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Onfray (2025) – Autoestima
ONFRAY, Michel. L’été sans bord Journal hédoniste. Paris: Albin Michel, 2025.
1. O paradoxo da estima de si: A impossibilidade da estima de si
- A estima de si não pode ser compreendida como uma categoria ideal ou idealista, nos moldes das abstrações técnicas de Platão ou Kant, exigindo, em contrapartida, uma contextualização histórica e geográfica que evidencie como a percepção de si entre os gregos difere substancialmente daquela dos primeiros cristãos, ou ainda da configuração assumida após a erradicação da aristocracia pela Revolução Francesa.
- Verifica-se uma mutabilidade semântica da estima de si através do tempo e do espaço, onde a concepção ocidental se distingue da oriental, e as variações internas a essas esferas — como o ocidente pré e pós-cristão, ou o oriente árabe em contraste com o japonês — demonstram que a cavalaria pré-islâmica e o feudalismo nipônico possuem entendimentos divergentes sobre o que constitui o apreço pelo próprio ser.
- A interrogação sobre a natureza dessa noção revela abismos de significado quando se comparam figuras díspares como um aristocrata contemporâneo de Péricles, um escravo do século de Catão, o Velho, um cristão aguardando o martírio com Santa Blandina, um cristão oficial do Império Romano, um japonês da era Kamakura, o autor do código de ética dos samurais, um duelista do Grande Século francês, um jacobino de 1793, um burguês contemporâneo das personagens de Flaubert ou um intelectual existencialista como Sartre.
- A tentativa de Kant, na Doutrina da Virtude de 1797, de classificar a estima de si como uma modalidade de dever do homem para consigo mesmo pressupõe erroneamente que as questões do dever e do sujeito são límpidas e absolutas, ignorando que tais conceitos são relativos a épocas e geografias, o que define a estima de si como uma categoria plástica, dinâmica e dialética, apreensível apenas por uma análise espectral.
- O exercício da estima de si encerra um paradoxo fundamental ao exigir que o sujeito seja simultaneamente juiz e parte, levantando a questão de como é possível estimar-se ao justo valor, visto que estimar, conforme a definição lexicográfica, implica determinar o valor ou preço de algo, operação factível para objetos externos, mas aporética quando o objeto de estimação é o próprio ser que avalia.
- Desde os moralistas do século XVII, com La Rochefoucauld à frente, reconhece-se que o amor-próprio e o egoísmo conduzem as ações humanas, o que torna questionável a possibilidade de uma estima justa de si por si mesmo, uma vez que o julgamento é inevitavelmente turvado pelo sujeito que se estima, e se a avaliação por outrem já constitui um paralogismo, a autoavaliação revela-se igualmente impossível.
- Estimar a si mesmo pressupõe a capacidade de enunciar a verdade sobre si a partir de si, o que exige um autoconhecimento profundo, remetendo ao oráculo de Delfos utilizado por Sócrates — conhece-te a ti mesmo —, convite que implica uma busca introspectiva e reflexiva, um retorno sobre si mesmo para escavar não o fundo do ser em geral, mas do seu próprio ser.
- Grandes obras da história da filosofia, como os Pensamentos de Marco Aurélio, as Confissões de Santo Agostinho e de Rousseau, os Ensaios de Montaigne, Ecce Homo de Nietzsche, textos de Freud, Sartre, Pierre Bourdieu e Alain Badiou, configuram-se como exercícios de estima de si no sentido de tentativas de autoconhecimento, definindo uma estima objetiva de si.
- Existe um segundo sentido, de caráter mais psicológico e afetivo, que configura uma estima subjetiva de si, onde o sujeito deve apreciar-se ao justo valor, evitando tanto a soberba da superestimação quanto a humildade excessiva da subestimação, tratando-se aqui de uma modalidade do amor de si.
- Enquanto a estima objetiva propõe uma análise anatômica e quase científica para responder à questão sobre quem se é, a estima subjetiva realiza uma análise afetiva sobre como se tornou quem se é, projeto de autoanálise existencial que Sartre tenta em As Palavras, mas que abandona antes da conclusão, sugerindo que a justa estima de si por si mesmo constitui uma missão impossível.
2. O momento socrático: A justa estima de si
- A justa estima de si, na perspectiva socrática, vincula-se estritamente à resposta ao imperativo délfico de conhecer a si mesmo, preceito de origens imemoriais na Grécia, atribuído a diversos sábios e poetas anteriores a Sócrates, cuja inscrição no templo de Delfos, embora não atestada arqueologicamente, carregava o significado de reconhecer os próprios limites e a condição mortal diante dos deuses.
- A compreensão desse preceito ilumina a fórmula de Píndaro — torna-te o que tu és —, que pressupõe uma existência anterior ao ser atual e um devir condicionado pela teoria da transmigração das almas herdada de Pitágoras e presente em Platão, onde a conduta em vidas passadas determina a reencarnação atual, seja em seres nobres como abelhas ou em animais impuros como porcos.
