Este termo significa o influxo da causa sobre seu efeito e a relação fundada em dito influxo. Habitualmente entende-se por causalidade o nexo causal eficiente, p. ex., quando se contrapõe causalidade a finalidade. Causalidade pode designar ainda a regularidade com que o efeito depende de uma causa (princípio de causalidade) ou a causa produz o efeito (lei de causalidade).
Causalidade natural é a maneira de conexão eficiente característica da natureza visível. Por causalidade psíquica entende-se o influxo causal de forças e processos psíquicos. Uma conexão causal de espécie inteiramente diferente, com seus problemas próprios, existe, p. ex., entre o conhecimento e o apetite, entre os processos sensoriais e os intelectuais, entre a atividade e o hábito, entre as representações por associação ou conexão lógica, entre o consciente e o inconsciente, entre os processos inconscientes entre si, entre a alma e o corpo. A representação da causalidade eficiente mecânica, como a conhecemos pela ciência natural, pode não satisfazer à causalidade psíquica. Ao espiritual compete principalmente uma força operativa originária, inexplicável por causas materiais. VIDE ação recíproca — Naumann [Brugger]
Este tipo de causalidade é o que corresponde, na linguagem filosófica tradicional, à causalidade “eficiente”. Trata-se do princípio segundo o qual todo fenômeno sucede um outro do qual procede segundo uma regra (para retomarmos a fórmula de Kant). Segundo esse esquema de causalidade, as causas precedem necessariamente os efeitos. Nesta perspectiva, a causalidade final é, evidentemente, rejeitada, porque, no esquema de causalidade final, o “efeito” precede a “causa”; o efeito é “em vista da” causa, “tende” para ela; e a causa é situada temporalmente diante do efeito. Assim, a metafísica da representação comporta um parti-pris em favor da causalidade dos antecedentes e contra a causalidade dos fins. Este ponto de vista se encontra vinculado, como já indicamos, ao da analiticidade. Com efeito, se dermos prioridade às partes sobre o todo, nos impedimos de pensar em termos de finalidade, posto que pensar segundo a finalidade significa, ao contrário, dar prioridade ao todo sobre as partes. [Ladrière]
(gr. aitia, aition; in. Causality; fr. Causalité; al. Causalität; it. Causalita).
Em seu significado mais geral, a conexão entre duas coisas, em virtude da qual a segunda é univocamente previsível a partir da primeira. Historicamente, essa noção assumiu duas formas fundamentais: 1) A forma de conexão racional, pela qual a causa é a razão do seu efeito e este, por isso, é a dedutível dela. Nessa concepção, a ação da causa é frequentemente descrita como a de uma força que gera ou produz indefectivelmente o efeito. 2) A forma de uma conexão empírica ou temporal, pela qual o efeito não é dedutível da causa, mas é previsível com base nela pela constância e uniformidade da relação de sucessão. Essa concepção elimina a ideia de força da relação causal. A ambas essas formas são comuns as noções de previsibilidade unívoca, infalível, do efeito a partir da causa e, portanto, também a de necessidade da relação causal.
