Filosofia – Pensadores e Obras

Estado

VIDE Estado romântico

A família não esgota a aptidão essencial do homem para a vida social nem está em condições de atender a todas as humanas necessidades. Por estes dois motivos, a família é insuficiente para criar uma união comunitária, ou mancomunidade, como insuficientes são as comunidades “livres”, fruto da livre vontade. Precisamos de uma ampliação e de um complemento da mancomunidade, que afiance que a disposição essencial do homem para viver em sociedade encontrará cabal satisfação e que não deixará de ser satisfeita nenhuma das necessidades a que a família é incapaz de atender. Esta mancomunidade última é uma sociedade natural (societas naturalis), porque exigida pela própria natureza humana. É sociedade perfeita, porque dispõe de todos os meios e forças, cuja falta motiva a insuficiência da família. É sociedade completa, porque, em derradeira instância, supre tudo e preenche os vácuos, que sem ela continuariam sendo vácuos. Esta mancomunidade humana e os quadros sociais em que toma forma não se propõem diretamente, como a família, o bem dos indivíduos, que são seu s membros, mas sim o bem comum (bonum comune, salus publica); donde a expressão latina res publica, no sentido de comunidade pública ou corpo político.

Na antiga Grécia, a comunidade pública era a cidade (a polis, donde deriva o termo “política”); não existia unidade superior. A mancomunidade deveria encontrar seu último complemento na unidade organizada da humanidade, a qual se tem pretendido conseguir mediante a Sociedade das Nações, as Nações Unidas e outros organismos semelhantes, mas que todavia não se converteu em realidade. Entre as comunidades públicas mais pequenas (municípios, comunas. . .) e a humanidade, interpõem-se muitos graus intermédios. Todos eles são comunidades públicas; mas só o seu conjunto estruturado constitui a societas perfecia et completa. Contudo, no transcurso dos tempos, corporações de ordem superior, dotadas de jurisdição — para as quais o novo nome de “Estado” ganhou foros de cidadania, suplantando a antiga denominação de res publica — foram-se desenvolvendo ao ponto de obterem tal predomínio que nos habituamos a equiparar simplesmente cada uma delas à comunidade pública.

Estes “Estados” reivindicavam uma ilimitada jurisdição interna (Estado totalitário, onipotência do Estado) e rejeitavam, no exterior, qualquer vinculação com os demais ou com uma comunidade que estivesse por cima deles. De semelhante concepção brotaram sempre novas guerras, que por fim levaram os povos a refletir. O conceito de Estado, moldado pelo padrão dos Estados nacionais anteriores a 1914, está em vias de dissolução. A condição de Estado (a “estatalidade”) estratifica-se diversificando-se em vários planos, desde o município até às Nações Unidas, passando pela província, pelo Estado federal, pela comunidade europeia e pela comunidade atlântica, e especializa-se em diversas direções (entidades supra-estatais, como a comunidade europeia do carvão e do aço).

Por conseguinte, aquilo que nós, enquadrados dentro das ideias do século XIX, costumávamos dizer do “Estado”, do ponto de vista filosófico, devemos hoje estendê-lo ou reparti-lo por uma multidão de coisas. Cada uma delas é “res publica”, mas só todas elas tomadas globalmente constituem a “res publica”. Segundo o exposto, no que segue não entendemos por “Estado” o moderno Estado nacional, mas sim a “res publica”, a comunidade pública, que em cada caso interessa. O Estado é “comunidade de pessoas” e “instituição”; enquanto comunidade de pessoas, é, a um tempo, soberano e social. Quanto mais se põe em destaque o aspecto institucional do Estado (burocracia) tanto mais deve ser acentuado o asserto: “Nós somos o Estado”. — Os Estados podem originar-se de muitas maneiras. Importa distinguir entre a criação de um Estado em concreto, devida sempre à livre atuação humana (só de poderosos ou de todos os interessados) e a necessidade, fundada na natureza do homem, que leva à formação do Estado em abstrato (não à formação “deste” Estado). Finalmente, existem sempre “interesses comuns”, em torno dos quais se forma uma comunidade. Tratando-se de interesses essenciais para o homem, isto é, absolutamente necessários para uma vida verdadeiramente humana, o ingresso na comunidade não fica sujeito à livre decisão do indivíduo mas a comunidade é-lhe obrigatoriamente imposta. Os mesmos interesses comuns lhe ordenam que se comporte de acordo com ela, ou seja, que oriente suas ações em conformidade com ela e com o seu bem comum. Nisto se fundamenta a autoridade da comunidade sobre seus membros. Esta autoridade, enquanto não deriva de nenhuma comunidade terrena superior, radica-se na necessidade objetiva assinalada pela ordem da criação; pelo que, neste sentido, ela provém “imediatamente de Deus” e constitui a soberania. Consoante a maneira como a autoridade é constituída no Estado, distinguimos diferentes formas estatais (monarquia, aristocracia, democracia, ditadura de um indivíduo ou de um grupo ou classe).

