De muitas formas pode o homem dissimular diante de si mesmo o sentido de sua existência, negligenciando o tema profundo de sua vida e rompendo todas as suas ligações com o real. Há formas mais espasmódicas e espantosas como o demoníaco, mas a doença pode invadir a alma de maneira mais sutil e insidiosa, produzindo seu mal, sem que nos apercebamos disso. É o caso, por exemplo, da invasão do hábito e do automatismo em nossa existência. “Há algo pior do que possuir uma alma perversa — diz Péguy — é possuir uma alma habituada. O que há de mais contrário à própria salvação não é o pecado, é o hábito.” O hábito não é simples repetição, pois a recorrência de um determinado estado ou atitude pode significar uma fidelidade do espírito em relação a si mesmo, uma reincorporação consciente do passado no presente, que se revela como uma reafirmação e uma solidariedade através do tempo. Nesse caso, o passado não volta em ausência de um sentimento profundo, mas com a colaboração de nossas energias mais íntimas: a repetição é aqui um adensamento espiritual.
No caso do movimento habitual, do automatismo, pelo contrário, a ação ou estado se desencadeia por impulso próprio, e desenvolve arrastando e desprezando qualquer espontaneidade. Não há nenhuma colaboração íntima, nenhum calor objetivo em seu desenvolvimento; sentimos crescer em torno de nós uma jungle poderosa de gestos, atitudes e concepções que outrora nutríamos com nosso próprio sangue, mas que agora com vida própria nos envolve em seus tentáculos. Somos então vítimas de nossos hábitos que, à maneira de um despótico personagem, passa a viver nossa vida, usurpando nossa atuação pessoal. O hábito pode significar uma economia, mas é uma economia fatal e desmerecedora. Uma vida habituada é uma vida que não mais se esforça, não mais cria, uma vida que perdeu toda a audácia, liberdade e originalidade, processando-se como uma repetição mecânica das mesmas coisas. É justamente esse mecanismo que se interpõe entre a consciência e o ser.
Toda vida decai em hábito, e todo recobrar-se do hábito é uma esperança no caminho da verdade: aqui, centra-se o sentido da aventura que, despojando o homem de sua crosta habitual, o põe em condições de se propor novos caminhos e de alcançar novas alturas.
O hábito nos transforma em simples coisas. O futuro, que caracteriza o nosso ser e que germina no desejo e na pretensão do existir, fecha-se, no hábito, diante de nós, pois só assistimos à monotonia de um mesmo gesto ritual. Essa sensação de ausência e entorpecimento pessoal que o hábito produz, e que se expressa quando dizemos que podemos fazer algo “de olhos fechados”, provém da própria estrutura do nosso ser. Apenas quando, lançados para o nosso porvir, vamos ao encontro de um destino escolhido e livremente aceito, é que somos presentes em plena agudeza e vigilância. Nesse sentido, diz Heidegger que o homem é um “ser da distância”: somente transcendendo em direção às suas próprias possibilidades, é que o homem desperta para o que rodeia e transforma a sua circunstância em matéria do seu destino. O herói é, nesse sentido, o ser eminentemente vigilante e presente com toda a sua alma ao mundo.