1) Pode-se dizer que a primeira forma da noção de causa começa com Platão, que considera a causa como o princípio pelo qual uma coisa é, ou torna-se, o que é. Nesse sentido, afirma que a verdadeira causa de uma coisa é aquilo que, para a coisa, é “o melhor”, isto é, a ideia ou o estado perfeito da própria coisa; p. ex., a causa do dois é a dualidade; do grande, a grandeza; do belo, a beleza. De modo geral, o bem é a causa daquilo que existe de bom nas coisas e das próprias coisas (Fed., 97 c ss., espec. 101 c). Ao lado dessas causas “primeiras” ou “divinas”, Platão admitiu depois as con-causas, que são as limitações encontradas pela obra criadora do demiurgo e que constituem os elementos de necessidade do próprio mundo (Tim., 69 a). Mas a primeira e verdadeira análise da noção de causa encontra-se em Aristóteles. Este afirma, pela primeira vez (Fís., I, 1, 184 a 10), que conhecimento e ciência consistem em dar-se conta das causas e nada mais são além disso. Mas, ao mesmo tempo, nota que, se perguntar a causa significa perguntar o porquê de uma coisa, esse porquê pode ser diferente e há, portanto, várias espécies de causas. Num primeiro sentido, é causa aquilo de que uma coisa é feita e que permanece na coisa, como, p. ex., o bronze é causa da estátua e a prata é causa da taça. Num segundo sentido, a causa é a forma ou o modelo, isto é, a essência necessária ou substância de uma coisa. Nesse sentido; é causa do homem a natureza racional que o define. Num terceiro sentido, é causa aquilo que dá início à mudança ou ao repouso: p. ex., o autor de uma decisão é a causa dela, o pai é causa do filho e, em geral, o que produz a mudança é causa da mudança. Num quarto sentido, a causa é o fim e, p. ex., a saúde é a causa de se passear (Ibid., II, 3, 194 b 16; Mel, V, 2, 1013 a-b). Causa material, causa formal, causa eficiente e causa final são, portanto, todas as causas possíveis, segundo Aristóteles. Três teoremas fundamentais esclarecem essa teoria aristotélica da causa. São: 1) a contemporaneidade da causa atual e de seu efeito, como, p. ex., da ação construtora do arquiteto e da casa; essa contemporaneidade não se verifica na causa potencial; 2) a hierarquia das causas, pela qual é preciso procurar sempre a causa mais alta: p. ex., o homem constrói porque é construtor, mas é construtor pela arte de construir; essa arte é por isso a causa mais alta; 3) a homogeneidade da causa e do efeito, pela qual os gêneros são causa dos gêneros, as coisas particulares das coisas particulares, o escultor da estátua, as coisas atuais das coisas atuais, as coisas possíveis das coisas possíveis (Fís., II, 3, 195 b 16 ss.).
Mas a advertência fundamental é que as quatro causas não estão no mesmo plano: há uma causa primeira e fundamental, um porquê privilegiado, que é dado pela essência racional da coisa, pela substância (De part. an., I, 1, 639 b 14). A substância é a essência necessária, eternamente atual, princípio de realidade, portanto também do devir enquanto passagem da potência ao ato. Da substância depende a necessidade causal. “Nas coisas artificiais”, diz Aristóteles, “sendo a causa essa tal coisa, é preciso, necessariamente, que essas outras coisas sejam feitas ou existam. Assim também na natureza, se o homem é isto, fará estas coisas, e se faz estas coisas, acontecer-lhe-ão outras” (Fís., II, 9, 200 a 35). Em outros termos, a necessidade pela qual uma causa qualquer (das que Aristóteles distingue) age é a própria necessidade pela qual uma substância (p. ex., o homem como animal racional) é o que é. A necessidade causal é, portanto, a própria necessidade do ser enquanto ser, do ser substancial: a necessidade pela qual o que é não pode ser diferente do que é. A essa necessidade escapa somente o que é acidental ou causal (v. acaso).
A doutrina de Aristóteles demonstra a estreita conexão entre a noção de causa e a de substância. A causa é o princípio de inteligibilidade porque compreender a causa significa compreender a organização interna de uma substância, isto é, a razão pela qual uma substância qualquer (p. ex., o homem, Deus ou a pedra) é o que é e não pode ser ou agir diferentemente. P. ex., se o homem é “animal racional”, o que ele é ou faz depende da sua substância assim definida, que opera como força irresistível para produzir as determinações do seu ser e do seu agir.