- O imperativo de conhecer a si mesmo equivale, portanto, à advertência de não se julgar um deus, definindo a estima de si como o reconhecimento da dualidade constitutiva humana, composta de corpo material e alma imaterial, sujeita aos processos de reencarnação e metempsicose.
- Embora a dialética das almas seja inevitável, o indivíduo pode agir sobre o destino de sua alma através de seu comportamento, optando pela sociabilidade ou pela devassidão, o que significa que, sem pretensão à divindade, é possível viver de modo a divinizar a existência e cessar o ciclo de reencarnações, alcançando a beatitude da união com o ser original inteligível.
- Plotino, discípulo radical de Sócrates e autor das Enéadas, exemplifica essa estima de si dualista ao desprezar o corpo material detestável em favor da veneração da alma espiritual, dedicando a vida a exercícios de purificação para separar um do outro e unir-se à alma do mundo, estabelecendo que a desestima corporal gera a estima espiritual, preparando o terreno para o advento do cristianismo.
3. O momento cristão: A dupla estima de si
- O cristianismo inverte a lógica da estima de si ao transformá-la em imperativo de desestima, propondo a imitação de Jesus Cristo — uma ideia sem carne, um Verbo veterotestamentário atualizado — como horizonte existencial e ético, considerando a estima de si como uma manifestação de amor-próprio imoderado, egoísmo, vaidade e orgulho.
- A figura de Jesus é construída como o cumprimento das profecias do Antigo Testamento, reiterando palavras dos Salmos nos momentos finais da crucificação, e apresenta-se como um anticorpo crístico nascido de uma virgem, vivendo uma existência mágica e simbólica, morrendo e ressuscitando, oferecendo um modelo de corpo supliciado que deve ser imitado, conforme a divisa jesuíta de ser semelhante a um cadáver.
- A imitação de modelos assexuados e incorpóreos, como Cristo e a Virgem Maria, conduz a uma estima de si baseada na autodetetação, na maceração, na humilhação e na ascese, onde a negação de si torna-se a forma suprema de autoafirmação, levando monges do deserto a extremos de privação, sujeira, imobilidade e isolamento como oferenda existencial a Deus.
- Santo Agostinho, em suas Confissões, radicaliza a humilhação ao narrar sua juventude pecaminosa e o episódio do roubo das peras como prova de uma perversidade intrínseca que ama o mal pelo mal, teorizando posteriormente na Cidade de Deus que o pecado original se transmite sexualmente através do esperma, resultando em uma condenação da sexualidade que contamina todo o pensamento cristão.
- Configura-se, assim, uma estima de si dúplice: negativa em relação ao corpo, carne, desejos e matéria, e positiva em relação à alma e ao espírito, pois é através da parte imaterial e semelhante a Deus que a união divina se torna possível, exigindo o descarte da carne pecadora em favor do espírito salvífico, tema que dominará a patrística e a escolástica por séculos.
4. O momento cavaleiresco: A estima de si como dever
- O cristianismo feudal engendra uma ética cavaleiresca onde a espada serve ao suserano e à proteção dos desvalidos, conforme preconizado por Raimundo Lúlio no século XIII, estabelecendo a defesa das viúvas e órfãos como ofício do cavaleiro e criando uma ética da honra que suplementa a ética da vergonha agostiniana.
- A nobreza obriga o indivíduo a cultivar uma autoimagem positiva perante seus pares e superiores, demonstrando lealdade, fidelidade e coragem para honrar sua linhagem e inscrever seu nome no firmamento moral, aspirando ao ideal de ser um cavaleiro sem medo e sem mácula, capaz de enfrentar a morte e ostentar feridas como provas de valor.
- Esse ideal aristocrático pressupõe uma federação dos melhores, pautada pela cortesia no campo de batalha e dignidade no tratamento dos vencidos, onde a palavra dada compromete a honra de quem a profere e de quem a recebe, sendo o descumprimento uma fonte de desonra absoluta.
- A introdução das armas de fogo altera as regras do jogo, substituindo a coragem e a honra do duelo pela habilidade técnica de matar à distância, mas o ideal de arriscar a vida pela reputação permanece como o núcleo da alta estima de si cavaleiresca.
- O cristianismo paulino reverbera nesse modelo ao conceber o cavaleiro como alguém capaz de morrer por suas ideias, sacrificando-se valentemente na crença de que seu ideal supera sua existência individual, uma lógica de estima de si férrea que encontra paralelo no seppuku japonês, onde a morte voluntária valida o valor do ideal.
5. O momento Montaigne: A alegre estima de si
- Montaigne opera uma revolução filosófica silenciosa com os Ensaios de 1580, inaugurando a primeira tentativa de uma pura estima de si e rompendo com séculos de tradição de ódio ao corpo e aos desejos que unia filósofos clássicos e teólogos cristãos.
- Ao eleger a si mesmo como a matéria de seu livro, Montaigne pinta-se sem artifícios, confessando imperfeições físicas, falhas de memória e hábitos cotidianos, não por narcisismo, mas com o propósito filosófico de retratar a condição humana universal através de sua própria particularidade, independentemente de Deus, mantendo uma postura fideísta que separa o divino do mundano.
