Ninguém investigou tudo isso tão exaustivamente quanto o grande mestre da filosofia do Eu, Johann Gottlieb Fichte. Fichte se tornou famoso em seu tempo por meio de Kant, que publicou habilmente por meio de seu editor anonimamente a primeira obra de Fichte, Ensaio de uma crítica a toda revelação, de 1792, de modo que os leitores de então acreditaram que se trataria de um livro de Kant. Dessa maneira, Fichte conseguiu, em 1794, a sua primeira posição como professor em Jena, que ele precisou abandonar em 1799 na ocasião da famosa querela do ateísmo – no que Fichte, por muitas razões, era uma pedra no sapato de, entre outros, Goethe, que era o ministro responsável pela Universidade de Jena na época. Goethe não tinha muito apreço pela representação de que o Eu seria um pequeno deus sobre a terra, uma vez que ele era muito mais da opinião de que Deus se deixaria encontrar antes na natureza do que em nós.
Já o título de sua primeira obra deixa concluir que Fichte não se aproximou inadvertidamente do ateísmo. Fichte foi, além disso, o reitor-fundador da Berliner Friedrich-Wilhelm-Universität, a atual Universidade Humboldt, e foi social e politicamente ativo por toda a sua vida. Ele é um típico gênio das classes pobres do século XVIII que foi reconhecido e patrocinado por meio da piedade de um bom patrono. Fichte foi atualmente redescoberto na ética contemporânea (principalmente nos Estados Unidos, mas também pelo filósofo de Leipzig Sebastian Rödl (1967)), uma vez que ele foi o primeiro filósofo que fez uma conexão entre a autonomia do Eu e seu reconhecimento por meio de outros. Assim, ele também se tornou o criador do interacionismo social discutido acima (p. 157), sobre o qual ele fundou a sua filosofia do Estado.
Fichte é, porém, especialmente conhecido pelo fato de que ele se propôs a pergunta sobre quem ou o que é verdadeiramente o Eu. Foi nesse contexto que ele desenvolveu o seu programa filosófico, ao qual ele deu o nome de “doutrina-da-ciência” [Wissenschaftslehre]. Seu pensamento fundamental é facilmente compreensível, e Fichte se perguntou por toda sua vida por que tantos não queriam entendê-lo. Os escritos de Fichte são, à primeira vista, difíceis ou mesmo incompreensíveis, o que se deve precisamente ao fato de que ele tentou evitar cargas conceituais desnecessárias ou empréstimos complicados da história da filosofia, uma vez que ele queria, na verdade, que qualquer um que se interessasse pudesse entendê-lo. É preciso hoje, todavia, fazer um pouco de trabalho de tradução, a fim de reconstruir compreensivelmente as suas ideias.
Aqui está, então, o pensamento fundamental da doutrina-da-ciência. Há diferentes áreas do saber, cujas características principais [Grundzüge] já nos são ensinadas na escola fundamental: matemática, geografia, português, educação física e assim por diante. O que aprendemos aí não são apenas conteúdos como, por exemplo, pintura, escrita correta e nomes de capitais. Também aprendemos como se aprende algo de uma maneira geral. Desse modo, pode-se colocar a pergunta sobre se não há um denominador comum de todas as áreas do saber, uma vez que todas elas têm de ter uma forma comum vinculante [verbindende], se é o caso que se aprenda alguma coisa por meio delas. Parece, então, haver uma conexão de todas as áreas do saber, por mais que elas transmitam individualmente conteúdos diferentes. Segundo Fichte, apesar de seus conteúdos diferentes, é preciso que o saber tenha, como um todo, uma forma universal.
E é isso exatamente que é o ponto de partida de Fichte. Sua doutrina-da-ciência investiga como, afinal, forma e conteúdo do conhecimento estão conectados. Seu questionamento é ao menos tão antigo quanto a filosofia de Platão. Ainda hoje ela se encontra mesmo em nossa palavra para matemática, pois ela contém o verbo do grego antigo “manthanomai”, que significa “aprender”. Para Platão, em aulas de Matemática, tratava-se aprender como se aprende, ao ser levado por pequenos passos a uma intelecção, a qual, segundo Platão, pode ser ensinada a todos os seres humanos. Ele ilustra isso em seu diálogo Menon por meio de um escravo inculto, ao qual são ensinadas passo a passo intelecções geométricas fundamentais. Fichte persegue então, como Platão, a intenção de apontar para nós, seres humanos, que somos todos dotados de razão. Isso significa, justamente, que podemos aprender algo de outros, pois compartilhamos a capacidade de saber algo com todos os seres humanos. Isso é designado como o universalismo da razão, que é uma suposição fundamental do Esclarecimento.
Além disso, Fichte ainda admite que a forma do saber se apoia no fato de que nós podemos entender alguma coisa em geral. Mesmo que nos esforcemos pela objetividade absoluta, precisamos ainda ser capazes de entender os resultados disso. Isso significa que também o caso limite da objetividade absoluta permanece, por isso, relacionado a nós. Fichte fala, nesse contexto, não apenas do Eu, mas também do nós, o que Hegel retoma na fórmula muito citada: “Eu que é nós e nós que é Eu”.
No caso-limite da objetividade absoluta examinado por Fichte, há uma distinção entre o Eu e o não-Eu. Dessa maneira o Eu se torna algo absoluto, algo completamente desatado do não-Eu (o latim absolutum não significa nada mais do que: desatado [losgelöst]). Tomado rigorosamente, Fichte desenvolve três princípios que se tornam os pilares de suporte da filosofia do Eu. Deve-se ter isso diante dos olhos quando se fala hoje do Eu, uma vez que as ideias fundamentais de Fichte afetaram de Freud até Sartre, o que ainda se preserva em nosso vocabulário psicológico atual. Caso se ignore essa história, recai-se demasiado fácil no pensamento de que o Eu nos seria bem conhecido e se trataria de alguma coisa natural como o nosso cérebro, por exemplo. Mas não se poderia ter uma compreensão mais falsa e rudimentar de Fichte, Freud, Sartre ou mesmo de si mesmo. Fichte teve experiência disso já em seu tempo de vida e escreveu sobre as primeiras reações extremamente críticas à doutrina-da-ciência, visivelmente desapontado: “A maior parte dos homens seria mais facilmente levadas a se considerar um pedaço de lava na Lua do que um Eu”1. (MGCérebro)