Os estoicos entenderam a causa como força produtiva, isto é, como “aquilo por cuja ação nasce um efeito”. Segundo Sexto Empírico (Pirr. hyp., III, 14-15), eles distinguiram as causas sinéticas, concausais e cooperantes. As sintéticas são as causas propriamente ditas que, “quando presentes, está presente o efeito; quando retiradas ou diminuídas, retira-se ou diminui também o efeito”. As concausais são as causas que se reforçam mutuamente na produção de um efeito, como no caso de dois bois que puxam o arado. A cooperante é a causa que produz uma pequena força, em virtude da qual o efeito se produz com facilidade: como quando um terceiro vem somar-se a outros dois que carregam um peso com dificuldade, ajudando a sustentá-lo. Mas, para os estoicos, a causa por excelência é a sintética e, nesse sentido, Deus é causa e constitui o princípio ativo do mundo (Dióg. L., VII, 134; SÊneca, Ep., 65, 2). A filosofia medieval em pouco ou nada inovou o conceito da estrutura causal (porque substancial) do mundo. Sua principal contribuição é a elaboração do conceito de causa primeira, em um sentido diferente do aristotélico, isto é, não como tipo de causa fundamental, mas como primeiro elo da cadeia causal. A elaboração desse conceito fora obra da escolástica árabe e, em particular, de Avicena. Em lugar da estrutura substancial do universo, cuja causalidade constituiria a necessidade intrínseca, Avicena põe a ordenação hierárquica das causas, que remontam à Causa Primeira. Diz Tomás de Aquino (S. Th., II, 1, q. 19, a. 4): “Em todas as causas ordenadas, o efeito depende mais da causa primeira do que da causa segunda, porque a causa segunda só age em virtude da causa primeira”. O teorema fundamental que rege essa concatenação universal causal e o seu caráter hierárquico é o que Tomás de Aquino exprime dizendo: “Quanto mais alta é uma causa, tanto mais amplo o seu poder causal” (Ibid., I, q. 65, a. 3): teorema de franca origem neoplatônica, já que os neoplatônicos tinham reconhecido, juntamente com o caráter universal da necessidade causal, a hierarquia das causas a partir da causa primeira (Proclo, Inst. theol, 11). Um produto dessa doutrina pode ser visto no ocasionalismo, segundo o qual a única e verdadeira causa é Deus, e as chamadas causas segundas ou finitas são apenas ocasiões de que Deus se serve para realizar os seus decretos (Malebranche, Recherche de la vérité, VI, 2, 3). O conceito aristotélico-árabe de uma ordem necessária no mundo, no qual todos os eventos encontram seu lugar e sua concatenação causal, é defendido, no Renascimento, pelos aristotélicos como pressuposto essencial do seu naturalismo. Assim, Pomponazzi pretende remeter até os acontecimentos mais extraordinários e miraculosos à ordem necessária da natureza e, para isso, utiliza o determinismo astrológico dos árabes (De incantationibus, 10). A noção de uma ordem causal do mundo (às vezes remetida a Deus como primeira causa), segundo o conceito neoplatônico e medieval, forma ainda o pressuposto e o fundamento dos primórdios da organização da ciência, com Copérnico, Kepler e Galileu. Essas bases são expressas em termos mecanicistas por Hobbes e, em termos teológicos, por Spinoza, mas são sempre as mesmas. Hobbes julga que a relação causal se reduz à ação de um corpo sobre o outro e que, portanto, a causa é o que gera ou destrói certo estado de coisas em um corpo (De corp., IX, 1). A causa perfeita, isto é, aquela a que segue infalivelmente o efeito, é o agregado de todos “os acidentes ativos” que existirem: com ela, o efeito já está dado (Ibid., IX, 3). A concantenação dos movimentos constitui a ordenação causal do mundo. Por sua vez, Spinoza, ao ver em Deus a única substância, também vê nele a única causa da qual todas as coisas e todos os eventos do mundo (os “modos” da Substância) derivam com necessidade geométrica (Et, I, 29). A necessidade causal que, para Hobbes, é uma