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Onfray (2012) – Camus, uma metafísica do absurdo
ONFRAY, Michel. L’ordre libertaire: la vie philosophique d’Albert Camus. Paris: Flammarion, 2012.
A condenação física e a formação da sensibilidade filosófica à beira do abismo
- A tuberculose impõe a Camus uma visão trágica da existência, na qual a lucidez sobre a irreversibilidade da patologia pulmonar inscreve a vida em uma lógica desesperadora, no sentido etimológico de cessação da esperança de cura, transformando a filosofia não em um jogo teórico ou lúdico, mas em uma arte de viver à beira do precipício ontológico desde os dezessete anos.
- A enfermidade atua como um duplo vetor de exclusão social e institucional, impedindo inicialmente o acesso ao magistério e à agregação em filosofia devido à recusa administrativa, e posteriormente interditando o alistamento militar nas forças francesas durante a guerra, o que configura uma dupla condenação à morte social para o pupilo da nação: a sociedade o rejeita tanto como professor quanto como soldado, forçando-o a uma sucessão de ofícios precários antes de sua consolidação no jornalismo literário e político em Argel e depois em Paris.
- A impossibilidade de frequentar a Escola Normal Superior e o afastamento do ensino clássico canônico, longe de constituírem apenas um déficit, favorecem uma erudição autodidata libertária que permite a Camus ignorar as exegeses oficiais e a artilharia sofística dos acadêmicos formatados, opondo-lhes uma sinceridade existencial nutrida por leituras vorazes e desordenadas que amalgamam Schopenhauer, Nietzsche, Agostinho, Plotino, as Upanishads, Stirner, Blanchot, Spinoza, Kierkegaard, Spengler, Sorel e Chestov, sem estabelecer hierarquias rígidas entre o corpus filosófico e a literatura de Homero, Flaubert, Balzac, Stendhal, Proust, Kafka, Melville, Dostoievski, Gorki e Malraux.
- Estabelece-se uma distinção fundamental entre a literatura filosófica, exemplificada por obras como O Estrangeiro e A Peste, que formulam visões de mundo através de personagens e narrativas fictícias sem se submeterem ao jogo da arte pela arte, e a filosofia literária, presente em O Mito de Sisifo e O Homem Revoltado, que mantém a profundidade veritativa através de uma prosa estética e elegante, rejeitando a dicotomia institucional que separa a filosofia filosofante da literatura pura, como ocorreria na distinção entre Hegel e Joyce.
A estética do romance e a crítica à primazia do conceito sobre a vida
- A teoria do romance filosófico proposta rejeita o didatismo pesado do romance de tese em favor de uma integração sutil onde a filosofia se transmuta em imagens, equilibrando personagens, ação e pensamento de modo que a estrutura teórica não sufoque a autenticidade da trama, um ideal de equilíbrio que Camus identifica na obra de André Malraux e utiliza como crivo crítico para avaliar a produção de seus contemporâneos.
- Na crítica literária exercida no Alger republicain, a análise de A Náusea de Jean-Paul Sartre revela as divergências fundamentais de método e sensibilidade, com Camus apontando o desequilíbrio causado pelo excesso de teoria e pela angústia explicitamente derivada de Kierkegaard, Chestov, Jaspers e Heidegger, o que transforma o romance em um monólogo sem a devida transmutação artística, embora reconheça no autor dons promissores que se concretizariam posteriormente em O Muro, onde Sartre finalmente alcançaria o equilíbrio narrativo ao descrever a desorientação ontológica de seres condenados à liberdade.
- A filosofia camusiana opera uma inversão dos valores acadêmicos tradicionais ao privilegiar a sensação, a emoção e a percepção em detrimento da razão legisladora, substituindo o conceito e o silogismo pela imagem e pelo mito, e rejeitando a idealização transcendental do mundo em favor de um materialismo sensual e empirista que celebra o contato imediato e fenomenal com a realidade, postulando que as ideias podem ser o oposto do pensamento vivo.
O Estrangeiro como manifestação do socratismo nietzschiano e a inocência do devir
- A figura de Meursault deve ser compreendida fora das leituras reducionistas cristãs, marxistas ou existencialistas, inscrevendo-se na ontologia do sobre-humano de Nietzsche, não na versão falsificada e politizada pela irmã do filósofo, Elisabeth Forster, que vinculou o conceito ao nacional-socialismo e ao antisemitismo, mas como uma proposição puramente ontológica de aceitação trágica da realidade e do eterno retorno.
- O verdadeiro sobre-homem nietzschiano, longe da caricatura do guerreiro cruel ou do nazista que almeja mudar o mundo baseando-se em ficções de pureza racial, é aquele que compreende a vontade de potência como a verdade imutável do mundo e pratica o amor fati, o amor ao destino que consiste em querer o que já é e o que inevitavelmente se repetirá, atingindo a beatitude através de um grande sim à vida tal como ela se apresenta, em oposição ao ressentimento e ao ideal ascético judaico-cristão criticado por Nietzsche.
