Maffesoli1996
Para retornar à metáfora da porta, do fechamento, pode-se dizer que um grupo se constitui a partir de um lugar. Esse pode ser errante, e, a esse respeito, a imagem da tribo não deixa de ser esclarecedora. Pode-se acrescentar que nossas cidades contemporâneas podem ser uma justaposição desses lugares tribais. Na deriva psicogeográfica 1, durante os anos sessenta, os situacionistas haviam enfatizado essa justaposição. As “situações” geradas no interior de um pequeno grupo dado, ou entre esse grupo e outros indivíduos que lá se encontravam, eram determinadas pela passagem rápida de um lugar a outro. Era o ambiente desse ou daquele lugar, sua textura, o fato de que ele fosse “mudo” ou que “falasse”, que garantia a qualidade da “situação” intersubjetiva. Essa deriva, herdeira do surrealismo, acentuava, assim, a reversibilidade existente entre o conjunto humano e o conjunto de pedras. Essas práticas lúdicas são, com certeza, paroxísticas, elas eram, aliás, consideradas práticas de laboratório, mas, ao mesmo tempo, insistindo na dimensão estética da vida, no fato de [270] viver a arte no cotidiano, eram premonitórias da divagação, através de uma sucessão de lugares característicos da socialidade contemporânea. Há aí um paradoxo que é preciso encarar de frente: o de um enraizamento dinâmico. Pertence-se inteiramente a um lugar dado, mas nunca de uma maneira definitiva.
Heidegger propõe uma noção que pode esclarecer nosso propósito. Trata-se do termo Er-örterung que pode ser traduzido por “situação” ou “atribuição a um sítio”. “O que chamamos sítio é o que reúne nele o essencial de uma coisa”2. Sem entrar numa exegese do texto, e sem ser siderado por sua expressão gótica, pode-se reconhecer no “sítio” a cristalização espaço-tempo que me ocupa ou, ainda, a reversibilidade entre um lugar e os que o ocupam. Seja através dos grandes “pontos-altos” emblemáticos, ou pequenos “pontos-altos” cotidianos, atravessamos, intencionalmente ou não, uma série de sítios, uma série de situações que desenham uma geografia imaginária, que permitem me acomodar (no seu sentido ótico) ao ambiente físico que me é dado, e que, ao mesmo tempo, construo simbolicamente. É esse “travelling” incessante, através de múltiplos espaços, que é certamente a característica da cidade contemporânea. Não resta dúvida de que esse travelling repousa sobre um ponto de unificação: ele opera-se sempre em relação com outros. Sempre o primum relationis. O sítio é vivido com outros. É isso mesmo o que lhe confere sua carga religiosa, o que faz dele um espaço sagrado.
É preciso, a esse respeito, lembrar-se de que, tradicionalmente, cada território, cada país tinha seu “deus local”. É o numem loci. Pôde-se até mostrar que a pregnância, num dado território, do “deus local” era tão forte, que os estrangeiros, vindo se instalar, eram levados a adotá-lo 3. Vê-se, assim, de [271] um modo paroxístico, que a divindade do lugar serve de cimento societal. O deus ocupa o terreno antes do homem, ele “informa-o”, portanto, da maneira como deve se comportar aqui e agora, como deve viver e pensar. Encontra-se essa perspectiva, um pouco profanizada na ideia do genius loci, ο gênio do lugar, inspirador do artista, do poeta ou do homem recém-chegado. O que é certo é que, sem entrar no problema da anterioridade, na discussão de quem veio primeiro, o deus local ou os homens, pode-se concordar sobre a força “espiritual” ligada a esse ou aquele lugar. Montparnasse, Pigalle, o Marais é, ao mesmo tempo, um lugar e um espírito. E po-der-se-ia à vontade desfiar um rosário de nomes de encantos evocadores: Shinjuku, Copacabana, Manhattan, Kreuzberg, Trastevere, etc. É longa a lista dos “pontos-altos” que se pode, fantasmática ou fisicamente, investir. E, como eco, encontra-se algo semelhante em todos esses pequenos “pontos-altos” que vêm aninhar-se no seio das grandes megalópoles, como tantos abrigos matriciais onde posso viver, perambular, passar o tempo com outros. Cada um desses pequenos pontos-altos pode ser substantivado, cada um torna-se um “lugar falado”, de nome conhecido por um maior ou menor número de iniciados.
É essa a lição do gênio do lugar: acentuar o ethos ligado a um espaço. Por meio dos pequenos rituais da existência cotidiana, como para o que diz respeito aos grandes acontecimentos que pontuam a vida pública. Sou de um mundo que partilho com outros. Mundo emocional, mundo afetual que dá todo o seu sentido e toda a sua força à expressão ética da estética.
- Cf. Internationale Situationiste Revue. Ed. Van Gennep, Amsterdã, 1972. Uma outra edição está também disponível nas ed. Gérard Lebovici.[↩]
- M. Heidegger, Le principe de raison. Paris, Gallimard, 1962, p. 145.[↩]
- Cf., sobre o assunto, o exemplo da Samana, dado por A. Abecassis, La pensée juive. Paris, 1987, t. 2, p. 45-46.[↩]