Foucault Fenomenologia

Foucault – fenomenologia e hermenêutica
Excerto de [Hubert Dreyfus & Paul Rabinow – Michel Foucault – uma trajetória filosófica]

A fenomenologia transcendental de Husserl deu origem ao contra-movimento existencialista, liderado na Alemanha por Heidegger e por Merleau-Ponty na França. Foucault foi influenciado pelo pensamento destes dois fenomenólogos existencialistas. Na Sorbonne, assistiu à explicação de Merleau-Ponty daquilo que ele chamaria mais tarde fenomenologia da experiência vivida. Em suas conferências e no seu influente livro, Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty tentou mostrar que o corpo vivido mais do que o ego transcendental organizava a experiência, e que o corpo, como um conjunto integrado de habilidades, não era submetido ao tipo de análise intelectualista, através de regras, desenvolvidas por Husserl. Foucault também estudou a clássica reelaboração da fenomenologia feita por Heidegger, em Ser e Tempo, e apresentou favoravelmente a hermenêutica ontológica de Heidegger, em seu primeiro trabalho publicado, uma longa introdução a um ensaio do psicanalista heideggeriano, Ludwig Binswanger. (Binswangen Ludwig. Le Rire et L’existence. Trad. Jacqueline Verdeaux. Introdução e notas M. Foucault, Paris, Desclée de Brower, 1956.)

A fenomenologia de Heidegger enfatiza a idéia de que os sujeitos humanos são formados pelas práticas histórico-culturais nas quais eles se desenvolvem. Estas práticas formam um background que não pode nunca tornar-se completamente explícito, e assim não pode ser entendido em termos das crenças do sujeito doador de sentido. As práticas que constituem este background podem, entretanto, conter um sentido. Elas incorporam uma maneira de compreender e lidar com as coisas, pessoas e instituições. Heidegger chama de uma interpretação este sentido existente nas práticas, e propõe tornar manifestas certas características gerais desta interpretação. Em Ser e Tempo ele chama este método, que consiste em dar uma interpretação à interpretação incorporada às práticas cotidianas, hermenêutica. O uso deste termo por Heidegger remonta a Schleiermacher, que com ele indicava a interpretação do sentido dos textos sagrados, e a Duilthey que aplicou o método interpretativo de Schleiermacher à história. Heidegger, ao generalizar o trabalho de Dilthey e ao desenvolvê-lo com o objetivo de criar um método geral de compreensão do ser humano, introduziu o termo e a abordagem no pensamento contemporâneo.

De fato, existem duas maneiras diferentes de investigação hermenêutica em Ser e Tempo, correspondendo a Divisão I e Divisão II. Cada uma delas foi desenvolvida por uma das duas escolas de filosofia contemporânea que chama seu trabalho de hermenêutica.

Na Divisão I, Heidegger elabora o que ele denomina “uma interpretação do Dasein” na sua “cotidianidade” (Heidegger, Martin. Being and Time, Nova York, Harper and Row, 1962, p. 76.). Lá ele expõe o modo pelo qual o Dasein se interpreta em sua atividade cotidiana. Este “entendimento primordial” de nossas práticas e discursos cotidianos, não percebido pelos agentes destas práticas, mas por eles reconhecido, se lhes fosse chamada a atenção, é tema de recentes investigações hermenêuticas. O sociólogo Harold Garfinkel (Cf. Garfinkel, Harold. Studies in Ethnometodology, Englewood Cliffs, N J., Prentice Hall, 1967) e o cientista político Charles Taylor (Cf. Taylor, Charles. “Interpretation and the Sciences of Man”, in P. Rabinow e W. Sullivan (eds.), Interpretative Social Sciences, Berkeley, University of California Press, 1973) se identificam explicitamente com tal método hermenêutico. Uma ramificação deste tipo de hermenêutica do cotidiano é a aplicação deste mesmo método a outras culturas (por exemplo, o trabalho antropológico de Cliford Geertz – Cf. Geertz, Clifford. The Interpretation of Cultures, Nova York, Harper and Row, 1973) ou a outras épocas de nossa cultura (a aplicação do que agora Tomas Kuhn explicitamente chama método hermenêutico da física aristotélica – Cf. Kuhn, Thomas S. The Essential Tension, Chicago, University of Chicago Press, 1977, p. XIII).

