Antoine Faivre — Gnose e Gnosticismo
Embora não se possa considerar Faivre como um pesquisador da tradição gnóstica, seus estudos intensivos sobre suas ramificações no esoterismo ocidental, lançam alguma luz sobre a Gnose e o Gnosticismo primordial e sobre suas prolongações no Ocidente.
Excertos de “O Esoterismo” (Ed. Papirus)
Segundo Antoine Faivre, o Esoterismo corresponde ao que se entende geralmente por “gnose”, donde decorre o Gnosticismo dos primeiros séculos de nossa era que não é senão um caso bastante particular. Convém com efeito reservar a este o nome de “Gnosticismo”, pois seu ensinamento não foi retido pelas correntes esotéricas ulteriores, aquelas da Idade Média ou dos Tempos Modernos .O gnosticismo — pelo menos certo número de seus representantes, como Marcion — professa um dualismo absoluto segundo qual os poderes do Mal seriam ontologicamente iguais àqueles do Bem, e o Deus do Antigo Testamento seria um demiurgo mau. Entendemos por conseguinte “gnose” em um sentido geral. A raiz grega (gnosis), a mesma que o sânscrito (jnana) — assim para “knowledge”, “Erkenntnis”, “connaissance” — significa, ao mesmo tempo, “saber” e “sabedoria sapiencial”. O pensamento grego tardio, em seguida a patrística cristã, precisando distinguir “gnosis” e “episteme”, introduziram um divórcio entre o saber e sua fonte sagrada, enquanto a raiz “Kn”, aparente em genesis, implica ao mesmo tempo o saber e o vir a ser. A teósofo alemão mais importante Franz von Baader, pode assim consagrar uma parte de sua obra à identidade ontológica do conhecimento e do engendramento. Em nos fazendo nascer, ou melhor renascer (Nascer do Alto), a gnose nos unifica e nos libera. Saber, é ser liberado. Não basta enunciar símbolos ou dogmas, é preciso ainda ser engendrados por eles no lugar mesmo onde se cumprem realmente as tradições espirituais, lugar acessível àqueles únicos que conseguem penetrar no tempo e no espaço próprios ao Imaginal.
A gnose com efeito não é o saber tout court; entre crer e saber há este terceiro termo, o Imaginal. A gnose islâmica estabelecer claramente a repartição: conhecimento intelectivo, conhecimento ou visão interior, revelação intuitiva. É esta última, que nos abre ao Imaginal: «A gnose é visão interior. Seu modo de exposição é narrativo; é um recital. Enquanto ela crê, ela sabe. Mas enquanto isto que ela sabe não refere-se a evidência positivas, empíricas ou históricas, ela crê. Ela é sabedoria e ela é fé. Ela é Pistis Sophia» (Henry Corbin). “Gnose” deve portanto ser bem entendida aqui em seu sentido primeiro de conhecimento superior que se se adiciona às verdades comuns da Revelação objetiva, ou “de aprofundamento desta Revelação tornada possível por uma graça particular” segundo uma elegante definição de Pierre Deghaye.
Ciência, divina se o é, que o teósofo Friedrich Christoph Oetinger, no século XVIII, chamou “philosophia sacra”. Filosofia sagrada, salvadora, soteriológica, porque ela tem a virtude de operar metamorphoses, a mutação interior, graças não a um pensamento discursivo mas a uma revelação narrativa das coisas ocultas, uma luz salvífica que aporta vida e alegria, que opera e garante a salvação. Saber o que se é e de onde se vem, já é, por um lado, ser salvo. Conhecimento não teórico, mas operativo, e que por esta razão transforma o sujeito conhecedor — assim com a alquimia é menos a transmutação material que a transformação do Adepto ele mesmo.
Atividade intelectual e espiritual, a teosofia permite ter acesso a um modo de conhecimento particular, a gnose (do grego Gnôsis, “conhecimento”). Inversamente, esta estimula e fecunda a reflexão teosófica. De maneira diferente do conhecimento científico ou “racional” (que, de resto, ela não exclui e sim utiliza), a gnose é um “saber” totalizante, uma captação das relações fundamentais, mas menos aparentes ou menos evidentes, que existiriam entre os vários níveis de realidade, por exemplo, entre Deus, o homem e o universo. Ela é ou esse próprio saber, ou a intuição e a certeza de possuir um método que permite ter acesso a tal conhecimento. Esse projeto é mais totalizante do que a metafísica do tipo aristotélico porque visa integrar o eu e a relação do sujeito com o eu, assim como o mundo exterior inteiro, numa visão unitária da realidade. A uma metafísica estática do ser, a gnose opõe desse modo uma dinâmica e uma genética. A gnose das correntes esotéricas possui dois traços bem característicos. Por um lado, abole a distinção entre fé e conhecimento (a fé não é mais necessária, a partir do momento em que se “sabe”); por outro, supostamente possui uma função soteriológica, isto é, contribui para a salvação individual daquele que a pratica. O termo “gnose” serve para designar tanto essa própria atitude espiritual e intelectual quanto os corpus de referência que a ilustram. Um deles constitui um conjunto muito específico, o gnosticismo, corrente religiosa que surgiu dentro do cristianismo dos primeiros séculos de nossa era (com Basilides, Valentino, Marcion etc). Uma das principais originalidades dessa corrente é o dualismo ontológico absoluto (rejeição do mundo criado, considerado mau), professado por muitos de seus representantes e que as gnoses dos esoterismos ocidentais ulteriores praticamente não levarão em conta — mas que mais tarde irá ressurgir nos movimentos religiosos não especificamente esotéricos, como o bogomilismo búlgaro e o catarismo. O termo “gnose” no singular (a gnose) é muitas vezes empregado como sinônimo de “gnosticismo”, de modo que por vezes se comete o erro de identificar qualquer gnose a essa corrente particular.