Buzzi (IP:31-32) – o mito

O MITO, embora na linguagem comum o termo seja usado como sinônimo de crença dotada de validade mínima e de pouca verossimilhança, não deve ser visto como produto de uma atividade secundária e subordinada do intelecto. Porque o saber lógico-científico não consegue controlar a linguagem mítica, considera-a como ilógica. O ilógico é um termo criado pelo poder lógico para dominar o que não pode. Por conseguinte, quando a ciência coloca a linguagem mítica no reino da incoerência lógica, ela confessa o limite de sua compreensão e proclama, no espaço de seu saber, um outro desconhecido ao modelo lógico de compreensão. O alcance do mito nunca é percebido com nitidez.

«O mito não encontra, de maneira nenhuma, adequada objetivação no discurso» (Nietzsche, F., Origem da Tragédia, p. 128).

O conhecimento expresso em mitos traduz uma intelecção do ser de validade originária e primária, que se coloca num plano diferente da lógica racional, mas dotada de igual dignidade.

«A coerência do mito provém muito mais de uma unidade de sentimento do que de regras lógicas. Esta unidade é um dos impulsos mais fortes e mais profundos do pensamento primitivo» (E. Cassirer, Essay on Man, cap. 7).

Mito é uma profunda intuição compreensiva da realidade, vazada numa linguagem fantasiosa. As intuições míticas são de valor perene, porque exprimem os mais recônditos níveis de estruturação do psiquismo humano, inacessível à atividade do consciente lógico. O mito se constitui a partir do dinamismo-psíquico infra-estrutural.

O pensamento de Platão, nos seus voos mais sublimes, termina sempre afogado no mito. Freud e Jung, os corifeus da Psicanálise, exprimem seu saber numa linguagem simbólica, impregnada de mitos. A ciência nos seus avanços mais ousados termina sempre numa fantaciência (science fiction) mítica. Os mitos de Dionísio, de Prometeu, o mito do paraíso perdido, o mito da árvore da vida, o mito do desenvolvimento traduzem, numa intelecção própria e autônoma, a problemática existencial humana, sentida e vivida por todo homem.

Pela sua intuição e linguagem, o mito é algo de muito vivo, prenhe de significação existencial. Cada época possui seus mitos. Neles a sociedade consubstancia as respostas aos problemas fundamentais da vida. A «sociedade desenvolvida», a «hegemonia do proletariado», como fim de todas as alienações, a «liberdade burguesa» como dignidade do homem, a «pátria», são mitos do homem de hoje. A função social dos mitos foi amplamente estudada por Malinowski. O mito, segundo esse autor, é uma interpretação que possibilita a sociedade viver os fatos numa unidade e coesão superior. O mito é assim força que faz a história.

O melhor caminho para chegar à interpretação do mito não é o exame lógico de sua linguagem, mas a experiência em profundidade da existência. O mito é uma legenda, uma saga da história. Para interpretar essa legenda é preciso descer à dinâmica da história, vivê-la, participar intensamente do destino humano.

Mito é a linguagem na qual o homem está em permanente diálogo com a realidade. O homem está sempre na linguagem da realidade, antes mesmo de instituir qualquer representação, qualquer expressão denotativa que traduza em palavras e conceitos esse seu modo de ser. Portanto, o mito é a própria existência, o concreto real na sua visibilidade máxima. Diz-se, p. ex., a ciência é mito, a flor é mito, o homem é mito. Isto significa que o que está aí, a ciência, o homem, a flor, são percebidos como revelando e ocultando o que eles são.

O mito está, por isso, intimamente ligado ao mistério, pois, quando o homem percebe o mito de tudo quanto é, ele está na experiência do mistério. Mistério é a presença inominável que se apresenta no particular-aí-imediato. É o estranho no familiar. Em alemão mistério é Ge-heimnis. Ge significa recolhido, guardado, preservado. Heimnis significa casa, lar. Mito é a experiência que nos faz ver que tudo o-que-está-aí vive recolhido e preservado na cripta secreta do ser.

O mito proferido é mitologia. Esta denomina também a realidade na inteligibilidade da representação que o sujeito (indivíduo ou sociedade) se faz. A representação é a linguagem denotativa dos agentes. Estes dizem a vida, os problemas e conflitos da comunidade, em expressões mitológicas. Essas expressões são apenas mediações que lhes possibilitam viver o mito da existência, i. é, a vida na ambiguidade de seu dar-se e recusar-se, de seu revelar-se e velar-se.

Abellio, Raymond (29) Antiguidade (26) Aristotelismo (28) Barbuy, Heraldo (45) Berdyaev, N A (29) Bioética (65) Bréhier – Plotin (395) Coomaraswamy, Ananda (473) Enéada III, 2 (47) (22) Enéada III, 6 (26) (21) Enéada IV, 3 (27) (33) Enéada IV, 4 (28) (47) Enéada VI, 1 (42) (32) Enéada VI, 2 (43) (24) Enéada VI, 3 (44) (29) Enéada VI, 7 (38) (43) Enéada VI, 8 (39) (25) Espinosa, Baruch (37) Evola, Julius (108) Faivre, Antoine (24) Fernandes, Sergio L de C (77) Ferreira da Silva, Vicente (21) Ferreira dos Santos, Mario (39) Festugière, André-Jean (41) Gordon, Pierre (23) Guthrie – Plotinus (349) Guénon, René (699) Jaspers, Karl (27) Jowett – Platão (501) Kierkegaard, Søren Aabye (29) Lavelle, Louis (24) MacKenna – Plotinus (423) Mito – Mistérios – Logos (137) Modernidade (140) Mundo como Vontade e como Representação I (49) Mundo como Vontade e como Representação II (21) Míguez – Plotino (63) Noções Filosóficas (22) Ortega y Gasset, José (52) Plotino (séc. III) (22) Pré-socráticos (210) Saint-Martin, Louis-Claude de (27) Schuon, Frithjof (358) Schérer, René (23) Sophia Perennis (125)