A ciência também é uma expressão articulada de conhecimento do ser. Em oposição ao conhecer ordinário e mítico, cuja articulação intelectiva morre como que submersa no próprio real que intende elucidar, o conhecimento científico se caracteriza por distanciar-se da convivência do ser, por apreendê-lo numa clara representação objetiva. Ao fazer ciência, a mente como que se afasta da realidade. Submete o ser à lei do objeto. O cientista como que se descola do ser vivido, des-solidariza-se, elabora conceitos e teorias onde procura mostrar como aspectos isolados e objetivados da realidade se relacionam entre si. O objeto da ciência é o que do ser pode ser representado. O representado da ciência está em oposição fecunda com a realidade.
As ciências se constituem a partir do desvelamento do ser. Elas são o diálogo da mente com a realidade. Mas um diálogo sui generis, onde a mente estabelece as normas, as leis, o conteúdo, o começo e o fim: ela colhe e diz a realidade numa representação por ela instituída.
A ciência é então uma apresentação da realidade. Mas uma apresentação típica, diferente do mito e do conhecimento ordinário. É uma apresentação da realidade à inteligência feita mediante sistemas elaborados e propostos pela própria inteligência.
Para compreender o que seja «conhecimento científico» é preciso aclarar o espaço onde ele se efetua. Não todo conhecimento é científico. Quando um conhecimento se torna científico ou se faz ciência? O conhecimento se constitui em ciência desde o momento em que possa indicar claramente seu objeto e em segundo lugar desde que possa falar claramente sobre ele.
O objeto do conhecimento científico não é o ser, é a representação do ser. Sempre que o ser é objetivado, representado claramente, ele pode constituir objeto de uma determinada ciência. Há tantas ciências quantos forem os objetos, isto é, quantas forem as representações possíveis.
A unidade de cada ciência baseia-se na unidade de seu objeto, isto é, na representação unidimensional do real. P. ex., a física abarca a diversidade das coisas naturais na representação unidimensional do movimento. É a mecânica do movimento.
Os objetos da ciência quais são? São os entes concretos, que estão aí, que se revelam ao homem. O homem pode descobri-los mediante a sensibilidade que nos dá os objetos da empiria, ou mediante a imaginação criadora que nos dá os objetos da matemática. Por conseguinte o «ente» concreto colhido pela ciência é o desvelado do ser visualizado no modelo da representação. A ciência evoca o ser no extravio da representação.
Todas as ciências que desvelam os entes são ciências ônticas. São ônticas porque visam o ente dado, oferecido, colocado diante da inteligência. São também chamadas de ciências positivas, porque tratam dos entes postos, tornados positivos pela inteligência objetivante. Todas as ciências são ônticas ou positivas. Tratam de entes colhidos na rede da representação. As ciências só tratam daqueles entes que se posicionaram nas malhas da representação.
As ciências nem sempre existiram. Elas são histórias, isto é, são obra do homem, são criação do espírito humano. As razões de seu aparecimento parece que radicam na estrutura «objetivante» da inteligência e na «vontade-de-poder» do homem.
A inteligência ocidental, talvez por obra de seu mestre-educador, o grego, se esmerou sobretudo na capacidade de representar clara e distintamente o objeto que pretende conhecer. Lá onde o ser se subtrai a uma clara representação objetiva é impossível ter dele um conhecimento científico. É o caso da filosofia e da teologia. Alguns lhes negam, e com razão, o caráter científico (se tomarmos o conceito moderno de ciência), porque não é possível ter uma representação clara do ser (filosofia) nem do Ente-Supremo (teologia). É também o caso das chamadas ciências humanas, como a psicologia, a história, a política, a sociologia, onde nem todos os conceitos que elas usam são passíveis de clara representação, porque designam fenômenos imponderáveis, constituídos no tempo e no espaço pela ação humana, sempre criadora, embora atue no estatuto de um contexto determinado. Tais ciências se constituem em problema para a inteligência científico-objetivante.
