Filosofia, Moeda, Valor

Mas não é somente nas estruturas políticas que se inscrevem mudanças mentais análogas às que parecem constituir, desde que se as limite ao único domínio da filosofia, o incompreensível advento de uma razão estranha à história. Sem falar do direito e da arte, uma instituição econômica como a moeda testemunha, no seu desenvolvimento, transformações que não carecem de relações com o nascimento do pensamento racional. Basta recordar o estudo de Louis Gernet sobre as implicações míticas do valor nos antigos símbolos premonetários na Grécia1. O agalma, — vaso, joia, trípoda, roupas, — produto de uma indústria de luxo, desempenha um papel de troca em uma forma de comércio nobre: por seu intermédio, opera-se uma circulação de riquezas móveis. Mas, neste sistema pré-monetário, a função de troca não se apresenta ainda como categoria independente, suscetível de ser objeto de um conhecimento positivo, em um pensamento propriamente econômico. O valor de objeto precioso continua integrado nas virtudes sobrenaturais de que o imaginam carregado. O agalma veicula, fundidos em um mesmo simbolismo de riqueza, poderes sagrados, prestígios sociais, laços de dependência entre os homens; a sua circulação através de dons e de trocas, empenha as pessoas e mobiliza forças religiosas, ao mesmo tempo que transmite a posse de bens.

A moeda em sentido próprio, moeda cunhada, garantida pelo Estado, é uma invenção grega do século VII a.C.2. Desempenhou em toda uma série de planos um papel revolucionário. Acelerou o processo de que ela mesma é o efeito: o desenvolvimento, na economia grega, de um setor comercial extensivo a uma parte dos produtos de consumo corrente. Permitiu a criação de um novo tipo de riqueza, radicalmente diferente da riqueza em terras e em rebanhos, e de uma nova classe de ricos cuja ação foi decisiva na reorganização política da Cidade. Produziu, no plano psicológico e moral, um verdadeiro efeito de choque de que se distingue o eco dramático na poesia de um Teógnis e de um Sólon3. Se o dinheiro faz o homem, se o homem é desejo insaciável de riqueza, é toda a imagem tradicional da arete, da excelência humana, que se encontra abalada. E a moeda stricto sensu não é mais, como no Oriente, uma barra de metal precioso que se troca por qualquer espécie de mercadoria, porque oferece a vantagem de se conservar intacta e de circular facilmente; tornou-se um signo social, o equivalente e a medida universal do valor. O uso geral da moeda cunhada conduz a elaborar uma noção nova, positiva, quantificada e abstrata do valor.

Para apreciar a amplitude desta inovação mental, bastará comparar duas atitudes extremas. Primeiramente, o que evoca um termo como tokos que designa o juro do dinheiro. Ligado à raiz tek —, “gerar, engendrar”, assimila o produto do capital ao aumento natural de um rebanho que se multiplica ao ritmo das estações por uma reprodução natural, da ordem da physis4. Mas, na teoria elaborada por Aristóteles, a reprodução do dinheiro pelo juro e usura converte-se no tipo mesmo de fenômeno contrário à natureza; a moeda é um artifício humano que, para a comodidade das trocas, estabelece entre valores realmente diferentes a aparência de uma medida comum. Há na forma da moeda, mais ainda do que na Cidade, uma racionalidade que, operando no plano do puro artifício humano, permite definir o domínio do nomos.

Tem-se o direito de ir mais além e de supor, como George Thomson, um laço direto entre os mais importantes conceitos da filosofia, o Ser, a Essência, a Substância, e, se não a própria moeda, pelo menos a forma abstrata de mercadoria que ela confere, através da venda e da compra, a toda a diversidade das coisas concretas trocadas no mercado5? Uma posição teórica como a de Aristóteles parece-nos dever já precaver-nos contra a tentação de transpor de uma maneira demasiado mecânica as noções de um plano de pensamento a um outro6.

O que, para Aristóteles, define a essência de uma coisa natural ou artificial é o seu valor de uso, o fim para que ela foi produzida. O seu valor mercantil não depende da realidade, da ousia, mas de uma simples ilusão social7. Só um sofista como Protágoras poderá aceitar a assimilação da coisa, na sua realidade, com o valor convencional que o juízo dos homens lhe confere, através da forma da moeda. O relativismo de Protágoras, que se exprime em um enunciado do tipo: “o homem é a medida de todas as coisas”, traduz esta constatação de que o dinheiro, puro nomos, convenção humana, é a medida de todos os valores. Mas é bem significativo que, em Platão, cuja filosofia prolonga o pensamento de Pitágoras e de Parmênides, a personagem do sofista simboliza precisamente o homem que permanece ao nível do não-ser, ao mesmo tempo que se define como um traficante entregue às ocupações mercantis8.

