Graças a…

(Monticelli1997:213-216)

Vamos partir de alguns versos extraídos de um fragmento de um hino “homérico”:

Quero começar cantando as Musas, Apolo e Zeus: é graças às Musas, na verdade, e a Apolo que vivem na terra poetas, acompanhados da cítara; e também graças a Zeus que existem reis. Feliz aquele a quem as Musas amam: doce é a voz que flui de sua boca. Salve, filhas de Zeus; e dignai-vos favorecer meu canto: eu me lembrarei de vós, e ainda de outro canto. (Hinos Homéricos, XXV, Às Musas e a Apolo).

[214] Vamos nos concentrar exclusivamente no significado de uma pequena palavra que aparece duas vezes no fragmento (1 e 4): a palavra ek 1. “Graças às Musas”, “graças a Zeus”: esta é a tradução que propomos, seguindo a tradução italiana de S. Mandruzzato 2. Ela concentra em uma única palavra a gratidão que faz nascer o canto, a graça que o concede e que torna doce a voz que flui da boca do poeta, amado pelas Musas, e a origem das vidas das quais se fala — apenas algumas entre as vidas eminentes possíveis, as dos reis e as dos poetas. A origem: isto é, a proveniência e a pertença (ek); mas também a fonte, ou seja, o princípio imóvel e ainda assim perpetuamente jorrante do qual “flui” o logos: como palavra que impõe uma norma e leis — as dos reis —, mas também como voz que “recorda” e “acorda”, “acompanhada pela lira”, a vida multiforme dos deuses e dos homens (“ainda outro canto”…).

“Graças a” — portanto, “em virtude de”, “por causa de”. Em uma única preposição, ek, pensamos em uma proveniência, uma pertença, uma derivação e um surgir ou nascer — ou então, como em grego, em um “vir a ser”. “Graças a… vivem”: esse ser é viver, e viver no ato e no modo que é próprio à vida em questão — esse “cantar”, agora. De que tipo de causa se trata? Causa essendi, ou “substância” de vida: o que dá vida, não de uma vez por todas, mas enquanto se vive. É por isso que se lê que os poetas “vivem”, não que nasceram, nem que existem poetas. Substância de vida, ou seja, aquilo de que se vive. Essa relação de dependência, no entanto, somos convidados a entendê-la ao mesmo tempo como uma relação de reconhecimento: reconhece-se o deus para o qual se vive. “Cada um reconhece os seus semelhantes”. Reconhece-se, nesse sentido da palavra, aquilo com que se tem afinidades, ou em relação ao qual se é syngeneis: ao pé da letra, “gerados” ou melhor, “gerando-se juntos” — ou existindo ambos no ato em que se é o que se é — poeta, ou rei, ou outra coisa… O próprio Apolo tem a lira e Zeus governa, impõe as leis. Se se diz “causa de ser”, é preciso então especificar: de ser segundo seu modo próprio, segundo sua própria essência. Mas como tal essência é [215] “própria”? Certamente não como é própria a Zeus, que é a origem, o princípio, a fonte da legalidade. Essa essência é apenas dada, entregue, recebida — “participada” — mas em que medida? Em certa medida. Aquilo com que se descobre afinidades é aquilo a que se assemelha apenas, não o que se é: antes, o que se “imita” na medida do possível quando se é mais intensa ou essencialmente si mesmo. A própria essência é aquilo a que se corresponde imperfeitamente, é o que se é apenas em certa medida… e no entanto, se não a recebemos como dom enquanto possibilidade própria, só poderíamos falsificá-la, simulá-la ou copiá-la. Não é “graças” a Apolo que o mundo está cheio de falsos poetas, falsos profetas, falsários…

E ainda, em que sentido uma essência dada é “própria”, em que sentido pertence a alguém? Zeus é um e há vários reis. Uma é a Memória, e uma é cada uma de suas filhas, mas há tantos seguidores de cada uma das Musas. Há uma só Calíope, mas muitos poetas. Na verdade, dar-se-á esse nome a muitos. Todavia, o poeta que canta agora, apenas “recordando-se” de seu deus, “e ainda de outro canto”, “viverá a vida” que lhe é mais própria, será ele mesmo, poderá pedir “glória” (imortalidade) por seu “canto”. De certo modo, ele se recordará de si mesmo. Essa essência que pertence a tantos outros, e que o espírito entende como um “universal”, só é verdadeiramente dada “em si mesma” quando é dada em nós mesmos, e é nossa própria vida. Essa parece, pelo menos, a conclusão do fragmento: no ato de saudar seu deus, o poeta se despede na primeira pessoa, dizendo “eu”.

Talvez uma linguagem tão platonizante surpreenda neste comentário. Talvez não agrade aos amantes da cultura grega arcaica, tão alheia às complicações intelectuais quanto às consolações espirituais do platonismo. Mas por que não tentar inverter os termos do problema? Se é possível ler um hino homérico passando por Platão, talvez seja mais legítimo encontrar uma fonte do pensamento platônico nessa “teologia” poética. A primeira vem tão espontânea e naturalmente em auxílio da leitura desses versos, ou de outros semelhantes, que não se pode resistir à impressão de caminhar sobre um rastro já marcado em cada ponto, como se o próprio Platão tivesse passado por ali com sua luz. Este estudo, no entanto, não gostaria de se apresentar como um trabalho de arqueologia. É antes uma tentativa de reunir em um único movimento de pensamento um [216] sentimento da origem (ek) que se expressou em todos os tempos, e que talvez constitua uma fonte do pensamento filosófico — ou pelo menos de uma certa maneira de entendê-lo e praticá-lo. Uma fonte tanto mais viva quanto ignora todo dogma e toda doutrina teológica antiga ou menos antiga: a história dessas doutrinas mostra, aliás, que elas pressupõem tal fonte, e ao mesmo tempo dela se tornam gradualmente autônomas, até se transformarem em meras construções verbais vazias.

  1. «ek gar Mousaion kai ek aeiballont ‘Apollonou»[]
  2. F. CASSOLA (ed.). Inni omerici. Fondazione Valla, Mondadori, Milano 1971[]