Na Divisão I do Ser e Tempo Heidegger mostra que o entendimento das nossas práticas cotidianas é parcial e conseqüentemente distorcido. Essa limitação é corrigida na Divisão II, onde a interpretação da Divisão I não é levada em conta pelo que apresenta à primeira vista, mas como um mascaramento motivado da verdade. De acordo com Heidegger:

O tipo de ser do Dasein (…) exige que qualquer interpretação ontológica que se coloca a finalidade de exibir o fenômeno em sua primordialidade deveria apreender o ser desta entidade, apesar da tendência desta própria entidade de encobrir as coisas. A análise existencial, portanto, constantemente tem a característica de violentar, tanto, as afirmações da interpretação cotidiana, quanto a sua complacência e tranqüila obviedade. (Heidegger. Being and Time, p. 359)

Heidegger acredita descobrir que a verdade profunda, escondida pelas práticas cotidianas, é a perturbadora falta de fundamento da maneira de ser que é, por assim dizer, sempre interpretação. Esta “descoberta” é um exemplo do que Paul Ricoeur chamou hermenêutica da suspeita. Poderíamos ter acreditado que a verdade fundamental oculta fosse a luta de classes, conforme desvendado por Marx, ou os desvios e as transformações da libido, conforme revelado por Freud. Em qualquer destes casos, alguma autoridade que já tenha visto a verdade deve conduzir o indivíduo iludido a vê-la também. Em Ser e Tempo esta autoridade é chamada voz da consciência. Ademais, em cada caso o indivíduo deve confirmar a verdade desta interpretação profunda, reconhecendo-a. E visto que em cada caso o sofrimento é causado pelas defesas repressivas, encarar a verdade resulta em alguma espécie de liberação; seja pelo aumento de flexibilidade que advém da compreensão de que nada é fundamentado e de que não há linhas diretrizes, como sustenta Heidegger, seja pelo poder liberado através da compreensão de que sua classe é explorada, ou ainda a maturidade ganha por encarar os segredos profundos da própria sexualidade.

Hans-Georg Gadamer, em Verdade e Método (Gadamer, Hans-Georg. Truth and Method, Nova York, Seaburyy Press, 1975) dá à hermenêutica profunda uma direção mais positiva, como um método de reapropriação dos entendimento profundo do Ser, preservado em práticas lingüísticas tradicionais. De acordo com Gadamer, reinterpretar esta verdade salvadora é a nossa única esperança em face do niilismo.

Foucault não está interessado em recuperar a não percebida auto-interpretação cotidiana do homem. Ele concorda com Nietzsche e com a hermenêutica da suspeita que tal interpretação está certamente iludida acerca do que está realmente acontecendo. Foucault não acredita que uma verdade profunda oculta seja a causa da interpretação equivocada incorporada ao nosso auto-entendimento cotidiano. Ele apreende todas estas posições, assim como a de Gadamer, num nível de abstração apropriado quando define o que chama de comentário … como a retomada através do sentido manifesto de um discurso, de um sentido ao mesmo tempo secundário e primário, isto é, mais escondido porém mais fundamental”. (Foucault, M. Les Mots et les choses, p, 384) Considerar assim a interpretação, ele afirma, “nos condena a uma tarefa infindável… (porque ela) repousa no postulado de que a fala é um ato de ‘tradução’ (…) uma exegese, que escuta (…) a palavra de Deus sempre secreta, sempre além de si mesmo”. (Faucault, M. Naissance de la clinique. Une archéologie du regard médical. Paris, PUF, Gallien, 1963) Foucault descarta esta abordagem com a observação: “Por séculos temos esperado em vão pela decisão da Palavra de Deus.” (Ibidem)

Obviamente, a terminologia nesta área não é só confusa como causa confusão. Em nossa discussão separaremos os vários tipos de interpretação ou exegese usando “hermenêutica” como um amplo termo neutro, “comentário” para a recuperação de significados e verdades oriundas de nossas práticas cotidianas e das de outra época ou cultura, e “hermenêutica da suspeita” para a busca de uma verdade profunda que foi propositalmente escondida.

Veremos, ao acompanhar as diferentes estratégias de Foucault para o estudo dos seres humanos, que ele constantemente procurou se mover além das alternativas que acabamos de discutir — as únicas alternativas que sobraram para aqueles que ainda estão tentando compreender os seres humanos dentro da problemática deixada pela ruptura da perspectiva humanista. Ele tentou evitar a análise estruturalista que eliminava totalmente a noção de sentido, substituindo-a por um modelo formal de comportamento humano que apresenta transformações, governadas por regras, de elementos sem significado; ele tentou evitar o projeto fenomenológico de ligar todo o sentido à atividade de dar sentido de um sujeito autônomo e transcendental; e, finalmente, evitar a tentativa do comentário de ler o sentido implícito das práticas sociais, assim como o desvelar feito pela hermenêutica de um sentido diferente e mais profundo do qual os atores sociais têm uma vaga consciência.

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