Descombes (2014:C3) – o quê e o quem

Vários comentaristas recentes enfatizaram que Descartes, nas Meditações Metafísicas, escapou — pelo menos por um tempo, principalmente durante a Segunda Meditação — do que eles consideram ser as restrições da metafísica tradicional. Nesse ponto, a influência de Heidegger foi decisiva.

Heidegger argumenta que as noções clássicas de ser e existência são equívocas. A filosofia herdada as interpreta usando o par conceitual correspondente em latim às duas palavras quid e quod. Podemos dizer de uma coisa o que ela é (quid est), e também podemos dizer que existe ou que ela é (quod est). Assim, contrastamos a questão da existência (an est ?, existe?) com a questão da essência (quid est ?, o que é?). A pergunta an est ? dá conteúdo à noção tradicional de existentia. Onde a tradição fala de existência, Heidegger falará de presença ou presença disponível (Vorhandenheit)1, de modo a reservar a palavraexistência” para um uso que se aplica somente a nós, ao tipo de entes (ou “entes”) que nós mesmos somos. Para introduzir essas distinções, ele ressalta que temos duas palavras interrogativas, uma para coisas (o quê?) e outra para pessoas (quem?). O fato de haver esses dois modos de ser já está, portanto, marcado, segundo ele, pela maneira como fazemos perguntas elementares: “Ser é um quem (existência) ou um o quê (presença no sentido mais amplo).”2

Em uma palestra no verão de 1927, Heidegger chegou ao ponto de cunhar um termo especial para designar a questão do ser colocada em relação a uma pessoa. Uma vez que o vocabulário escolástico fornece o termo “quiddidade” — em alemão “die Washeit” — para designar a resposta à pergunta “O que é esta coisa?”, então poderíamos dizer em alemão “die Werheit”, literalmente o “ser-aí” ou a “quididade”, para designar a resposta à pergunta “Quem é este?” (uma pergunta necessariamente feita sobre aquilo que compartilha o mesmo modo de ser que nós)3.

Desde o início, devo expressar minha perplexidade inicial sobre essa dicotomia entre o que e quem. Heidegger explica na palestra em questão: “A resposta à pergunta ‘quem?’ não dá uma res, mas um Eu, um Tu, um Nós (ein Ich, Du, Wir)”. Essa tradução é confusa. Se a pergunta for, por exemplo, “Quem fará esse trabalho?”, a resposta pode de fato ser um pronome pessoal, mas não será “Je” ou “Tu”, mas sim “Moi”, “Toi” (ou, mais completamente, “C’est moi qui le ferai”, “C’est toi”, etc.). Portanto, teríamos que dizer que, em francês, a resposta exige um Moi ou um Toi no singular.

Uma segunda perplexidade, mais perturbadora, nos detém em nosso caminho. Quando nos deparamos com uma coisa, perguntamos o que ela é (a questão da quiddidade). Quando nos deparamos com uma pessoa, perguntamos quem ela é (a questão da Werheit). Mas se a pergunta sobre o ser de uma pessoa é carregada pela palavraquem”, trata-se de uma questão de identidade. E a resposta a uma questão de identidade não pode ser “Eu sou eu”, “Tu é tu”, “Ele é ele”. Esperamos algo como um nome próprio ou um conjunto de descrições identificadoras (“Eu sou fulano de tal”, “Ele é o encanador”, etc.). Então, é uma descrição de identificação que respostas como “Eu sou eu” ou “Eu sou este eu” fornecem?

  1. Sobre as razões para não adotar a tradução interpretativa de “Vorhandenheit” como “être sous la main”, veja as observações de Françoise Dastur em Heidegger et la question du temps, Paris, PUF, 1990, p. 124.[]
  2. « Seiendes ist ein Wer (Existenz) oder ein Was (Vorhandenheit im weitesten Sinne). » (Martin Heidegger, Sein und Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1967, § 9, p. 45.)[]
  3. Martin Heidegger, Les Problèmes fondamentaux de la phénoménologie (GA24), trad. Jean-François Courtine, Paris, Gallimard, coll. Bibliothèque de philosophie, 1985, p. 151. « Quissité » est le mot que propose Courtine pour traduire ce néologisme Werheit (lequel serait un hapax dans le corpus heideggérien selon Vincent Carraud, L’Invention du moi, op. cit., p. 256).[]