Cassirer: A CRISE NO CONHECIMENTO DO HOMEM SOBRE SI MESMO (3)

O que aprendemos com o exemplo de Pascal é que, no princípio dos tempos modernos, ainda se sentia em toda a sua força o velho problema. Até depois do aparecimento do Discours de la méthode de Descartes, o espírito moderno ainda lutava com as mesmas dificuldades. Achava-se dividido entre duas soluções inteiramente incompatíveis. Mas, ao mesmo tempo, começa um lento desenvolvimento intelectual, através do qual a pergunta: Que é o homem? se transforma e, por assim dizer, se eleva a um nível superior. Neste ponto, o importante não é tanto o descobrimento de fatos novos quanto o descobrimento de um novo instrumento do pensamento. Agora, pela primeira vez, o espírito científico, no sentido moderno da palavra, entra em cena. Procura-se uma teoria geral do homem baseada em observações empíricas e em princípios lógicos gerais. O primeiro postulado desse espírito novo e científico foi a eliminação de todas as barreiras artificiais que, até então, haviam separado o mundo humano do resto da natureza. Para compreender a ordem das coisas humanas precisamos começar com um estudo da ordem cósmica. E esta ordem cósmica surge agora a uma luz inteiramente nova. A nova cosmologia, o sistema heliocêntrico introduzido na obra de Copérnico, é a única base sólida e científica para uma nova antropologia.

Nem a metafísica clássica nem a religião e a teologia medievais estavam preparadas para esta tarefa. Ambos corpos de doutrina, embora diferentes nos métodos e propósitos, fundam-se num princípio comum. Ambos concebem o universo como uma ordem hierárquica, em que o homem ocupa o supremo lugar. Na filosofia estóica e na teologia cristã descrevia-se o homem como o fim do universo. As duas doutrinas estavam convencidas de que existe uma providência geral, que governa o mundo e o destino do homem. Este conceito é uma das pressuposições básicas do pensamento estóico e cristão (sobre o conceito estóico de providênciapronoia -, veja, por exemplo, Marco Aurélio, op. cit., Livro II, par. 3). Tudo isto é repentinamente posto em dúvida pela nova cosmologia. A pretensão do homem de ser o centro do universo perdeu sua razão de ser. O homem está colocado num espaço infinito em que seu ser parece resumir-se num ponto de fuga isolado. Está cercado de um universo mudo, de um mundo hermético para seus sentimentos religiosos e para suas mais profundas necessidades morais.

É compreensível, e até necessária, que a primeira reação à nova concepção do mundo fosse apenas negativa — uma reação de dúvida e temor. Nem mesmo os maiores pensadores puderam libertar-se deste sentimento. “Le silence éternel de ces espaces infinis m’effraye”, diz Pascal (Pascal, op. cit., cap. XXV, seç. 18). O sistema copernicano tornou-se um dos mais vigorosos instrumentos do agnos-ticismo e ceticismo filosóficos que se desenvolveram no século XVI. Em sua crítica da razão humana, Montaigne emprega os conhecidos e tradicionais argumentos dos sistemas de ceticismo grego. Acrescenta-lhes, porém, uma nova arma, que, em suas mãos, se revela poderosíssima e de suma importância. Nada melhor para nos humilhar e quebrar o orgulho da razão humana que uma visão sem preconceitos do universo físico. Que o homem, diz ele num trecho famoso de sua Apologie de Raimond Sebond, me faça compreender, pela força da sua razão, sobre que alicerces construiu as grandes vantagens que julga ter sobre as outras criaturas. Quem o fez acreditar que esse admirável movimento da abóbada celeste, a luz eterna das luminárias que giram tão alto sobre sua cabeça, os maravilhosos e terríveis movimentos do oceano infinito foram estabelecidos e continuam há tantos séculos para seu serviço e conveniência? Pode-se imaginar alguma coisa mais ridícula do que esta miserável e desgraçada criatura, que nem sequer é dona de si mesma, exposta às injúrias de todas as coisas, intitular-se senhora e imperatriz do mundo, do qual não tem o poder de conhecer a menor parte, quanto mais de governar o todo? (Montaigne, Essais, II, cap. XII. Tradução inglesa de William Hazlitt, The Works of Michael de Montaigne, 2a edição, Londres, 1845, p. 205)

O homem está sempre propenso a considerar o pequeno horizonte que o cerca como o centro do mundo e a fazer, de sua vida particular e privada, o modelo do universo, mas precisa renunciar a esta vã pretensão, a esta mesquinha e provinciana maneira de pensar e de julgar.

