Descombes (2014:I.II.7) – a pergunta “quem sou?”

Comecei perguntando: nós entendemos o que os filósofos têm chamado de sujeito há pelo menos dois séculos? Sabemos o que teríamos de ser para merecermos ser considerados sujeitos no sentido desses filósofos? Portanto, tivemos que nos perguntar de onde os filósofos tiram seu conceito de sujeito.

Portanto, tivemos que retornar à proposição fundamental de toda a filosofia do sujeito: ego cogito, ego sum. Heidegger apontou corretamente que essa fraseego cogito” foi analisada pelos filósofos (especialmente na tradição kantiana) como uma proposição predicativa adequada, com o pronome ego como sujeito e o verbo cogito como predicado. Entretanto, isso nos dá apenas um conceito lógico de sujeito, já que qualquer sentença atributiva será analisada da mesma forma. A pedra quente é tanto o sujeito de seu calor quanto Aquiles é de sua cólera. Essa análise lógica, portanto, não revela a subjetividade de um sujeito consciente de si.

Heidegger nos convida a derivar nosso conceito de subjetividade a partir de nossa compreensão da pergunta “Quem?”, acrescentando que ser um sujeito é precisamente ter de fazer essa pergunta a si mesmo em primeira pessoa, em um confronto consigo mesmo que traça uma alternativa: ser propriamente si mesmo ou não ser. De acordo com esse filósofo, o ser humano é um sujeito — em seu vocabulário, um Dasein — porque cabe essencialmente a ele confrontar a si mesmo. Para ele, esse confronto significa fazer a pergunta sobre seu ser na primeira pessoa, e fazê-la na forma de uma pergunta ao sujeito: “Quem sou eu?” (e não “O que sou eu?”, que seria uma pergunta sobre a quiddidade de um indivíduo natural). Heidegger ressalta que, na maior parte do tempo e para todos nós, a resposta a essa pergunta teria de ser: “Eu não sou eu.”1

Portanto, a filosofia existencial nos pede para fazer a pergunta “Quem?” na primeira pessoa. No entanto, acabamos de ver por que essa pergunta sobre o sujeito só se aplicaria a respeito de outro que não fosse si mesmo. O erro inaugural das filosofias clássicas do sujeito foi precisamente equiparar a primeira pessoa à terceira pessoa, torná-la uma variante subjetiva da terceira pessoa e procurar em vão identificar um sujeito, o eu, cujo nome próprio seria o pronome “eu”.

O que isso significa, senão que a pergunta existencial, se tiver algum significado, não é a pergunta do sujeito, mesmo que use a palavra interrogativa “quem”. É certo que essa pergunta existencial diz respeito a um ser tomado como sujeito de seu ato, mas ela não pergunta realmente quem é esse sujeito. Se eu perguntar sobre minha própria existência — em termos da oposição entre o próprio e o impróprio, o autêntico e o inautêntico, o ser-si-mesmo ou o não-ser-si-mesmo — a questão de quem é a existência já está decidida: é minha, não há incerteza sobre isso.

É possível usar a palavraquem” para fazer uma pergunta sobre o sujeito que não seja a pergunta do sujeito? O que queremos aprender perguntando “quem? se já não se trata da identidade de alguém?

[DESCOMBES, Vincent. Le parler de soi. Paris: Gallimard, 2014]
  1. « Le “dire-Je” naturel accomplit le On-même. Dans le “Je” s’exprime le Soi-même que, de prime abord et le plus souvent, je ne suis pas authentiquement. […] Si le On-même dit le plus bruyamment et le plus fréquemment le Je-Je, c’est parce que, fondamentalement, il n’est pas authentiquement lui-même et qu’il se dérobe au pouvoir-être authentique » (Être et Temps, op. cit., § 64).[]