concantenação dos movimentos, para Spinoza é uma concatenaçào de razões, isto é, de verdades que constituem uma cadeia ininterrupta. Além disso, para Hobbes o caráter mecânico da causalidade não diminm’ sua natureza racional, já que, aliás, Hobbes Vê no mecanismo a única explicação racional do mundo, no corpo e no movimento os dois únicos princípios de explicação, não reconhecendo outras realidades fora deles. Isso acontece porque para ele, assim como para Spinoza, prevalece a identificação, aceita por Descartes, entre causa e razão. A causa é o que dá a razão do efeito, demonstra ou justifica sua existência ou suas determinações. É assim que Descartes a concebe quando, definindo como analítico o método que emprega, afirma que ele “demonstra como os efeitos dependem das causas” (Secondes reponses). Isso significa que a causa é o que permite deduzir o efeito. E o significado daquele “princípio de razão suficiente” formulado por Leibniz como base das verdades de fato é que explicar por meio da causa é “dar a razão” daquilo que existe. “Nada acontece”, disse Leibniz (Théod., § 44), “sem que haja uma causa ou pelo menos uma razão determinante, isto é, algo que possa servir para dar a razão a priori de por que algo existe ao invés de não existir e de por que existe desse modo e não de outro”. Sem dúvida, esse ponto de vista não constituía uma novidade na história da noção de causa; a preeminência, reconhecida por Aristóteles, da substância como essência racional (logos) ou forma significava, precisamente, a exigência de que a causa constituísse a razão da coisa ou, em outras palavras, que tornasse cognoscível a priori, isto é, deduttvel, a existência e os caracteres da própria coisa. Quando Leibniz diz que a natureza de uma “substância individual” basta “para compreender e para permitir a dedução de todos os predicados do sujeito ao qual é atribuída” (Discours de métaphysique, § 8), está considerando essa natureza como a razão ou a causa dos caracteres e da existência da substância individual, que podem ser conhecidos apriori, isto é, deduzidos a partir dela. Nessas observações de Leibniz exprime-se com toda a clareza a exigência que Aristóteles já havia proposto: de que a causa, e em particular a “causa primeira” (no sentido aristotélico, não no medieval), constitua o princípio da dedução de todos os seus efeitos possíveis (v. fundamento).
Esse conceito persiste na filosofia moderna, sendo compartilhado tanto pelas doutrinas idealistas ou aprioristas quanto pelas doutrinas materialistas e mecanicistas. Fichte identifica a causalidade com a atividade criativa do eu infinito que se explica e se realiza segundo uma necessidade racional absoluta (Wissenschaftslehre, 1794, § 4, causalidade-D). Hegel considera a causalidade como a própria substância “enquanto refletida em si” (Enc., § 153), isto é, mergulhada em sua necessidade. “A causa perde-se no seu outro, o efeito; a atividade da substância causal perde-se no seu operar”, diz ele (Wissenschaftder Logik, III, 2, 1 B). Mas a substância causal é a própria razão, isto é, a realidade em sua essência descerrada. Nessas notas, a causalidade é identificada com a racionalidade substancial do mundo ou é considerada uma parte, um momento ou uma manifestação dessa racionalidade. Serve ora para definir a natureza da racionalidade, ora para ser definida por ela. Hegel, tomando como ponto de partida o étimo da palavra Ursache (causa), vê nela a “coisa originária” (Enc., § 153), isto é, a coisa que é a origem ou o princípio das outras ou de que as outras derivam, ou seja, derivam racionalmente, de tal modo que constituem, junto com ela, o sistema total da razão. Aqui, o sentido atribuído à causalidade é o de racionalidade pura e o sentido atribuído à racionalidade é o de dedutibilidade necessária. A relação causal é uma relação de dedução. Da causa deve-se poder deduzir o efeito, e se deduz efetivamente.