É verdade que o termo ousia, que, no vocabulário filosófico, designa o Ser, a Substância, significa igualmente o patrimônio, a riqueza. Mas, como salientou Louis Gernet, a analogia não faz senão sublinhar mais ainda as direções opostas em que o pensamento operou na perspectiva dos problemas filosóficos e ao nível do direito e das realidades econômicas9. No sentido econômico, a ousia é, em primeiro lugar e antes de tudo, o kleros, a terra, o patrimônio por muito tempo inalienável, que constitui como que a substância visível de uma família. A este tipo de bem aparente, ousia ousia phanera, opõe-se, segundo uma distinção usual, se bem que um tanto imprecisa, a categoria da ousia aphanes, do bem inaparente, que, além de créditos e de hipotecas, compreende por vezes o dinheiro líquido, a moeda. Nesta dicotomia, há entre os dois termos diferença de planos: o dinheiro é desvalorizado em relação à terra, bem visível, estável, permanente, substancial, que só ele possui um status de plena realidade e cujo “preço” se colore de um valor afetivo e religioso. Neste nível do pensamento social, o Ser e o Valor estão do lado do visível, ao passo que o não-aparente, o abstrato, parecem implicar um elemento puramente humano de ilusão ou até de desordem. No pensamento filosófico, pelo contrário, a própria noção de ovala elabora-se em contraste com o mundo visível. A realidade, a permanência, a substancialidade passam para o lado daquilo que se não vê: o visível torna-se aparência, por oposição ao real verdadeiro, à ousia.

É em um outro termo que se reflete o esforço de abstração que se realiza através da experiência comercial e da prática monetária. Ta chremata designa a um tempo as coisas, a realidade em geral e os bens, especialmente sob a sua forma de dinheiro líquido. Aristóteles escreve: “Chamamos bens (chremata) a todas aquelas coisas cujo valor é medido pela moeda”10. Discerne-se aqui o modo pelo qual o uso da moeda pôde substituir o conceito antigo, qualitativo e dinâmico, da coisa como physis, por uma noção abstrata, quantitativa e econômica da coisa como mercadoria. Mas, uma dupla reserva se impõe. Em primeiro lugar, uma questão de cronologia: este testemunho de racionalismo mercantil data do século IV antes de Cristo, não dos começos do pensamento filosófico. Esclarece mais a reflexão de certos sofistas do que a de Pitágoras, de Heráclito e de Parmênides11. Em segundo lugar, as chremata Para utilizar uma fórmula religiosa que não está deslocada na perspectiva filosófica, pertencem ao mundo do aquém, ao mundo terreno; a ousia que, para o filósofo, constitui a realidade, é de uma outra ordem. Não se situa ao nível da natureza, nem tampouco ao da abstração monetária. Como dissemos, o mundo invisível que o pensamento religioso revela é prolongado por esta realidade estável e permanente que, ao contrário da moeda, tem mais Ser do que a physis.


  1. “La notion mythique de la valeur en Grèce”, Journal de Psychologie, 1948, pp. 415-462. 

  2. Segundo Heródoto, I, 94, a primeira moeda cunhada seria invenção dos reis da Lídia. Cf. P.-M. Schuhl, Essai sur la formation de la pensée grecque”, Paris, 1949, pp. 157-158, e G. Thomson, op. cit., p. 194. 

  3. L. Gernet, Recherches sur le développement de la pensée juridique et morale en Grèce, Paris, 1917, pp. 21 sq.; G. Thomson, op. cit., p. 195. 

  4. Cf. Louis Gernet, “Le temps dans les formes archaïques du droit”, Journal de Psychologie, 1956, p. 401. L. Gernet nota que o pagamento do juro devia efetuar-se em cada período lunar (Cf. Aristófanes, As Nuvens, v. 1659). 

  5. G. Thomson, op. cit., pp. 297, 300 e 315. O autor escreve, a respeito de Parmênides: “Just as his universe of pure being, stripped of everything qualitative, is a mental reflex of the abstract labour embodied in commodities, so his pure reason, which rejects everything qualitative, is a fetish concept refleting the money form of value”. 

  6. Sobre o caráter específico dos diversos tipos de obras e de atividades mentais, cf. I. Meyerson, “Discontinuités et cheminements autonomes dans l’histoire de l’esprit”, Journal de Psychologie, 1948, pp. 28 sq.; “Problèmes d’histoire psychologique des oeuvres”, Hommage à Lucien Febvre, Paris, 1954, I, pp. 207 sq. 

  7. Marx sublinhou que o ponto de vista do valor de uso permanece dominante em toda a antiguidade clássica. Na perspectiva marxista que é a sua, Thomson parece-nos cometer um anacronismo: só quando o trabalho livre e assalariado se torna ele próprio mercadoria é que “a forma mercadoria dos produtos se torna a forma social dominante” (Capital, trad. francesa de Molitor, I, pp. 231-232), e que o trabalho se torna trabalho abstrato (Crítica da economia política, p. 70). Cf. supra, pp. 230 e 238. 

  8. Cf. L. Gernet, “Choses visibles et choses invisibles”, Revue philosophique, 1956, p. 85. 

  9. lbid., pp. 79-87. 

  10. Ética a Nicômaca, IV, 1119 b 26; cf. L. Gernet, loc. cit., p. 82. 

  11. A fórmula célebre de Heráclito: “O Todo transmuta-se em fogo e o fogo em todas as coisas, como os bens (chremata) são trocados contra o ouro, e o ouro contra os bens”, não nos parece situar-se ainda neste plano de um racionalismo mercantil; cf. as observações de Clémence Ramnoux, Héraclite ou l’Homme entre les choses et les mots, Paris, 1959, pp. 404-405. 

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