, pensamento, ação ou função vegetativa, não poderia ser reduzida ao Isso – de sorte que o corpo, a alma e a vida consciente seriam uma ilusão, uma auto-mistificação.

Os homens sempre tiveram uma intuição para a existência do Isso, e sua exploração não cessou de os preocupar, isto é comprovado pela filosofia e religião, bem como pela vida cotidiana. Com a psicanálise, Freud nos deu uma maneira de perceber o mistério e transcrevê-lo. Gostaria de tornar suas ideias mais familiares aqui, mas se eu falhar, peço ao leitor que pense que este livro não foi escrito por Freud e que a psicanálise não pode ser responsabilizada pelo balbuciar de um só.

É de propósito, e não por modéstia, que uso essa palavra balbuciar: quando se fala do Isso, com efeito, só se pode balbuciar. A dificuldade de se fazer compreender já resulta do fato de que as palavras corpo, alma, eu, personalidade devem ser banidas destas considerações; ou pelo menos dar a elas um significado novo e incomum, e é impossível. No primeiro exame, descobrimos até que todas as definições, todos os conceitos, quando os confrontamos ao Isso, se tornam flutuantes, porque contêm símbolos e que, como resultado da compulsão de associação, eles interpenetram e formam complexos mais ou menos bem delimitados.

[…]

Essa suposição, a saber, que somos vividos por um Isso, destrói toda uma série de conceitos com os quais estamos acostumados a pensar. Já notei que não há corpo nem alma para o Isso, porque ambos são apenas modos de manifestação desse ser desconhecido; que o eu, a individualidade, se tornam duvidosos, pois o Isso pode ser descerrado desde a fertilização e, além, na cadeia de todos os ancestrais. Mas deste modo desaparecem toda limitação temporal, o fim como o começo desaparecem na noite dos tempos. Vida e morte deixam de ser oposições reais para se tornarem conceitos arbitrários, pois ninguém pode reconhecer o momento em que o Isso faz nascer ou morrer. A delimitação espacial não vale para o Isso, ele se espalha nisto que o cerca e não se pode indicar o ponto em que um pedaço de pão, um gole de água, uma lufada de ar, um objeto do visão, olfato, paladar, tato tornam-se propriedade do Isso. As distinções de sexo perdem nitidez; no Isso humano, homem e mulher estão desde sempre presentes e se misturam novamente quando da fertilização. A determinação da idade é impossível, pois no Isso há componentes de cada período de idade vivida, não apenas desde a fertilização, mas desde as primeiras idades. Enfim, e isto é o essencial, o consciente do homem perde sua posição central, a cede ao inconsciente, mas sem que seja possível encontrar entre eles uma linha precisa de demarcação.

O caminho que segui conduz evidentemente à proposição “tudo é um”. Mas isso não serve ao meu propósito e, para abordar a essência do Isso, devo inventar temporariamente um Isso-indivíduo artificial, limitado no tempo e no espaço e sujeito à vida e morte, o Isso de um homem. Reservo-me o direito de lembrar de tempos em tempos que essa extração do todo não é imaginada senão para certos fins. E farei bom uso do fato de que o indivíduo não é nem homem nem mulher, mas os dois; que ele não tem idade precisa, mas simultaneamente um, dez e trinta anos; que o que acessa ao consciente depende da autorização do inconsciente. Quem duvida que seja sexo, idade e razão, como indiquei, precisa apenas pedir à primeira mulher vinda se alguma vez encontrou um homem que fosse inteiramente homem; ou não importa a que homem, se ele encontrou um ser que fosse inteiramente mulher.

Que ele observe o adulto se, em sua atitude, seus movimentos, sua expressão, suas ações e seus pensamentos, ele não é subitamente uma criança. Que ele ouça a voz de seu interlocutor se, no meio de uma frase, não se tornar aguda como aquela de uma criança. Que ele sonhe que respiramos, dormimos, comemos, bebemos, rimos e choramos, como sempre fizemos. Que ele pense que, com toda a nossa vontade e razão, não podemos digerir o menor pedaço de pão; que não permitimos penetrar no consciente senão uma fração miserável de tudo o que vemos e ouvimos; que mal sabemos o que nossas mãos fazem, e quase nunca, se nossa caixa torácica está cheia ou vazia; que nossos pensamentos, nossas atos e nossa linguagem repousam sobre bases que foram lançadas em nossa mais tenra infância.

Roger Lewinter