- Meursault encarna a inocência do devir e a sabedoria trágica ao viver em total aderência ao presente, indiferente às convenções sociais e morais não por insensibilidade patológica, mas por uma disposição ontológica que o aproxima das sabedorias antigas e orientais, realizando sem esforço intelectual a coincidência entre o querer e a necessidade cósmica, característica do homem que superou as ilusões da transcendência e da redenção.
Genealogias do pensamento: o triângulo entre Pirro, Nietzsche e a sabedoria indiana
- A construção do ethos de Meursault remete a uma genealogia complexa que une o ceticismo antigo, o pensamento indiano e a filosofia nietzschiana, articulada intelectualmente através da mediação de Jean Grenier e seu estudo sobre Sextus Empiricus, estabelecendo uma linhagem que valoriza a impassibilidade, a ataraxia e a suspensão do juízo como vias de acesso à serenidade e à alegria soberana.
- A figura de Pirro de Elis, influenciada pelos ginosofistas indianos e pelo exemplo do sábio Calanos que se imolou impassível diante de Alexandre, o Grande, fornece o modelo do sábio que atinge a indiferença suprema diante das coisas, recusando-se a arbitrar entre o verdadeiro e o falso ou entre o bem e o mal, praticando uma aphasia e uma adiaphoria que dissolvem as perturbações da alma e anulam a pretensão dogmática da filosofia tradicional.
- O ceticismo pirrônico, ao afirmar a indiscernibilidade das coisas e a inutilidade das opiniões, não conduz a um niilismo paralisante, mas a uma forma de vida prática focada na tranquilidade do aqui e agora, uma sabedoria que Meursault pratica intuitivamente, sem acesso aos textos ou à terminologia filosófica, comportando-se como um estrangeiro no mundo das convenções sociais e das emoções fabricadas, mas plenamente integrado ao mundo físico das sensações e dos elementos naturais.
A prática da indiferença e a união mística com o mundo sensível
- A trajetória romanesca de Meursault é uma sucessão de atos de apathia, epoche e adiaphoria, manifestados na ausência de reações convencionais diante da morte da mãe, na indiferença frente às propostas de casamento de Marie ou de promoção profissional, e na execução mecânica e desapaixonada do crime sob o sol, comportamentos que revelam não uma deficiência psíquica, mas uma adesão profunda à equivalência universal de todos os eventos e destinos.
- Apesar da aparente frieza emocional, o protagonista experimenta momentos de intensa fruição estética e sensorial que remetem às extases de Plotino e à celebração nietzschiana do corpo, encontrando a felicidade na contemplação das cores do céu, na textura da água do mar, no calor do sol e na presença física de Marie, evidenciando uma sabedoria que reside na coincidência imediata com a natureza e na recusa de qualquer mediação intelectual ou moral.
- A cena final com o capelão marca a irrupção da cólera sagrada do apathique, momento em que Meursault, provocado pela insistência do religioso em vender consolações metafísicas e esperanças de outra vida, reafirma violentamente sua verdade terrestre e ateia, rejeitando a noção de pecado e a justiça divina em nome da certeza absoluta da morte e da vida presente, culminando na aceitação da tenra indiferença do mundo, que espelha a sua própria.
O enfrentamento do absurdo e a recusa do suicídio como afirmação da vida
- O Mito de Sisifo, concebido como o reverso teórico de O Estrangeiro e escrito sob a pressão da doença e da guerra, rejeita a filosofia professoral e sistemática em favor de uma interrogação existencial direta sobre o sentido da vida em um universo desprovido de Deus e de valores transcendentais, diagnosticando o absurdo não como uma propriedade do mundo, mas como o resultado do confronto entre o apelo humano por sentido e o silêncio irracional do universo.
- A constatação da absurdidade e da inevitabilidade da morte não legitima o suicídio, pois este ato seria uma aceitação da derrota e uma supressão do confronto que constitui a própria vida consciente; a resposta ética reside na revolta, que é a manutenção desse confronto sem esperança, e na decisão de viver a vida absurda com a máxima intensidade e lucidez, transformando a condenação à morte em uma regra de vida quantitativa e qualitativa.
- A felicidade de Sisifo, condenado a repetir eternamente o gesto inútil de rolar a pedra, reside na apropriação de seu destino e na consciência de que a luta em si mesma basta para preencher o coração de um homem, transformando a maldição em uma afirmação alegre da vida e ilustrando a fórmula nietzschiana de dizer sim ao mundo tal como ele é, recusando os consolos dos arrière-mondes.
Do reino mediterrâneo ao exílio europeu
- A evolução do pensamento e da vida de Camus descreve um movimento geográfico e simbólico que parte do reino mediterrâneo, caracterizado pela saúde bárbara, pela luz solar, pela fusão com a natureza em Tipasa e pela inocência do devir, em direção ao exílio europeu, marcado pela doença, pelo clima frio, pela história política violenta, pelas ideologias totalitárias e pelo niilismo dos intelectuais fascinados pela dialética da morte.
- A necessidade de tratar a tuberculose força o abandono da terra natal e dos prazeres físicos da existência argelina, lançando o autor em um ambiente de abstração e cinza onde a luta contra a morte e a busca por uma moral sem transcendência se tornam imperativos urgentes para quem deve construir um sentido sobre a efemeridade de uma vida que se sabe condenada ao apodrecimento lento dos pulmões.
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