Mais ou menos no mesmo período, os cientistas elaboravam, com base na explicação mecânica do mundo, um conceito de causalidade análogo ao de Hegel, isto é, coincidente com ele na sua natureza de relação de dedutibilidade. O astrônomo Laplace assim exprimia o ideal da explicação causal na sua Teoria analítica das probabilidades, de 1812. “Nós devemos considerar o estado presente do universo como efeito do seu estado anterior e como causa do que se seguirá. Uma inteligência que, em dado instante, conhecesse todas as forças de que a natureza é animada e a situação respectiva dos seres que a compõem, se fosse bastante vasta para submeter esses dados ao cálculo, abarcaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do átimo mais leve: nada seria incerto para ela e o futuro, assim como o passado, estaria diante de seus olhos”. Tais palavras permaneceram como a insígnia da ciência do século XIX e exprimem claramente o estreito nexo que a interpretação racionalista da causalidade estabeleceu, a partir de Descartes, entre a causalidade e a previsão infalível, e entre a previsão infalível e a dedução apriori. Elas exprimem, de fato, um ideal de saber que possa prever qualquer acontecimento futuro, seja ele pequeno ou grande, deduzindo-o por meio de leis imutáveis e necessárias. Alguns decênios mais tarde, Claude Bernard, em sua Introdução ao estudo da medicina experimental (1865), obedecendo ao mesmo ideal, excluía a possibilidade de que a ciência, mesmo na sua exigência radical de crítica, viesse a duvidar do princípio causal, por ele chamado de princípio do determinismo absoluto. “O princípio absoluto das ciências experimentais”, dizia (Introduction, I, 2, 7), “é um determinismo necessário e consciente nas condições dos fenômenos. Se ocorre um fenômeno natural, seja ele qual for, um experimentador nunca poderá admitir que haja uma variação na expressão desse fenômeno, sem que, ao mesmo tempo, tenham sobrevin-do condições novas em sua manifestação: além disso, ele tem a certeza a priori de que essas variações são determinadas por relações rigorosas e matemáticas. A experiência mostra-nos somente a forma dos fenômenos, mas a relação de um efeito com uma causa determinada é necessária e independente da experiência, e forçosamente matemática e absoluta”. Mas. apesar dessas afirmações tão decididas de um dos maiores cientistas e metodologistas da ciência do séc. XIX, a própria ciência seguiu outro curso, no que se refere à elaboração e ao uso da noção de causalidade. Os progressos do cálculo das probabilidades, de algumas teorias físicas (especialmente a teoria cinética dos gases), e da mecânica quântica foram destinando um espaço cada vez maior à noção de probabilidade; finalmente, a mecânica quântica tende a substituir a noção de causalidade, que parecia indispensável aos cientistas e metodologistas do século passado, pela de probabilidade. Pode-se dizer que a última manifestação filosófica da teoria clássica da causalidade é a doutrina de Nicolai Hartmann, que, embora considerando a realidade dividida em planos estratificados, cada um dos quais obedece a um seu determinismo próprio, modela cada tipo ou forma de determinismo sobre a causalidade necessária da física oitocentista, entendida, na sua forma mais rigorosa, como negação de qualquer possibilidade ou liberdade (Möglichkeit und Wirklichkeit, 1938).
2) A segunda forma que a noção de causalidade assumiu na história é a que a reduz substancialmente à relação de previsibilidade certa. As críticas que, de raro em raro, a noção de causalidade encontrou na filosofia antiga tendem a reduzir essa noção à de sucessão ou de conexão cronológica constante, base de previsibilidade dos eventos. Assim, o filósofo árabe Al Gazali (séc. XI), no intuito de reservar o poder causal só para Deus, negando-o nas coisas, observou que o vínculo verificável entre as coisas é certo nexo temporal e que, p. ex., dizemos que a combustão é causada pelo fogo unicamente porque ocorre junto com o fogo (Averróis, Destructio destructionum, I, dúv. 3). Com outro intuito, Ockham, no séc. XIV, antecipava a crítica de Hume afirmando que o conhecimento de uma coisa nào traz consigo, a nenhum título, o conhecimento de uma coisa diferente, de tal modo que “uma proposição como ‘o calor esquenta’ de forma alguma pode ser demonstrada por silogismo, mas o seu conhecimento só pode ser obtido por experiência, pois se não se experimentar que, em presença de calor, segue-se o calor em uma outra coisa, não se pode saber que calor produz calor mais do que se sabe que brancura produz brancura” (Summa log., III, 2, 38). Aqui se antecipa claramente o ponto fundamental da crítica de Hume, isto é, a não-dedutibilidade do efeito a partir da causa. Hume começa negando justamente que entre causa e efeito haja tal relação.
