Sendo o saber constituído por duas formas, como haveria intencionalidade de um sujeito em direção a um objeto, se cada uma das formas tem seus objetos e seus sujeitos?1 E, entretanto, é necessário uma relação entre as duas formas que seja determinável e que saia de sua “não-relação”. O saber é ser, é a primeira figura do ser, mas o ser está entre duas formas. Não é justamente o que dizia Heidegger, com o “entremeio”, e Merleau-Ponty, com o “entrelaçamento ou o quiasma”? Na verdade, não é de forma alguma a mesma coisa. Pois, para Merleau-Ponty, o entrelaçamento, o entremeio se confundem com a dobra. Mas não para Foucault. Há um entrelaçamento, um entrecruzamento do visível e do enunciável: é o modelo platônico da tecelagem que substitui a intencionalidade. Mas esse entrelaçamento é um embate, uma batalha entre dois adversários irredutíveis, as duas formas do Ser-saber: se preferirmos, é uma intencionalidade, mas reversível, e multiplicada nos dois sentidos, tornada infinitesimal ou microscópica. Não é ainda a dobra do ser, é o entrelaçamento de suas duas formas. Não é ainda uma topologia da dobra, é uma estratégia do entrelaçamento. Tudo se passa como se Foucault reprovasse a Heidegger e a Merleau-Ponty o fato de irem muito rápido. E, o que ele encontra em Roussel, e de outra maneira em Brisset, e de outra maneira cm Magritte, e que poderia ter encontrado em Jarry, é a batalha audiovisual, a dupla captura, o ruído das palavras que conquistaram o visível, (120) o furor das coisas que conquistaram ο enunciável.2 Em Foucault, sempre houve um tema alucinatório dos Duplos, e do forro, que transforma toda a ontologia.
Mas essa dupla captura, constitutiva do Ser-saber, não poderia se fazer entre duas formas irredutíveis se o entrelaçamento dos lutadores não resultasse de um elemento ele próprio informe, de uma pura relação de forças que surge na irredutível separação das formas. Esta é a fonte da batalha ou a condição de sua possibilidade. Este é o domínio estratégico do poder, por oposição ao domínio estrático do saber. Da epistemologia à estratégia. Mais uma razão pela qual não há experiência “selvagem”, pois batalhas implicam uma estratégia e toda experiência está presa em relações de poder. É o segundo aspecto do ser, o “Possest”, o Ser-poder, por oposição ao Ser-saber. São as relações de forças ou de poder informes que instauram as relações “entre” as duas formas de saber formado. As duas formas do Ser-saber são formas de exterioridade, já que os enunciados se dispersam numa, e as visibilidades em outra; mas o Ser-poder nos introduz num elemento diferente, num lado de Fora não-formável e não-formado, de que vêm as forças e suas combinações mutáveis. E eis que essa segunda figura do ser ainda não é a dobra. É antes uma linha flutuante, e que não faz contorno, a única capaz de fazer as duas formas em combate se comunicarem. Sempre houve em Foucault um heraclitismo mais profundo do que em Heidegger, pois, afinal, a fenomenologia é pacificadora demais, ela abençoou coisas demais.
Foucault descobre então o elemento que vem de fora, a força. Foucault, como Blanchot, falará menos do Aberto que do lado de Fora. É que a força se relaciona com a força, mas de fora, de tal forma que é o lado de fora que “explica” a exterioridade das formas, tanto para cada uma quanto para sua relação mútua. Daí a importância de Foucault afirmar que Heidegger sempre o fascinou, mas que ele só o podia compreender através de Nietzsche, com Nietzsche (e não o inverso).3 (121) Heidegger é a possibilidade de Nietzsche, mas não o inverso, e Nietzsche não esperou a sua própria possibilidade. Seria preciso reencontrar a força, no sentido nietzscheano, o poder, no sentido específico de “vontade de potência”, para descobrir esse lado de fora como limite, horizonte último a partir do qual o ser se dobra. Heidegger se precipitou, dobrou rápido demais, e isso não era desejável: daí o equívoco profundo de sua ontologia técnica e política, técnica do saber e política do poder. A dobra do ser só se podia fazer a nível da terceira figura: será que a força pode se dobrar, de modo a ser afecção de si sobre si, afeto de si por si, de tal forma que o fora constitua por si mesmo um dentro coextensivo? O que os gregos fizeram não foi um milagre. Há em Heidegger um legado de Renan, a ideia da luz grega, do milagre grego.42 Foucault diz: os gregos fizeram muito menos ou muito mais, como quiserem. Eles dobraram a força, descobriram a força como alguma coisa que podia ser dobrada, e isso unicamente por estratégia, porque eles inventaram uma relação de forças que passava por uma rivalidade dos homens livres (governar os outros com a condição de governar a si próprio…). Mas, força entre as forças, o homem não dobra as forças que o compõem sem que o próprio lado de fora se dobre e escave um Si no homem. É isso, a dobra do ser, que vem na terceira figura, quando as formas já estão entrelaçadas, quando as batalhas já começaram: então o ser não forma mais um “Sciest” nem um “Possest”, mas um “Se-est”, na medida em que a dobra do lado de fora constitui um Si e o próprio fora constitui um lado de dentro coextensivo. Era preciso passar pelo entrelaçamento estrático-estratégico para atingir a dobra ontológica.
- Por exemplo, não há um “objeto” que seria a loucura, e que uma “consciência” visaria. Mas a loucura é vista de diversas maneiras e enunciada de outras maneiras ainda, conforme as épocas e até conforme os limiares de uma época. Não se veem os mesmos loucos e não se enunciam as mesmas doenças. Cf. AS, 45-46.[↩]
- E em Brisset que Foucault encontra o maior desenvolvimento da batalha: “Ele pretende restituir as palavras aos ruídos que as fizeram nascer, e colocar novamente em cena os gestos, os assaltos, as violências, dos quais elas formam uma espécie de brasão, agora silencioso” (GL, XV).[↩]
- “Todo o meu devir filosófico foi determinado pela minha leitura de Heidegger. Mas reconheço que foi Nietzsche quem venceu …” (Les Nouvelles. 40).[↩]