Faivre Guénon

Antoine Faivre — O Esoterismo — “Guenonismo”

Um novo fenômeno: o guenonismo — Em reação à multiplicação das ordens iniciáticas ligada à corrente ocultista e os aspectos às vezes contestáveis desta no plano espiritual, um francês, René Guénon (1886-1951), empreende uma obra de reforma na perspectiva da Tradição. Ele conhece bem essas ordens porque participou de muitas delas em sua juventude. Chegou a flertar com o espiritismo por volta de 1908. Em 1914, é iniciado na Grande Loja de França. Dentro da Igreja gnóstica, ele freqüentou homens (Léon Champrenaud e Albert de Pouvourville — Matgioi) cuja influência sobre ele, juntamente com a dos orientais que conheceu em 1908 e 1909, determinou sua vocação de reformador. Em 1921. Guénon publica sua Introdução geral ao estudo das doutrinas hindus, na qual já se encontra exposto o essencial de sua metafísica. Em O Teosofismo, história de uma pseudo-religião, publicado na mesma época e dirigido contra a Sociedade Teosófica, demonstra um espírito cáustico e polêmico, que também anima O erro espírita (1923), outra flecha envenenada, dessa vez desferida contra o espiritismo. Encontramos igualmente em quase todas as suas obras ulteriores essa vontade de limpar, sanear, que não se refere aliás apenas às correntes esotéricas ou ocultistas, mas também aos filósofos ocidentais (Oriente e Ocidente, 1924). Em 1927, O Rei do Mundo afirma a existência de um centro espiritual ou “local geométrico”, garantia da ortodoxia das diversas tradições, e A crise do mundo moderno situa nossa civilização atual com relação à teosofia hindu dos ciclos cósmicos, identificando nossa época à época dita do “Kali-Yuga”, era sombria de degenerescência situada no final de um dos grandes ciclos ou manvantaras. Em 1930, Guénon vai ao Egito, onde permanece até a sua morte, que ocorre em sua casa do Cairo. Ali escreve O Simbolismo da Cruz (1931), Os estados múltiplos do ser (1932), O reino da quantidade e os sinais dos tempos (1945), A grande tríade (1946). Sua bibliografia abundante não se reduz a esses títulos, e, ademais, Guénon sempre se mostrou um infatigável escritor de cartas, um polemista mordaz e um prolífico autor de artigos.

Guénon é detentor de uma doutrina metafísica complexa de origem hindu, que concerne ao Não-Ser (Brahma, o Absoluto) e ao Ser — sua manifestação — com “múltiplos estados”, ao qual o homem está ligado. Metafísica que em si não é mais esotérica do que qualquer outra — tampouco é graças a ela que Guénon ocupa um lugar de primeira importância no cenário dos esoteristas contemporâneos. Decerto é mais por três razões principais. Em primeiro lugar, suas inúmeras tomadas de posição (ele atrai muito a atenção legislando sobre elas). Em segundo lugar, a insistência com a qual ele afirma a existência de uma “Tradição primordial” e, em matéria de iniciação, a necessidade de uma filiação autêntica. Em terceiro lugar, a qualidade de inspiração de suas obras consagradas ao simbolismo (por exemplo, O simbolismo da cruz e A grande tríade).

Às iniciações proliferantes de seu tempo, que ele estima em sua maioria falsas, Guénon opõe a regularidade iniciática da franco-maçonaria e a da Igreja católica. Mas esta não passa de um canal iniciático: o próprio cristianismo deve ser superado, pois qualquer religião como tal é apenas uma forma, um aspecto limitativo da “intelectualidade suprema” ou uma transformação da Tradição primordial — noção cuja herança vinda da Renascença, do Romantismo e da Sociedade Teosófica ele recolhe, mas que hipostasia como jamais ninguém antes dele o fizera. Solitário, obstinadamente agarrado a seu rochedo de sabedoria, Guénon representa uma via impressionante de ascetismo intelectual. Ninguém melhor do que ele sabe alertar contra a confusão do psiquismo e do espiritual, contra o sentimentalismo em matéria de espiritualidade. O fato é que esse Descartes do esoterismo, cujo poder de síntese, cujo rigor de pensamento e cuja força de argumentação podemos admirar, mistura tudo: por recusa da filosofia ocidental, ele ignora praticamente toda a teosofia alemã (o mundo germânico é-lhe estranho): por desconfiança do desnaturado, nada conserva — ou quase nada — da tradição hermético-alquímica ocidental e coloca no Renascimento o grande divórcio com a metafísica (também “esoterismo” adquire com Guénon o sentido novo de “princípios metafísicos”, “exoterismo”, referindo-se a tudo o que é individual): por ignorância das aberturas epistemológicas de seu tempo, faz uma idéia errada da ciência porque ultrapassada (é verdade que ele próprio não é nem um cientista, nem um erudito, nem um historiador). Ele rejeita essa ciência, do mesmo modo que condena a modernidade sob todos os seus aspectos — e ignora soberbamente a Natureza: nãoespaço aqui para alguma Naturphilosophie (o mundo do manifestado, gosta de dizer, tem ainda menos realidade que nossa sombra projetada na parede).

Por esse desinteresse pela Natureza e pela maioria das tradições próprias ao esoterismo ocidental, na história deste o guenonismo é de fato um fenômeno novo. Mas de grande amplitude, que hoje atinge os espíritos de todos os meios, seduzidos pela clareza desse pensamento e até pelo seu aspecto simplificado!-, que provavelmente incita com demasiada facilidade a abandonar as realidades complexas — e até as riquezas culturais, esotéricas ou não — em proveito de certezas metafísicas que têm valor de dogma. O termo inglês “perennialism”, do latim philosophia perennis (o adjetivo é “perennialist”), serve para designar essa filosofia religiosa que enfatiza a Tradição primordial, mãe de todas as outras, compreendida num sentido guenoniano. Seu principal representante atual é Frithjof Schuon, suíço estabelecido nos Estados Unidos, cuja influência atinge um grande público, principalmente entre os intelectuais (Da unidade transcendente das religiões, 1948; O esoterismo como princípio e como via, 1978; Nos rastros da religião perene, 1982; etc). Na esteira de Guénon e de Schuon (mas não confundamos o segundo com o primeiro, algumas diferenças notáveis os separam) se destacam algumas personalidades marcantes. Na França, Constant Chevillon (1880-1944, que não pôde conhecer Schuon), figura importante do martinismo e da maçonaria (A tradição universal. 1946), Leo Schaya (A criação em Deus, 1983), os filósofos Georges Vallin e Jean Borella. Na Itália, Julius Evola (1898-1974), filósofo de extrema direita já mencionado a respeito da alquimia. Na Alemanha, Titus Burckhardt (1908-1984). Na Inglaterra, Martin Lings (The eleventh hour, 1987), que foi o secretário pessoal de Guénon. Nos Estados Unidos, Ananda Coomaraswamy (1877-1947), Seyyed Hossein Nasr (Knowledge and the sacred. 1981), Huston Smith (The religions of man, 1958; Forgotten truth, 1976; Beyond the post-modern mind, 1982). Entre essas pessoas existem diferenças de orientação que essa curta apresentação não conseguiria explicar e que as distinguem também dos outros autores importantes (por exemplo, pode-se observar a presença em S. H. Nasr de uma verdadeira filosofia da Natureza e em Jean Borella a de um cristianismo autêntico).


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