“Nós nos iludimos”, diz Hume, “crendo que, se fôssemos trazidos de repente a este mundo, poderíamos imediatamente deduzir que uma bola de bilhar pode comunicar movimento a uma outra”. Mas na realidade, mesmo supondo que nasça em mim, por acaso, o pensamento de que o movimento da segunda bola é resultado do choque entre as duas, eu poderia conceber a possibilidade de outros mil acontecimentos diferentes, como p. ex. que ambas as bolas permanecessem paradas ou que a primeira voltasse para trás em linha reta ou escapasse por um dos lados, em uma direção qualquer. Todas essas suposições são coerentes e concebíveis; e aquela que a experiência demonstra ser verdadeira não é mais coerente nem concebível do que as outras. A conclusão é: “todos os nossos raciocínios apriori não poderão demonstrar nenhum direito a essa preferência”; e “seria inútil tentar predizer qualquer acontecimento, ou inferir alguma causa ou efeito, sem o auxílio da observação e da experiência” (Inq. Conc. Underst., IV, 1). A observação e a experiência, porém, com a repetição de certos acontecimentos similares, isto é, com as uniformidades que revelam, dão origem ao hábito de crer que tais uniformidades se verificarão também no futuro e que, portanto, possibilitam a previsão sobre a qual se baseia a vida cotidiana. Mas essa previsão, segundo Hume, não é justificada por nada. Mesmo depois da experiência vivida, a conexão entre causa e efeito continua arbitrária (já que causa e efeito continuam sendo dois acontecimentos distintos), de tal modo que continua sendo arbitrária a previsão baseada nesse nexo. “O pão que eu comia antes me alimentava; isto é, um corpo com certas qualidades sensíveis era dotado de forças secretas naquele tempo; mas então será lícito concluir que um outro pão deve nutrir-me também em outro tempo e que qualidades sensíveis semelhantes devam ser sempre acompanhadas por idênticas forças secretas? A consequência não parece absolutamente necessária” (Ibid., IV, 2). A conclusão de Hume é que a relação causal é injustificável e que a crença nela só pode ser explicada pelo instinto, isto é, pela necessidade de viver que a requer. Essa análise de Hume propôs o problema da causalidade na forma que este mantém ainda na filosofia contemporânea. O critério usado por Hume, para demonstrar a insuficiência da teoria clássica, é o da previsibilidade. A relação causal deve tornar previsível o efeito, mas nenhuma dedução a priori pode tornar previsível um efeito qualquer; por isso, a dedução é incapaz de fundamentar a relação causal. A repetição, empiricamente observável, de conexão entre dois eventos é, então, o único fundamento para afirmar uma relação causal, e o modo como ela possibilita essa asserção é o problema que hoje está na base de todas as noções de causalidade, condicionamento, indução, probabilidade, etc. Kant acreditou ter respondido à dúvida de Hume sobre o valor da causalidade transformando-a numa categoria, isto é, num conceito apriori do intelecto, aplicável a um conteúdo empírico e determinante da conexão e da ordenação objetiva desse conteúdo. Mas, na verdade, essa solução só podia postular, em forma de conceito apriorie, portanto, de “princípio puro do intelecto” (a segunda analogia da experiência), a solução do problema proposto por Hume sem abolir sua dificuldade. Quando Kant diz que a natureza nunca poderá desmentir o princípio de causa porque, para ser natureza, deve ser pensada como natureza e a causalidade é uma condição do pensamento (Crít. R. Pura, § 26; Prol, § 36), não faz senão dizer que a natureza, para ser