Quando as vinhas da nossa aldeia são destruídas pela geada, o vigário da paróquia logo conclui que a indignação de Deus se voltou contra toda a raça humana… E quem, ao ver nossas guerras civis, não brada que a máquina do mundo inteiro está desandando e que o dia do juízo final está próximo!… Mas quem figurar em sua imaginação, como num quadro, a grandiosa imagem de nossa mãe natureza, em toda sua majestade e esplendor; quem souber reconhecer em sua face uma variedade tão geral e constante, e que se veja a si mesmo, e não só a si mesmo mas a um reino inteiro, menor que um ponto de lápis, em comparação com o todo, será capaz de avaliar as coisas de acordo com seu verdadeiro valor e grandeza. (Idem, I, cap. XXV. Tradução inglesa, pp. 65 e seguintes)

Estas palavras de Montaigne nos fornecem a pista de todo o desenvolvimento subsequente da teoria moderna do homem. A filosofia moderna e a ciência moderna precisavam aceitar o desafio contido nessas palavras. Precisavam provar que, longe de enfraquecer ou dificultar o poder da razão humana, a nova cosmologia o estabelece e confirma. Tal foi a tarefa, combinando esforços, dos sistemas metafísicos dos séculos XVI e XVII, que seguem caminhos diferentes, mas todos se dirigem para a mesma meta. Esforçam-se, por assim dizer, para transformar em bênção a aparente maldição da nova cosmologia. Giordano Bruno foi o primeiro pensador a pisar nesse caminho, que, em certo sentido, veio a ser o de toda a metafísica moderna. O que caracteriza sua filosofia é que nela o termo “infinito” muda de sentido. No pensamento clássico grego o infinito é um conceito negativo, é o que não tem limites ou o indeterminado. Sem limites nem forma, é, portanto, inacessível à razão humana, que vive no domínio das formas e nada mais compreende senão formas. Nesse sentido, o finito e o infinito, peras e apeiron, são, segundo declara Platão no Filebo, os dois princípios fundamentais que se opõem necessariamente. Na doutrina de Bruno o infinitonão significa uma simples negação ou limitação. Pelo contrário, significa a incomensurável e inexaurível abundância de realidade e o poder ilimitado do intelecto humano. É neste sentido que Bruno compreende e interpreta a doutrina de Copérnico. A seu ver, foi esta doutrina o primeiro passo decisivo no sentido da auto-libertação do homem. O homemnão vive no mundo como prisioneiro encerrado dentro das estreitas muralhas de um universo físico finito. Pode atravessar os ares, rompendo todas as fronteiras imaginárias das esferas celestes, erguidas por uma metafísica e uma cosmologia falsas (sobre maiores detalhes veja Cassirer, Individuum und Kosmos in der Philosophie der Renaissance, Lipsia, 1927, pp. 197 e seguintes). O universo infinito não impõe limites à razão humana; ao contrário, é o seu grande incentivo. O intelecto humano toma consciência da própria infinidade medindo seus poderes pelo universo infinito.

Tudo isto está expresso na obra de Bruno poeticamente, não em linguagem científica. Ainda desconhecia o novo mundo da ciência moderna, a teoria matemática da natureza, não lhe sendo possível, portanto, prosseguir no caminho até sua conclusão lógica. Foram necessários os esforços combinados de todos os metafísicos e cientistas do século XVII para superar a crise intelectual provocada pelo descobrimento do sistema coperniciano. Todo grande pensador — Galileu, Descartes, Leibniz, Espinosa — teve sua participação especial na solução do problema. Afirma Galileu que, no campo da matemática, o homem atinge o ponto culminante de todo o conhecimento possívelum conhecimento não inferior ao do intelecto divino. Claro está que o intelecto divino conhece e concebe um número infinitamente maior de verdades matemáticas do que nós, mas, no tocante à certeza objetiva, as poucas verdades conhecidas pela mente humana são conhecidas tão perfeitamente pelo homem quanto por Deus (Galileu, Dialogo dei due massimi sistemi dei mondo, I, Edizione nazionale, VII, 129). Descartes principia com sua dúvida universal, que parece encerrar o homem nos limites da própria consciência. Parece não haver meios de sair deste círculo mágico nem possibilidade de aproximação da realidade. Neste ponto, a ideia do infinito se revela o único instrumento para desfazer a dúvida universal. Só por meio deste conceito podemos demonstrar a realidade de Deus e, de maneira indireta, a realidade do mundo material. Leibniz combina esta prova metafísica com uma nova prova científica. Descobre um novo instrumento do pensamento matemático — o cálculo infinitesimal, cujas regras tornam inteligível o universo físico; e que as leis da natureza são apenas casos especiais das leis gerais da razão. É Espinosa quem se aventura a dar o último passo decisivo nesta teoria matemática do mundo e do espírito humano. Constrói uma nova ética, uma teoria das paixões e afeições, uma teoria matemática do mundo moral. Está convencido de que só por meio desta teoria podemos atingir nossa finalidade: o objetivo de uma “filosofia do homem”, de uma filosofia antropológica, liberta dos erros e preconceitos de um sistema meramente antropocêntrico. Tal é o tópico, o tema geral, que, em suas várias formas, impregna todos os grandes sistemas metafísicos do século XVII. É a solução racionalista do problema do homem. A razão matemática representa o elo entre o homem e o universo; permite-nos passar livremente de um para o outro. A razão matemática é a chave da verdadeira compreensão da ordem cósmica e da ordem moral.

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