Defendo então a tese de que só poderia haver “intencionalidade” num sentido, ou direção, transfenomenal ou transparente, que dependeria de uma aplicação disfuncional, pelo pensamento, da distinção entre aparência e realidade, distinção cuja funcionalidade é, no entanto, necessária ao que chamamos de “tomar algo como objeto”. É preciso dobrar a língua quando se diz que há “intencionalidade” e que ela está “dirigida para o fenômeno” ou “aparência”. Não basta aqui acrescentar um grão de sal a esses chavões, mas uma tonelada! O que se chama de “intencionalidade” é algo que, se houvesse, fracassaria sistematicamente, na verdade tão infalivelmente, que esta é a principal razão para duvidarmos seriamente dela. Pois o que a mente “intencionaria” como real, existente, não lhe poderia aparecer, menos ainda como real “em sisi mesmo” ; e, por sua vez, sua “aparência” não poderia ser “tomada como objeto” sem… deixar de ser aparência, para desaparecer na realidade ou na existência.
A transparência, contudo, embora seja a característica por excelência da Experiência consciente, ou Aparição, é sua condição necessária, mas não suficiente. Para que haja Experiência, é suficiente acrescentar à transparência da consciência mais duas coisas. Uma delas é a opacidade; a outra é aquilo que se vai refletir nessa opacidade — o reflexo, ou aquilo que é refletido —, para transparecer na Aparição, como algo que lhe é imanente. Pois bem: nisto consiste a compreensão. E a compreensão sim, tem algo a ver com “criação”, mas fora do tempo, bem entendido! É na reatividade mental inconsciente que o reflexo é tomado como objeto e mantido à distância da verdadeira Experiência, chamando-se então de “o real”, ou “o existente”. Portanto, é também a transparência, no lugar de um ponto cego, que caracteriza essa forma inconsciente de reatividade mental que se insiste em chamar de “intencionalidade”, “tomar algo como objeto”, “ser sobre algo”, etc. E é por isso mesmo, aliás, que nada, a rigor, pode simultaneamente aparecer e ser tomado como objeto, pois o que é perfeitamente transparente não aparece. Se aparecesse, não seria perfeitamente transparente, e só poderia “aparecer” através de uma transparência perfeita, que agora não pode mais ser aquela que pensávamos… Se alguma coisa pudesse aparecer, então seria a realidade, não a aparência ela mesma. Mas a realidade é o que é tomado como objeto. Assim como uma aparência, ela mesma tomada como objeto, já não apareceria, do mesmo modo o que é tomado como objeto (é “real” ) pode “fazer parte de”, ou “transparecer em” uma Aparição, mas não pode “ele mesmo” aparecer. Para usar, pelo menos uma vez, um linguajar mais… diplomático, não me comprometo mais, ontologicamente, com aqueles “objetos” que chamávamos de “aparências”, porque os estou considerando imanentes às Aparições que são as Experiências. Longe de significar que eu esteja “contra as aparências” (elevo-as à categoria de Aparições!), a reforma da Ontologia, aqui proposta, significa apenas que estou contra o equívoco de tentar salvar as aparências como objetos, à análise do qual será neste livro devotado todo um Capítulo, o segundo, sobre a Ciência. Ao contrário de estar “contra as aparências”, estou propondo uma concepção de experiência que tira as “aparências” do plano dos objetos e as situa na ordem das Aparições… instantâneas (ou Desaparições, como veremos). Por isso estou dizendo que as “aparências”, tal como costumam ser concebidas, não “existem”, não são “reais”, pois o que existe está mantido à distância da experiência pela Mente, que o toma como objeto. Nosso experimento de pensamento, aqui, é análogo àquele pelo qual se atribuem partes temporais e partes espaciais a um objeto que pensávamos estar “no” tempo e “no” espaço. E como se estivéssemos atribuindo aparências à própria experiência, que pensávamos ser experiência “de” aparências. Assim como, no caso do objeto, conseguimos tirá-lo do tempo e do espaço, no caso da experiência, conseguimos tirá-la do “reino das aparências”. Assim como passamos a chamar os antigos objetos de “curvas espaço- temporais”, também passamos a chamar as antigas experiências de “Aparições”.
O que predispõe a Filosofia e a Ciência ao erro de pensar que as aparências podem ser tomadas como objeto — o erro Capital dos fenomenólogos, de todas as filosofias que partem do Cogito, e o erro embutido na noção mesma de intencionalidade — é que a transparência da experiência exerce também o papel de uma “forma” mental de inconsciência, para que a mente (o instrumento) possa ter um ponto cego, de onde editar e projetar objetos, a serem refletidos na opacidade especular da Existência. Na verdade, veremos até o final deste Capítulo que o que estou chamando de “objetos projetados e refletidos pela opacidade perfeita do Não-Ser, ou Existência”, são configurações puramente qualitativas, únicas, irrepetíveis, incomparáveis e eternas. Uma vez refletidos na opacidade da Existência, os objetos podem ter um de dois destinos possíveis: podem permanecer na mente, no pensamento ou na linguagem, portanto no instrumento inconsciente e estranhos à Experiência; ou podem ser equanimemente compreendidos — ” equanimemente” porque qualquer juízo de valor, coisa típica do instrumento, os manteria à distância do Ser. Compreendidos, os reflexos (objetos) são imanentes à Experiência, mesmo nos casos em que o que for tomado como real pela mente inconsciente, seja uma “aparência”, um percepto, etc. Compreendidos, os reflexos (objetos) deixam de ser pensados como impostos a “nós”, deixam de servir a qualquer tipo de antecipação ou intenção, vontade ou expectativa, desejo ou aspiração, “antes” e “depois”, e por isso mesmo passam a servir à Presença de Espírito. Então sim, o que é refletido pelo Instrumento e acolhido instantaneamente pela compreensão torna a Experiência… criadora. Mas é claro que já não se trata aqui de “conhecimento” de espécie alguma!