Só para desentranhar todas as implicações destas poucas páginas da República (v. Republica-VI), necessário seria escrever um livro inteiro. Supondo que não nos tenhamos omitido de ler com a devida atenção nenhum dos mais importantes comentários que constam da bibliografia especializada, digamos, para começar, que só nos ocorre uma excepção (Fergusson) ao quase unânime parecer acerca da convergência das três imagens em um único sentido; o que, aliás, Platão expressa por inequívocas palavras (v. Tríptico da República): «esta imagem […] toda ela se aplica ao que antes dizíamos, se assimilarmos o mundo visível à estadia na prisão, e a luz do fogo, que a alumia, ao efeito do Sol», etc. A excepção a que nos referimos consiste em objectar contra a «Linha Segmentada», unindo o «Sol» à «Caverna». Quanto à absoluta maioria dos defensores da unidade do tríptico, as diferenças não vão além do modo como devem sobrepor-se as três imagens e, sobretudo, no que se refere à questão de existir ou não existir uma rigorosa correspondência dos estágios, no caminho de acesso à verdade e à certeza, assinalados na «Linha» e na «Caverna». O último trabalho publicado (Lier) talvez exorbite da mais legítima existência de rigor, dando a entender que no «Sol» a ascensão se processa em dois graus, na «Linha» em quatro, e na «Caverna» em oito, isto é, que Platão teria passado de um a outro, dividindo sempre em dois, cada um dos precedentes estágios. Na «Caverna», por conseguinte, teríamos: 1) o prisioneiro, impedido de se mover e de se voltar, 2) o voltar-se para objetos iluminados pelo fogo, 3) a obrigação de olhar o mesmo fogo, 4) a subida, ainda dentro da caverna, até à luz do dia, 5) o dever cingir-se à contemplação de sombras e imagens, 6) a passagem para a visão das próprias coisas que produzem sombras e imagens, 7) a contemplação do céu noturno e 8) a final visão do sol, em todo o seu esplendor. É possível, no entanto, que esta interpretação acerte no essencial, se levarmos em conta o princípio da proporcionalidade, para o qual já acenara Fränkel, escrevendo acerca de Heráclito. «Ambos os grupos de quatro, foram postos por Platão numa relação reciprocamente proporcional, para cada uma de suas partes: assim, correspondem os estágios 1 e 2, em sua contraposição de sombras e objetos, aos estágios 5 e 6, enquanto o trânsito do estágio 3 para o estágio 4, do fogo na caverna obscura para a clara luz do dia, tem sua correspondência no trânsito de 7 para 8, do estrelado céu noturno para a resplandescente luz do Sol.» (Lier, p. 214.) Quanto a nós, só pomos em dúvida que a Ideia do Bem se represente na «Linha Segmentada» pelo princípio não hipotético, pois, enquanto Platão diz claramente, no «Sol», que o Bem reside epekeina tês ousias («para além da essência»), tão claramente afirma, na «Linha Segmentada», que o princípio não hipotético se atinge no andamento do raciocínio, por via da dialéctica ascendente. Preferimos entender, ainda que sob protesto do racionalismo mais mitigado, que à Ideia do Bem, residindo para além do horizonte extremo — nas «moradas da Noite», di-lo-íamos, não parecesse a «simbólica da luz», em Platão, como obstáculo intransponível —, ninguém acede senão pelo que, em linguagem filosófica se denomina «intuição», e, em linguagem mítica, «excepcional mercê dos deuses». Em abono da intuição necessária e, por conseguinte, da insuficiência de qualquer tipo de raciocínio, cita-se justamente uma curta passagem do «excursus filosófico» da Sétima Epístola. Sobre este excursus, com especial intenção de refutar as atuais tendências para descobrir o conteúdo de um hipotético escrito de Platão «Acerca do Bem», Kurt von Fritz publicou há pouco o mais esclarecedor trabalho que conhecemos sobre o assunto (1966, 1972). A passagem em questão, é a seguinte: «só após longa meditação sobre estes problemas, o íntimo convívio com os mesmos, a verdade jorra de súbito na alma, do mesmo modo que a luz brota do fogo; e só então cresce por si». Na opinião de Kurt von Fritz «esta passagem foi mal entendida, já na Antiguidade tardia, como se ela se referisse a qualquer espécie de iluminação mística» (p. 142); mas, prossegue ele, «para o que ela aponta, não é senão o mais alto estágio de algo que, nos mais baixos, acontece em todo o tempo e em todo o lugar» (pp. 412-413), e em abono do que afirma, vai alinhando casos de súbita compreensão de obras de arte poética ou de difíceis lições transmitidas de mestre a discípulo, estes, que ele muito bem conhece por sua vasta e profunda experiência de professor universitário: de súbito, salta a chispa da compreensão, que se escusara durante horas, dias, meses ou anos de estudo e de meditação. Só não vemos como essa experiência refuta a tese da «iluminação mística», pois também se verifica que a tal compreensão súbita, para muitas pessoas e vezes sem conto, jamais sucede. E ninguém poderá assegurar de ciência certa, que os casos de repentina compreensão não sejam precisamente aqueles que na Antiguidade se designaram por «iluminação mística». Demais, se pensássemos que a iluminação súbita resulta do bom exercício de uma inteligência superior, ainda iríamos ao encontro de Platão, quando, na mesma Epístola, declara que «nem a facilidade de aprender nem a memória serão capazes de outorgar o dom da visão a quem não sinta afinidade pelo objeto, pois que ele não pode radicar-se de maneira nenhuma em natureza estranha», e assim, também ao encontro de seus intérpretes da Antiguidade tardia.