Posicionar o indivíduo vivo como o princípio da sociedade e da história não é postular a existência de um indivíduo isolado, como algum Robinson Crusoé com base em quem tudo começaria. Essa abstração de um indivíduo sozinho no mundo, que se desenvolveria por si só, é incompatível com o conceito de indivíduo definido em termos de vida. Na vida, os indivíduos nascem em incontáveis números, porque cada vez que a vida se experimenta é necessariamente uma experiência singular. Através desse sentimento, ela gera alguém que é um Si. Posicionar o indivíduo como princípio da sociedade e da história é afirmar que a realidade da qual a sociedade e a história procedem é na com efeito uma realidade como a que o indivíduo habita e que o torna um indivíduo vivo. O impulso dessa interminável reiteração de desejo e necessidade dá origem à produção que visa satisfazê-los, uma produção assombrada por subjetividade que é subjetiva como ela. O que importa é, portanto, entender a natureza dessa produção, ou seja, entender como uma ação assentada no corpo vivo. Suas modalidades são de esforço difícil ou agradável; a produção é subjetiva, individual e um pathos, assim como a vida que ela prolonga e cujo impulso ela realiza.
[…] Um objeto de pensamento, no sentido adequado, é um conceito, por exemplo, o conceito de “história”, “sociedade” ou “classe social”. Um conceito é uma objetividade ideal e, como tal, é estranho à realidade e, principalmente, à realidade da vida. É por isso que é despojado de todas as propriedades reais ou vivas: de acordo com a famosa proposição de Spinoza, o conceito de um cão não late. […] É a crença de que a realidade pensada no conceito é do mesmo tipo que o conceito. Como o conceito, é uma realidade geral. A sociedade é assim entendida ilusoriamente no modelo e da mesma maneira que o conceito de sociedade. E assim como a extensão do conceito inclui todos os entes que lhe correspondem empiricamente (da maneira que a extensão do conceito da árvore inclui todas as árvores reais), a sociedade real também é coberta pelo conceito de sociedade. É apresentada como uma realidade geral definida por um conjunto de características e que inclui nela todos os entes que compartilham as mesmas características – todos os indivíduos. Essa sociedade se tornou Sociedade: uma realidade única e única cujos constituintes, indivíduos, são seu espelho e reflexo. É uma reflexão específica porque reflete e se assemelha à Sociedade, assim como cada árvore se assemelha à Árvore. Cada indivíduo é a imagem da sociedade à qual pertence; cada um é filho dos tempos. Ou melhor, a sociedade é o todo e o indivíduo é a parte, uma parte que é uma função do todo. O indivíduo é definido e determinado por ele.Como o indivíduo é definido pela Sociedade dos tempos? Como o indivíduo é determinado por isso a ponto de parecer um mero produto dele? Essas perguntas podem ser respondidas rapidamente, uma vez que esse é um dos lugares comuns repetidos por meio século pelos professores de todos os países. Desde a infância, ou mais precisamente desde o início da escola, o indivíduo fala a língua dessa sociedade, uma língua que já existe e na qual está imerso. Essa linguagem carrega toda uma série de significados e, finalmente, uma ideologia que o aluno inspira e expira com cada palavra que é ouvida ou proferida. Essa permeação vai tão longe que seria mais preciso dizer que não é o indivíduo que fala, mas a linguagem que fala dentro do indivíduo. É assim que se adquire um corpo inteiro de conhecimento junto com uma linguagem, o conhecimento da sociedade dos tempos. Mais precisamente, esse conhecimento é o que permite ocupar o lugar designado, seguir uma carreira, função estabelecida pela rede de relações sociais que compõem a sociedade – “relações sociais” – e que resulta de suas interseções. Um ocupará um lugar predefinido pela sociedade e o outro será o funcionário para essa função. Tudo isso é tão simples e claro …