- A estima de si em Montaigne não é uma fruição egocêntrica, mas um prazer tomado no mundo, diferindo da incompreensão de Pascal que via nisso um projeto tolo e odioso, pois para Montaigne trata-se de um projeto de análise pessoal, uma técnica introspectiva e um cuidado de si isento de culpa, visando a arte de sopesar-se corretamente para gozar lealmente do próprio ser.
6. O momento cartesiano: A estima de si metódica
- Descartes, influenciado por Montaigne, redige o Discurso do Método em vernáculo para ser acessível a todos, deslocando a busca da verdade dos livros sagrados para o mundo e para a razão matemática, transformando o que seria um prefácio científico em uma obra-prima da literatura filosófica e um exercício de estima de si.
- A estima de si cartesiana foca-se na razão e no seu funcionamento, iniciando-se pela dúvida metódica que suspende todas as certezas, exceto as religiosas e políticas por prudência, e questiona até a realidade sensível, chegando à certeza indubitável do pensamento que se pensa.
- O cogito cartesiano — penso, logo existo — emerge como uma certeza que procede de uma estima de si científica, liberta das amarras teológicas, onde a estima de si se torna uma operação da inteligência e a produção de uma verdade primeira, inventando o Eu como entidade separada do mundo e capaz de objetivá-lo.
7. O momento moralista: A estima de si como paixão da alma
- No Grande Século, paralelamente ao cartesianismo, os moralistas como La Rochefoucauld, La Bruyère e La Fontaine desenvolvem uma filosofia baseada na observação dos costumes e da psique humana, onde fábulas como a da rã que queria ser boi ilustram os perigos de uma estima de si desajustada da realidade natural.
- Descartes e Espinoza analisam as paixões da alma, e os moralistas subsequentes, como Chamfort e Vauvenargues, desenham uma psicologia experimental que afasta a estima de si do idealismo humanista, convertendo-a em uma paixão exercida de si para si, uma modalidade de reação afetiva ao mundo.
- A observação nos salões mundanos leva à conclusão de que o amor de si é o motor das ações humanas, uma espécie de cogito narcísico — amo-me, logo existo —, que seculariza a estima de si, tratando-a como uma paixão natural e um dado factual da ontologia humana, desvinculada de transcendências religiosas ou ideais ascéticos.
8. O momento quixotesco: A desconstrução da estima de si
- Cervantes, com seu Dom Quixote, realiza a crítica definitiva do modelo cavaleiresco ao ridicularizar o protagonista que, intoxicado por leituras, tenta encarnar um ideal anacrônico em um mundo que já não comporta tais valores, contrastando sua alucinação com o materialismo sensato de Sancho Pança.
- A estima de si de Dom Quixote é falha por superestimação, projetando ideais sublimes em realidades vulgares, como transformar moinhos em gigantes e camponesas em deusas, o que evidencia o descompasso entre a estima de si cavaleiresca e a realidade, marcando o crepúsculo da moral aristocrática e cristã dos monges-soldados.
9. O momento negador: A estima de si, valor aristocrático
- A Revolução Francesa opera uma ruptura metafísica na civilização judaico-cristã, derrubando valores sagrados e transcendentes em favor de uma ideologia que divide o mundo entre culpados e vítimas e inverte as virtudes clássicas, transformando a polidez e a honra aristocrática em vícios contrarrevolucionários.
- Novos valores baseados nas paixões tristes — ódio, violência, vulgaridade e ressentimento — são promovidos por figuras como Hébert, instaurando um niilismo onde a estima de si e a estima do outro são aniquiladas pela suspeita, pela denúncia e pelo terror, exemplificado pelas tricoteiras ao pé da guilhotina e pela execução de antigos aliados.
- A era do Terror executa a estima de si ao destruir a moral e os valores de honra, culminando na figura de revolucionários niilistas que, ao enfrentarem a própria morte, demonstram total ausência de dignidade e estima de si, estendendo o nada sobre a nação como uma mortalha.
10. O momento niilista: A estima de si burguesa
- A ascensão da burguesia substitui a teocracia e a aristocracia pelo domínio da propriedade privada e do dinheiro, gerando uma estima de si baseada na posse material, na satisfação presunçosa e no poder sobre o outro, perfeitamente retratada na literatura de Flaubert e na pintura de Ingres como uma forma de pensar baixo.
- A estima de si contemporânea manifesta-se como um narcisismo exacerbado e exibicionista, potencializado pelas redes sociais onde a privacidade é abolida em favor da espetacularização do trivial e do banal, transformando o eu em objeto de culto público e o mundo em mero cenário para o sujeito.
- O corpo torna-se o foco central dessa estima de si superficial, cultuado através de regimes, cirurgias e imagens retocadas, culminando na figura da celebridade vazia, como Kim Kardashian, que encarna a quintessência dessa autocelebração planetária, reduzindo a nobreza da introspecção socrática ou agostiniana a uma piada diante do cinismo moderno.
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