A inteligência objetivante é suportada, ou melhor, é propulsada por uma energia alheia à própria inteligência. Esta energia é a vontade-de-poder. A vontade-de-poder, de domínio, de posse e dominação da realidade, é a força que impulsiona a inteligência objetivante. Por isso se diz que a ciência é práxis, não é contemplativa, mas prática. Seu complemento natural é a técnica, que é a vontade-de-poder-efetuada.
O cientista, embora seja considerado cientista na medida em que adquire o hábito do pensar-científico, é a expressão mais acabada da vontade-de-poder. É a vontade-de-poder que o leva a aprimorar sua inteligência, a educá-la ao hábito do pensar-científico. A ciência é por conseguinte a mais refinada manifestação da ânsia de dominação da realidade tematizada pelo homem. A ciência, antes da técnica, violenta a realidade, forçando-a a dialogar com o homem nos esquemas formais por ele propostos.
A ciência é um modo de compreensão da totalidade da realidade: é força unidimensional, reduz a seu modelo todos os outros modelos culturais. Não suporta a diferença. Reduz tudo a um plano, a um horizonte. O que não se deixa ver nesse horizonte não é considerado, simplesmente não existe! Deve-se, porém, notar que quando a ciência declara o que «existe» ou o que «não-existe», declara-o a partir do modelo, que é o pré-concebido para declarar o real. O «existe» e o «não-existe» da ciência são assim sempre «pre-conceitos».
Diz-se que a ciência vive do «gênio laplaciano», i. é, do impulso que atua no segmentário com possibilidade de explicação total. O cientista sempre parte de um ponto de vista, de um pressuposto. A partir dele constrói uma visão totalitária do real. Por isso a ciência é sempre totalitária. É totalitária num duplo sentido: na maneira de ver e na maneira de operar a realidade. Essa maneira de ver e operar é instaurada pelo sujeito. Daí ser a ciência, em sua objetividade, a expressão máxima da subjetividade humana, que vivendo no estranho da realidade se sente «perdida» na incerteza do comportamento desse estranho. Busca então libertar-se da angústia da incerteza, entregando-se à atividade científica.
A ciência é assim o mais grandioso projeto humano de auto-asseguramento de que a história nos dá notícia. No passado antigo e remoto, o homem também se defrontou com o problema da auto-segurança existencial. Deu-lhe solução diversa da moderna: criou modelos de compreensão mítica e religiosa da realidade. Sua segurança existencial era confiada ao transcendente. No modelo de compreensão científica da realidade, a segurança existencial é confiada à subjetividade humana sem transcendência. A modernidade rompe com a transcendência e coloca o homem no imediato de sua subjetividade como senhor de seu Destino. A ciência, instaurada para compreender o estranho da vida e cultivada como caminho para o reino da segurança e da paz, parece que está conduzindo o homem para um mundo sempre mais estranho e incerto.
No interior daquilo que chamamos de ciência há diversos grupos e subgrupos de disciplinas. Os três agrupamentos mais importantes são as ciências formais, as ciências empírico-formais, e as ciências hermenêuticas.
A ciência é, pois, um diálogo com a realidade, instituído pelo homem. Um diálogo que convoca o real a vir à presença do espírito em modelos funcionais ou operativos. No modelo, a realidade aparece como «científica». Antes de entrar na malha do modelo, era a-científica. No instante em que se torna científica, ela perde sua «identidade». A «realidade científica» apenas evoca a realidade. «Evocar» na ciência a identidade ou a verdade da realidade é o dilema do homem-de-hoje, o dilema da civilização técnico-científica. Humanizar-se-hoje significa conduzir a realidade, e o homem em primeiro lugar, a sua verdade na via da cientificidade. O problema da modernidade está em não negar ao homem a viagem da cientificidade, mas aviá-lo a seu destino no extravio ou na odisseia da ciência.