natureza, deve ser organizada pelas relações causais, isto é, apenas dá uma definição de natureza que já inclui essa relação. Portanto, a solução kantiana, embora obviamente sugerida pela exigência de salvar ou garantir a validade da ciência newtoniana fundada na noção de causa, tem caráter de solução verbal e de dogmatismo camuflado. Para enfraquecer esse dogmatismo, porém, contribuíram no séc. XIX, o reconhecimento do caráter antropomórfico do conceito de causa e, a partir do final do séc. XIX, as limitações crescentes que o uso desse conceito foi encontrando no pensamento científico. Quanto ao primeiro ponto, limitar-nos-emos a citar a opinião de Nietzsche, para quem a noção de causa não é senão a transcrição simbólica da vontade de potência, isto é, do sentimento interno de força ou de expressão jubilosa. “Fisiologicamente”, diz Nietzsche, “a ideia de causa é o nosso sentimento de potência, naquilo que se chama vontade; e a ideia de efeito é o preconceito de crer que o sentimento de potência seja a própria potência motora. A condição que acompanha um evento e que já é um efeito desse evento é projetada como ‘razão suficiente’ deste”. Na realidade, para Nietzsche toda a concepção mecânica do mundo não passa de linguagem simbólica para exprimir “a luta e a vitória de certas quantidades de vontade” (Wille zur Macht, ed. 1901, § 296). Essa conexão da noção de causalidade enquanto força produtiva com a experiência interna do homem, ou seja, essa transcrição ou concep-tualização antropomórfica, foi sustentada no séc. XIX por numerosos filósofos, conquanto criticada e rejeitada por Hume (Inq. Conc. Underst., VII, 1). Por isso, procurou-se “purificar” a noção de causalidade de suas referências antropo-mórficas e a tentativa mais importante nesse sentido foi feita por Comte. Ele achava que a própria ideia de causa como força produtiva ou agente era própria de um estado ultrapassado da ciência, isto é, do estado metafísico, e considerava própria do estado positivo a noção de causa como “relação invariável de sucessão e semelhança entre os fatos”. Segundo Comte, essa noção bastava para tornar possível a tarefa essencial da ciência, que é a de prever os fenômenos para poder utilizá-los: a relação constante, uma vez reconhecida e formulada em uma lei, possibilita prever um fenômeno quando se verifica aquele ao qual ele está ligado; e a previsão, por sua vez, possibilita agir sobre os próprios fenômenos (Cours de phil. positive, I, cap. I, § 2). Esse conceito da previsão como tarefa fundamental da ciência, que Comte hauria em Bacon, mas que, a partir dele prevaleceu na especificação moderna, deveria predominar como critério de validade e eficácia da ciência, portanto, do alcance e do significado do princípio de causalidade. E as noções de causalidade e de previsão foram unidas por Comte e assim permaneceram depois dela. Mach, que parte dessa conjunção entre as duas noções, quer substituir o conceito tradicional de causalidade pelo conceito matemático de função, isto é, de “interdependência dos fenômenos ou, mais exatamente, interdependência dos caracteres distintivos dos fenômenos” (Analyse der Empfindungen, 9a ed., 1922, p. 74). Todavia, nem Comte nem Mach põem em dúvida o caráter necessitante da causalidade e o determinismo rigoroso que ela comporta no mundo dos fenômenos naturais. Logo, não põem em dúvida a previsibilidade certa e infalível dos fatos naturais cujas relações causais são conhecidas. Foi só a ciência contemporânea que pôs em dúvida essas duas coisas, provocando, assim, a crise definitiva da noção de causalidade.