Elemento essencial de todo Estado é o povo, ou seja, o conjunto daqueles que integram o Estado. O Estado, enquanto corporação dotada de jurisdição, supõe um território como base espacial. Da organização acabada do Estado faz parte a constituição de diversos órgãos do poder, sobretudo dos supremos, como portadores do poder estatal. Contudo nem este poder nem seus portadores constituem o Estado; este é que cria os seus órgãos, inclusive o órgão da direção suprema. Discute-se em que sentido os supremos órgãos do Estado são “possuidores” de seu poder; segundo isso, divergem igualmente as opiniões sobre a maneira e as condições em que é possível despojá-los de sua autoridade. Em todo caso, o poder estatal não é poder sobre o Estado, mas sim poder do Estado sobre seus súditos, poder que, em última instância, se estende até onde o bem comum o exija, sem contudo ultrapassar este limite. O poder do Estado é indivisível. A chamada divisão de poderes reduz-se a uma distribuição de várias funções entre órgãos distintos. Com ela parece ficar assegurado o exercício concreto e esmerado de cada função, e, ao mesmo tempo, a vigilância recíproca dos distintos órgãos evita a prepotência de um deles e o que de seu predomínio pudesse fazer em detrimento do bem comum. — Nell-Breuning. [Brugger]


(gr. politeia; lat. respublica; in. State; fr. État; al. Staat; it. Stató).

Em geral, a organização jurídica coercitiva de determinada comunidade. O uso da palavra estado deve-se a Maquiavel (Opríncipe, 1513, § 1). Podem ser distinguidas três concepções fundamentais: la a concepção organicista, segundo a qual o estado é independente dos indivíduos e anterior a eles; 2) a concepção atomista ou contratualista, segundo a qual o estado é criação dos indivíduos; 3) a concepção formalista, segundo a qual o estado é uma formação jurídica. As duas primeiras concepções alternaram-se na história do pensamento ocidental; a terceira é moderna e, na sua forma pura, foi formulada só nos últimos tempos.

