Se não tivesse havido o-cogito-de-Descartes, sem dúvida jamais teria havido o-cogito-de-Agostinho. Mas, mais ainda, se não tivesse havido, aumentando a mira, esse objeto trans-histórico: “o”-cogito-EM-Descartes, ninguém jamais teria se interessado em “o” procurar, e naturalmente em “o” encontrar em estado nascente nesse outro: “o”-cogito-EM-Agostinho. Procurar o primeiro/último domicílio conhecido de um conceito sem domicílio fixo não é verdadeiramente a tarefa do historiador. Assim como “o” cogito, “o” sujeito “cartesiano”, seu irmão siamês, não existia antes que filósofos pós-cartesianos o introduzissem em Descartes. O mesmo se pode dizer “do” sujeito “pré-cartesiano”. Uma arqueologia do sujeito deve, portanto, “traçar” dois produtos distintos, um na história, outro na historiografia: a entrada do sujeito na filosofia, de um lado, e a invenção da figura do sujeito, de outro, evitando confundir o trajeto efetivo de um com as etapas inventadas na projeção retrospectiva do outro. Tarefa difícil, pois, evidentemente, tudo se atrela, e a criação moderna “do” sujeito “cartesiano” tem alguma coisa a ver com Descartes. O que exatamente? Essa é a questão.
Não poderíamos dizer no momento quem dos Modernos falou pela primeira vez de “sujeito” lendo ou discutindo Descartes. Certa página de Henri Gouhier dá a entender que Maine de Biran poderia ter introduzido a expressão “sujeito psicológico” a propósito do cogito 1. Mas é certo que o autor do Ensaio sobre os Fundamentos da Psicologia foi um dos primeiros a inquirir o processo cartesiano da res cogitans, quer se trate de estigmatizar um erro categorial fundado em uma simples identidade lógica (“altera-se a verdade do fato ao transformar, por uma identidade lógica, o eu atual no ser ou a alma coisa, tomada como a coisa pensante” 2), de denunciar o recurso à ideia de substância, incompatível com a de ação ou de atividade (pois a substância é “sempre concebida sob uma relação de passividade” 3), ou de combinar as duas críticas imputando-lhe uma incapacidade de expressar a individualidade do “sujeito” real. Supondo-se que não houvesse nenhuma menção ao “sujeito” em Descartes, é forçoso constatar que havia o suficiente para seu adversário imputar por isso mesmo ao cartesianismo uma maneira de recuo diante de sua própria descoberta. Como diz, de fato, a monografia sobre A Ideia de Existência:
Descartes teve evidentemente a intenção de buscar seu ponto de partida no sujeito tal como ele existe; mas, levado pelas formas da linguagem, ele expressa a individualidade precisa do sujeito sob o termo universal apelativo de um objeto indeterminado: daí todas as ilusões lógicas e físicas nascidas do princípio ou da forma de seu enunciado 4.
Como se vê, não basta dizer que “o” sujeito “cartesiano” é um produto da leitura moderna de Descartes: o que é preciso dizer, e antes de tudo ver, é que a própria noção de “sujeito” é um operador meta-histórico que permite inscrever o cartesianismo em um processo de longo prazo, demarcar seus limites e diagnosticar seu erro. No fundo, não é muito importante para nós, nesta fase, saber se Maine de Biran foi ou não o primeiro a inscrever as Meditações na órbita do “sujeito”: mais decisivo é o tom de serena familiaridade com que ele usa tal vocábulo, e a intimidade que ele supõe na relação de Descartes com seu próprio ponto de partida, como se o cartesianismo se tivesse pretendido de antemão, originária e naturalmente, uma psicologia “do” sujeito, e seu único erro fosse o de não ter conseguido constituir-se como tal. Um etnólogo diria que a ciência social do observado é eclipsada aqui pela do observador. Será que estaremos quites, então, ao afirmar, como filósofos sensatos, que o termo sujeito pertence à metalinguagem histórica antes de pertencer à linguagem objeto a que é aplicada? Com certeza não. A tese é justa, mas incompleta. É preciso ir mais longe na abstração, e tratar o sujeito da metalinguagem histórica como fazendo parte da linguagem objeto da arqueologia: “traçar”, como se disse, dois processos, duas histórias entrelaçadas uma à outra. Para fazer isso, é preciso dispor de ferramentas arqueológicas. Proporemos três. A primeira – a subjetividade – tomaremos de empréstimo a Heidegger. A segunda – o atributivismo – à interpretação analítica de Aristóteles. A terceira – o atributivismo – precisa ainda ser forjada.
- Cf. H. Gouhier, Essais sur Descartes, p. 214: “O eu do cogito é […] um sujeito psicológico, como dizia Maine de Biran, mas em um sentido mais biraniano do que ele supunha”.[↩]
- Maine de Biran, Essai sur les fondements de la Psychologie, VIII, p. 125.[↩]
- Idem, ibidem, pp. 222-223.[↩]
- Maine de Biran, De l’idée d’existence, p. 40. Muito tempo antes de Heidegger, portanto, Maine de Biran formulou a crítica que Ser e Tempo instala no centro de sua “destruição” do cartesianismo: a objetivação (coisificação) do sujeito. Como se verá, encontra-se a mesma crítica em Husserl.[↩]