Na segunda metade do séc. XIX, a formulação matemática da teoria cinética dos gases, devida a Maxwell e a Boltzmann, serviu para interpretar estaticamente o segundo princípio da termodinâmica, segundo o qual o calor passa somente de um corpo de temperatura mais alta para outro corpo de temperatura mais baixa. A teoria cinética interpretava esse fato como um caso de probabilidade estatística; pela primeira vez, a noção de probabilidade, que até então ficara limitada ao domínio da matemática, era utilizada no domínio da física. Todavia a teoria cinética dos gases não representava ainda uma infração ao princípio de causalidade, predominante em todo o restante da física. Foi só com o progresso da física subatômica e com a descoberta, devida a Heisenberg, do princípio de indeterminação (1927), que o princípio de causalidade sofreu um golpe decisivo. A impossibilidade, estabelecida por esse princípio, de medir com precisão uma grandeza, sem prejuízo da precisão na medida de uma outra grandeza coligada, torna impossível predizer com certeza o comportamento futuro de uma partícula subatômica e só autoriza previsões prováveis do comportamento de tais partículas, com base em verificações estatísticas. Em consequência disso, a física tende hoje a considerar as mesmas relações de previsibilidade no campo dos objetos macroscópicos, que deram origem ao princípio de causalidade, como casos particulares de previsões prováveis. Heisenberg escrevia em 1930: “Nossa descrição habitual da natureza e, particularmente, o pensamento de uma causalidade rigorosa nos eventos da natureza repousam na admissão de que é possível observar o fenômeno sem influenciá-lo de modo sensível… Na física atômica, porém, toda observação geralmente está ligada a uma perturbação finita e, até certo ponto, incontrolável, o que era de esperar desde o princípio na física das menores unidades existentes. Como, por outro lado, toda descrição espácio-temporal de um evento físico está ligada a uma observação do evento, segue-se que a descrição espácio-temporal de eventos, por um lado, e a lei causal clássica, por outro, representam dois aspectos complementares, mutuamente excludentes, dos acontecimentos físicos” (Die physikalischen Prinzipien der Quantumtheorie, IV, § 3). Em 1932, Von Neumann assim resumira a questão: “Em física macroscópica, não há nenhuma experiência que prove o princípio de causalidade, porque a ordem causal aparente do mundo macroscópico não tem outra origem senão a lei dos grandes números e isto de modo totalmente independente do fato de os processos elementares (que são os verdadeiros processos físicos) seguirem ou não leis de causalidade … É só em escala atômica, nos processos elementares, que a questão da causalidade pode realmente ser discutida; mas, nessa escala, no estado atual de nossos conhecimentos, tudo está contra ela, porque a única teoria formal que se ajusta mais ou menos à experiência é a mecânica quântica, e esta está em pleno conflito lógico com a causalidade … Não há hoje nenhuma razão que permita afirmar a existência da causalidade na natureza e nenhuma experiência pode dar-nos a prova dela” (Les fondements mathematiques dela mécanique quantique, trad. fr., 1947, pp. 143 ss., 223-224, etc). Alguns anos mais tarde, Reinchenbach (Theory of Probability, 1949, p. 10) afirmou: “O desenvolvimento histórico da física leva ao resultado de que o conceito de probabilidade é fundamental em todas as asserções sobre a realidade e que, a rigor, não é possível uma única asserção sobre a realidade, cuja validade possa ser afirmada com algo mais do que probabilidade”. Esses progressos da ciência tornaram as inúteis discussões dos filósofos sobre o fundamento, o alcance e os limites do princípio de causa. Esse princípio não é mais usado, nem na sua forma clássica nem na sua forma moderna: o conceito do saber ou da ciência como “conhecimento das causas” entrou em crise e foi praticamente abandonado pela própria ciência. Vai-se formando uma nova terminologia, na qual os termos condição e condicionamento, definíveis por meio dos procedimentos em uso nas várias disciplinas científicas, tomam o lugar do venerando e agora inservível conceito de causa. [Abbagnano]