1) A concepção organicista funda-se na analogia entre o estado e um organismo vivo. O estado é um homem em grandes dimensões; suas partes ou membros não podem ser separados da totalidade. A totalidade precede portanto as partes (os indivíduos ou grupos de indivíduos) de que resulta; a unidade, a dignidade e o caráter que possui não podem derivar de nenhuma de suas partes nem do seu conjunto. Essa concepção do estado foi elaborada pelos gregos. Platão considera que no estado as partes e os caracteres que constituem o indivíduo estão “escritos em tamanho maior” e, portanto, são mais visíveis (Rep., II, 368 d); assim, começa a determinar quais são as partes e as funções do estado para proceder depois à determinação das partes e das funções do indivíduo (Ibid., IV, 434 e). Este é um modo de exprimir a prioridade do estado: a estrutura do estado é a mesma estrutura do homem, porém é mais evidente. Aristóteles, por sua vez, afirmava: “O estado existe por natureza e é anterior ao indivíduo, porque, se o indivíduo de per si não é auto-suficiente, estará, em relação ao todo, na mesma relação em que estão as outras partes. Por isso, quem não pode fazer parte de uma comunidade ou quem não tem necessidade de nada porquanto se basta a si mesmo não é membro de um estado, mas fera ou Deus” (Pol, I, 2, 1253 a 18). Essas considerações foram repetidas muitas vezes na história da filosofia (cf., p. ex., Tomás de Aquino, De regimine principium, I; Dante, De monarchia, I, 3), mas no mundo moderno só foram revigoradas pelo romantismo, que insistiu no caráter superior e divino do estado Fichte dizia: “Na nossa época, mais do que em qualquer outra que a precedeu, todo cidadão, com todas as suas forças, está submetido à finalidade do estado, está completamente compenetrado dele e tornou-se seu instrumento” (Grundzüge des gegenwärtigen Zeitalters, 1806, X). Mas esta concepção foi formulada de modo mais simples e extremo por Hegel, que identificou o estado com Deus: “O ingresso de Deus no mundo é o estado: seu fundamento é a potência da razão que se realiza como vontade. Na ideia do estado não se devem ter em mente estados particulares, instituições particulares, mas considerar a ideia por si mesma, este Deus real” (Fil. do dir, § 258, Zusatz). O estado é umDeus no mundo”, ou seja, um Deus imanente: constitui a existência racional do homem. “Só no estado o homem tem existência racional. A educação tende a fazer que o indivíduo não permaneça como algo de subjetivo, mas se torne objetivo de si mesmo no Estado… Tudo o que o homem é, deve-o ao estado: só nele tem sua essência. O homem só tem valor e realidade espiritual por meio do estado” (Philosophie der Geschichte, ed. Lasson, p. 90). Na realidade, os caracteres que a concepção organicista sempre atribuiu ao estado — racionalidade perfeita, auto-suficiência e supremacia absoluta — têm sua melhor expressão na tese de Hegel, de que o estado é Deus. Nem sempre, porém, a tese organicista foi formulada de modo tão rigoroso e extremo: o primado atribuído ao estado em relação aos indivíduos e a auto-suficiência do estado nem sempre convenceram de que o estado é Deus, mas sempre levaram a considerá-lo como algo divino, que justificasse a sujeição dos indivíduos. O fim que as concepções organicistas sempre propuseram foi bem expresso por O. Gierke: “Somente do valor superior do todo em confronto com o das partes é que pode derivar a obrigação do cidadão de viver e, se necessário, morrer pelo todo. Se o povo fosse apenas a soma de seus membros e se o estado fosse apenas uma instituição para o bem-estar dos cidadãos, nascidos e nascituros, então realmente o indivíduo poderia ser coagido a dar sua energia e sua vida pelo estado, mas não teria nenhuma obrigação moral de fazê-lo” (Das Wesen der menschlichen Verhänden, 1902, pp. 34 ss.).

2) Para a concepção atomista ou contratualista, o estado é obra humana: não tem dignidade nem caracteres que não lhe tenham sido conferidos pelos indivíduos que o produziram. Foi essa a concepção dos estoicos, que consideravam o estado como res populi. Diz Cícero: “O estado (res publica) é coisa do povo, e o povo não é qualquer aglomerado de homens reunido de uma forma qualquer, mas uma reunião de pessoas associadas pelo acordo em observar a justiça e por comunidade de interesses” (De rep., I, 25, 39). Na história medieval e moderna essa concepção mesclou-se com a precedente. A partir do séc. IX constituiu o princípio teórico a que se recorreu frequentemente nas lutas políticas (cf. R. e A. Carlyle, History of Mediaeval Political Theory, I, seç. I, parte IV, cap. V; trad. it., I, pp. 269 ss.). Suas principais manifestações podem ser vistas no verbete contratualismo. Em geral, essa concepção é simetricamente oposta à anterior: para ela, o estado não tem dignidade ou poderes que os indivíduos não tenham conferido ou reconhecido, e sua unidade não é substancial ou orgânica, não precede nem domina seus membros ou suas partes, mas é unidade de pacto ou de convenção e só vale nos limites de validade do pacto ou da convenção. Às vezes, porém, no próprio tronco do contratualismo enxertam-se as exigências peculiares ao organicismo: é o que acontece, p. ex., em Rousseau, quando ele afirma que “a vontade geral não pode errar”. Rousseau, com efeito, distingue entre a vontade de todos e a vontade geral: “Aquela visa somente ao interesse comum; esta visa ao interesse pessoal e é a soma das vontades particulares; mas retire-se dessa vontade o mais e o menos que se destroem mutuamente e ficará, como soma das diferenças, a vontade geral” (Contraí social, II, 3). Embora justificada como simples soma algébrica das vontades particulares, a “vontade geral” de Rousseau, com sua infalibilidade, assemelha-se à racionalidade perfeita do estado orgânico.

