Excerto de Excerto de FERREIRA DA SILVA, Vicente. Transcendência do Mundo. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 105-106
A mitologia é a abertura de um regime de fascinação. Ela não pode ser compreendida, como querem muitos, a modo de qualquer criação imaginativa ex homo, ou como qualquer projeção psicológica da mente inconsciente da humanidade. Todo o complexo humano, consciente ou inconsciente, é descerrado simultaneamente com o descerrar-se da totalidade do ente, a partir das potências míticas originais. Os conteúdos do relato mítico e a cosmografia revelada nesse saber remetem-nos às coisas mesmas, instalando-nos num mundo de presenças reais e imperiosas. A configuração das coisas presentes nesse cosmos é esboçada e estilizada pelo projeto-fascinante, que faz com que ela se alteie em sua identidade intramundana própria. Todas as coisas são coisas míticas. A presença e a manifestação das forças numinosas que desencadeiam o soerguer-se de um mundo constituem mais do que um mero fenômeno da representação, isto é, algo para ser simplesmente visto ou intelectualmente considerado. A pesquisa filosófico-etnológica contemporânea demonstrou a íntima conexão entre o mito e o rito, em todos os povos conhecidos. As exigências do comportamento religioso se traduzem sempre na ação cultual, sendo o arrebatamento cultual o correlato necessário da ação proposta pelo mito. Essa ação proposta é um oco que pede o cumprimento da cena religiosa, encontrando nessa cena a confirmação constante de um regime de fascinação. O binômio mito-rito fecha um universo de conhecimento e de ação e desenha uma esfera crepuscular do aberrante e do hostil. Essa área iluminada, onde se desenrola a ação ritual, constitui sempre [105] um teatro mundanal completo, onde todas as coisas encontram sua inserção e significação peculiares. A função iluminante e fascinante que ergue esse cenário cósmico-patético pertence ao mito e somente ao mito, que não é mera palavra ou epos literário, mas sim presença real e efetiva dos deuses e da atuação divina. Essa presença, entretanto, não se realiza como a presença das coisas, não é uma representação ou noema suscetível de pura fruição intuitiva. Os deuses vivem a vida das polaridades, das forças conclamatórias e imperiosas, que arrastam, subjugam e dispõem. Cada figura numinosa corresponde a um ciclo atrativo-projetivo, que se propaga indefinidamente. Forma eônica do Sugestor, o modo de ser do divino e do conteúdo mítico é o da sugestão e do orientar-se pulsional. O complexo desses poderes numinosos e sagrados, revelado no relato mítico e através dele, não constitui contudo um sistema estático e harmonioso. A epifania de Deus, origem das possibilidades historiáveis, suscita um constante formigar de paixões e movimentos constantes. Não só o manifestar-se dos poderes numinosos vem acompanhado de uma tempestade de paixões, como também rege entre esses poderes relações conflituosas e eróticas. Os deuses, como entidades superiores, expandem em torno de si um campo atrativo-passional, sendo entretanto fascinados em seu modo particular de ser. São eles essências fascinantes-fascinadas. Quando falamos em essências, devemos precaver-nos de pensar o divino sob o modelo das entidades pontuais e substanciais. A principal dificuldade que até hoje pesou sobre as tentativas de aproximação filosóficas da esfera do sagrado deriva justamente da aplicação ao divino das categorias de identidade pessoal ou subjetividade substancial. O divino pode, de fato, não assumir a configuração da personalidade fechada e idêntica a si mesma, podendo manifestar-se como vida fluida e difusa que assume diversas formas e aspectos. Nesse caso, por vezes, os deuses tomam o aspecto de animais ou de plantas, são esses animais ou essas plantas, em sua existência processual e inapreensível. Assim, o Deus não é uma coisa, algo de indicável simplesmente, mas sim a série de suas hierofanias, que abrange o amplo espaço de sua fascinação. O mito, portanto, remete-nos a [106] uma conexão de fatos extramundanos que tem uma subsistência em si e por si, e da qual ele é um documento memorizador e uma revelação histórica. Essa vida original e prototípica dos deuses, em si e por si, é um processo primordial e fundante, que condiciona e institui o manifestado e que está à base de todas as possibilidades que emergem no horizonte do tempo. O império de uma certa conexão divina determina uma época mundial, uma fase do regime da Fascinação, um tempo passional. O tempo é o tempo de uma dominação. A dominação é a abertura do acontecer e, portanto, o despertar do desejo. No fundo, o suscitado pelo Ser, em seu papel de Sugestor, é um patrimônio de paixões e de tendências, é o estar-fora-de-si da paixão. Falar, entretanto, de tendências e de paixões, é designar ao mesmo tempo o desejável e apetecível, o teatro próprio de atuação do desejo. A instituição da paixão é simultânea à instituição do desejado pelo desejo. Em outras palavras, a intuição de um mundo é a contrafigura da intuição do mundo passional que dormita no agente humano. A interpretação da esfera total da apetecibilidade, isto é, do próprio mundo, é a leitura das possibilidades inerentes ao agente que pode ser o homem, mas que pode também ser uma realidade diversa do primeiro hominídeo. Não é o ente humano que traça ou abre a esfera total da apetecibilidade como quer o existencialismo vulgar. O homem não é o ente que des-vela e esboça o outro ente, mas é ele coprojetado no projetar-se do mundo, a partir da dimensão do Fascinator. O homem é instituído em sisi mesmo, a partir das sugestões lançadas pelo Ser. O poder destinante pertence essencialmente à revelação divina, que reveste o agente de sua configuração própria e estende em torno dele a circunstância de suas operações possíveis.