A especificidade e a autonomia de toda a ciência não surgem por simples providência epistemológica, mas através de laboriosos progressos. A sociologia não foge a esta regra. Ao longo dos séculos, ela conseguiu emergir, progressivamente, de diferentes níveis epistemológicos, de diferentes filosofias e visões do mundo que, na sua origem, não eram nem sociológicos nem científicos. Gaston Bachelard mostrou bem no seu livro La Formation de l’esprit scientifique que toda a ciência que se interroga, se inspira em grandes imagens e se opõe, ao mesmo tempo, a esta tentação poética. É assim que os precursores dos sociólogos se viram durante muito tempo atormentados pelo menos por três metáforas. A primeira tende a comparar o «corpo» social a um organismo vivo. A segunda, a fazer voltar a sociedade às intenções conscientes da ética e da política. A terceira, que adota o símbolo da árvore de Jessé, assimila as sociedades singulares ao destino providencial de uma humanidade que se confunde com o progresso das técnicas. A primeira e a terceira propõem-nos uma imagem de um inconsciente social, mas que se organiza e se desenvolve segundo uma fatalidade biológica ou uma providência técnica; a segunda dá-nos, de uma forma clara, um objeto especificamente humano, mas baseado em decisões individuais.
As noções de uma ciência sociológica só muito lentamente se libertaram destas três metáforas. A fábula, ao mesmo tempo organicista e política, dos membros e do estômago (cf. La Fontaine, Fables, III, 2) ressoa, ainda em pleno século XIX na Physiologie sociale do conde Claude-Henri de Saint-Simon, assim como no Système de politique positive de Auguste Comte. E crê-se na tenacidade desta grande imagem quando se vê um autor contemporâneo tornar a traçar a sua história e, ao mesmo tempo, reclamar-se dela (G. Bonthul, La Biologie sociale, P. U. F., 1957). [13]
No que respeita à metáfora ético-política, ela é, talvez, ainda mais insidiosa que a precedente, pela simples razão de que, se a Cidade não é toda a sociedade, ela constitui, no entanto, uma parte importante do campo de reflexão das ciências sociais. Durante muito tempo, a sociologia foi estorvada por problemas morais e jurídicos sobre o fundamento da Cidade e a legitimidade do poder político. Platão, com La Republique e Les Lois, depois Aristóteles com La Politique, inauguraram, no Ocidente, o «mito da cidade ideal» (cf. R. Mucchielli, Le Mythe de la Cité idéale, Paris, 1960), mito que reapareceu, durante séculos, no horizonte das imediações do facto social e polarizou mesmo uma parte da sociologia moderna, e dotou muitos sociólogos daquele muito deplorável etnocentrismo, o qual consiste em encarar as nossas sociedades citadinas e políticas ocidentais como o único e perfeito modelo de toda a sociedade. A Reforma e o Renascimento reforçarão esta imagem regente em obras mais ou menos inspiradas na Antiguidade, tais como L’Utopie de Thomas More (1516), La Nouvelle Atlantide de Francis Bacon (1621), La Cité du Soleil ou L’Idée d’une République de Campanella (1625). Le Contrat social de Rousseau e Les Considérations sur les causes de la grandeur et de la décadence des Romains de Montesquieu representam, no declínio do século XVIII (1762), o tipo acabado da meditação filosófica sobre o fundamento ético das sociedades.
No que respeita à terceira metáfora, veremos (cf. infra, textos 90 a 95) como ela suporta, em pleno século XIX, o debate relativo à dinâmica sociocultural. É dela que derivam todas as filosofias da história, decalcadas de «l’Histoire Sainte» e privilegiada do povo judeu.
No entanto, houve autores clássicos que tiveram intuições fugazes, logo apagadas nas concepções filosóficas do seu tempo, sobre o que deveria ser uma ciência sociológica. Torna-se aqui necessário prestar homenagem a Hobbes, Rousseau e Montesquieu. Thomas Hobbes concebeu, já em pleno século XVII. que «o estado civil» é radicalmente diferente do estado natural. A sociedade — confundida, ainda, com o «poder» político que a ordena — é comparada ao monstro Leviatã, através do qual o Deus da Bíblia afirma e manifesta o seu atributo de todo-poderoso. Colocámos na capa desta recolha de «textos escolhidos» o rosto de Leviatã, monstro antropomorfo formado a partir de todos os direitos individuais alienados que o constituem, assim como o sangue e os músculos. Não passa de uma imagem, é certo, mas em progresso epistemológico relativamente à imagem tradicional dos «membros e do estômago». O facto de a sociedade ser representada como um monstro, como um conjunto artificial de elementos, como uma organização autônoma de poderes, constitui um imenso progresso, relativamente às imagens naturalistas até então acatadas. Através desta contra-imagem, Hobbes foi o primeiro a colocar a dialética, fundamental para a sociologia, da natureza e da sociedade. Sem dúvida que o pensador cromwelliano estabelece a doutrina política do despotismo, mas incita a pesquisa social a não mais fazer derivar a sociedade quer de um destino biológico e natural quer de aspirações psicológicas ou morais dos indivíduos. Rousseau, num sentido completamente diverso, teve de reconhecer esta força específica do «estado civil» (Contrat social, cap. VIII, liv. I), enquanto Montesquieu, na célebre obra De L’Esprit des lois, se interroga sobre todas as relações positivas que ligam os códigos jurídicos à «natureza das coisas» e já não à vontade dos homens ou à providência de Deus. Mas apesar destas geniais intuições filosóficas, foi preciso esperar pelos meados do século XIX para que a palavra e a ciência «sociologia» fossem instituídas. Tal como Michel Foucault mostrou claramente (Les Mots et les choses, Paris, 1966, p. 229 e segs.), foi durante a primeira metade do século XIX que apareceu o «episteme» moderno, e com ele — para o bem e o mal — as ciências sociais: «Estranhamente, o homem — cujo conhecimento passa aos olhos ingênuos como a mais antiga pesquisa desde Sócrates — mais não é do que uma certa fratura na ordem das coisas, uma configuração, em todo o caso, desenhada pela disposição nova que ele, recentemente, tomou face ao saber.» É, portanto, a partir desta «fratura» epistemológica, que constitui a «nossa modernidade», que faremos surgir aquilo a que é legítimo chamar «a sociedade moderna». Foi este desnivelamento epistemológico que permitiu, no século XIX, com Augusto Comte e com Marx, o abandono das metáforas poéticas ou filosóficas e a constituição progressiva de um «estudo científico da organização das sociedades humanas».