3) As duas concepções precedentes de estado têm em comum o reconhecimento do que os juristas hoje chamam de aspecto sociológico do estado, ou seja, sua realidade social; o estado é considerado, em primeiro lugar, como comunidade, como um grupo social residente em determinado território. Essa concepção fundamentou a descrição de estado formulada por juristas e filósofos do séc. XIX (qualquer que fosse seu conceito filosófico de estado), de que o estado tem três elementos ou propriedades características: soberania ou poder preponderante ou supremo, povo e território. Desses três aspectos ou elementos eram feitas descrições estanques e independentes do conceito filosófico de estado a que se fazia referência implícita ou explicitamente. A melhor definição, nesse aspecto, foi dada porjellinek (Allgemeine Staatslebre, 1900), sendo repetida e exemplificada inúmeras vezes (cf., p. ex., W. W. Willoughby, The Fundamental Concepts of Public Law, 1924). O aspecto sociológico do estado, porém, é negado por Kelsen, e essa negação é a característica básica de seu formalismo. Para Kelsen, o estado é simplesmente a ordenação jurídica em seu caráter normativo ou coercitivo: “Há um único conceito jurídico de estado, que é o de ordenação jurídica (centralizada). O conceito sociológico de modelo efetivo de comportamento orientado para a ordenação jurídica não é um conceito de estado, mas pressupõe o conceito de estado, que é o conceito jurídico” (General Theory of Law and State, 1945; trad. it., p. 192). Em outros termos, o estado “é uma sociedade politicamente organizada porque é uma comunidade constituída por uma ordenação coercitiva, e essa ordenação coercitiva é o direito” (Ibid., p. 194). Kelsen não nega, naturalmente, que existam fatos, ações ou comportamentos mais ou menos ligados à ordenação jurídica estatal, mas afirma que tais fatos, ações ou comportamentos são manifestações do estado só enquanto interpretados “segundo uma ordenação normativa, cuja validade deve ser pressuposta” (Ibid., p. 193). Essa doutrina presta-se a definir de modo simples e elegante os elementos tradicionalmente reconhecidos como próprios do Estado. O território nada mais é que “a esfera territorial de validade da ordenação jurídica chamada estado” (Ibid., p. 212). O povo nada mais é que a “esfera pessoal de validade da ordenação”, ou seja, os limites do grupo de indivíduos aos quais se estende a validade da ordenação jurídica (Ibid., pp. 237 ss.). Quanto à soberania, Kelsen afirma que atribuí-la ao estado depende da escolha que se faz quanto às hipóteses de primado do direito estatal ou do direito internacional. Na primeira hipótese, o estado é soberano só em sentido relativo, pois nenhuma outra ordenação, que não a internacional, é superior à sua ordenação jurídica. Na segunda hipótese, o estado é soberano no sentido absoluto e original do termo (Ibid., p. 391). Essa doutrina representa uma notável simplificação do conceito descritivo tradicional de estado, reunindo todos os elementos deste na noção fundamental de ordenação jurídica. Por outro lado, porém, estabelece a equivalência de todas as ordenações jurídicas enquanto tais, ou seja, de todas as formas de Estado. O forma-lismo de Kelsen não permite, com efeito, estabelecer qualquer diferença entre estado absolutista e estado liberal, entre estado democrático e estado totalitário, entre estado coletivista e estado liberalista, etc. Inclusive a expressão estado de direito, com que se designa o estado que respeita ou garante os chamados “direitos inalienáveis” do indivíduo, do ponto de vista de Kelsen é desprovida de sentido, já que, para ele, estado e direito coincidem. Contudo, justamente por seu caráter formalista, a doutrina de Kelsen sobre o estado, assim como a sua doutrina do direito, abre caminho para a consideração da eficácia (e portanto dos limites) da técnica coercitiva em cada uma de suas fases ou manifestações, ou seja, das ordenações em que se concretiza. Quando Humboldt falava dos “limites da ação do estado” (Die Grenzen der Wirksamkeit des Staates, 1851) explicava esses limites justamente pela impossibilidade de o estado atingir certos fins com o único meio de que dispõe, ou seja, a técnica coercitiva. Por esse motivo, Humboldt colocava além dos limites da ação do estado a religião, o aperfeiçoamento dos costumes e a educação moral, coisas que dependem de uma disposição não controlável pelos instrumentos de que o estado dispõe. Por outro lado, o estado como ordenação jurídica dificilmente poderia evitar o juízo (propriamente jurídico) sobre a compatibilidade recíproca das normas que constituem tal ordenação, o juízo (este também jurídico) sobre a eficácia de tais normas em alcançar seus objetivos, que é o juízo dado pela chamada ciência da legislação, nem o juízo (político) sobre a oportunidade de incluir, excluir ou modificar normas ou grupos de normas da ordenação em que ele consiste (v. política). [Abbagnano]