Butler (1997:C2) – auto-identidade da vontade

Rogério Bettoni

Nietzsche oferece uma visão da consciência como atividade mental formadora de vários fenômenos psíquicos, mas que também é formada – consequência de um tipo distinto de internalização. Em Nietzsche, que distingue consciência de má consciência, consta que a vontade se volta sobre si mesma. Mas que sentido devemos dar a essa estranha locução? Como podemos imaginar uma vontade que recua e se redobra sobre si mesma? E como, mais pertinentemente, essa figura é oferecida como forma de articular o tipo de reflexividade central à operação da má consciência? Freud usa uma linguagem similar ao escrever sobre a formação da consciência, especialmente em relação à paranoia e ao narcisismo. Ele descreve a consciência como a força de um desejo – embora algumas vezes seja a força da agressão – que se volta sobre si mesmo, e ele entende a proibição não como uma lei externa ao desejo, mas como a operação do desejo na medida em que gira em torno de sua própria possibilidade. Como entendemos a figura que surge no contexto das duas explicações – a de uma vontade que se volta sobre mesma, a de um desejo que se volta sobre si mesmo? Devemos perguntar não só como essa figura de recuo e redobramento se torna central para a compreensão da má consciência, mas também o que essa figura sugere sobre a posição ou disposição corporal codificada na estrutura da reflexividade. Por que um corpo dobrado sobre si mesmo representa o que significa ser um tipo de ser consciente-de-si?

A noção de que a moral se baseia em certo tipo de violência já é familiar, mas é surpreendente que essa violência seja o fundamento do sujeito. A moral pratica essa violência repetidas vezes ao cultivar o sujeito como um ser reflexivo. Isso é, em parte, o que levou Nietzsche a pensar a moral como uma espécie de doença. Se dizemos que essa volta sobre si é uma espécie de violência, não podemos simplesmente enfrentá-lo em nome da não violência, pois quando e onde quer que a enfrentemos, partimos de uma posição que pressupõe essa própria violência. Não quero apenas ressaltar a estrutura aporética envolvida na suposição da moral, tampouco apenas afirmar que existe uma violência generalizada em todo e qualquer posicionamento moral, embora as duas constatações, fornecidas pela desconstrução, sirvam de ponto de partida para o que procuro fazer. Em vez disso, eu diria que o sujeito que se oporia à violência, até mesmo à violência contra si mesma, é o efeito de uma violência anterior sem a qual o sujeito não poderia ter surgido. É possível romper esse círculo particular? Como e quando ocorre esse rompimento? O que surge como possibilidade significativa em que o sujeito perde seu contorno fechado, a circularidade de seu próprio fechamento reflexivo? A vontade pura, ontologicamente intacta e anterior a qualquer articulação, não surge de repente como princípio de autoengrandecimento e autoafirmação que excede os limites de todos os esquemas reguladores. Em vez disso, a dimensão formativa e de fabricação da vida psíquica, que se propaga sob o nome de “vontade”, e que geralmente é associada a um campo restritivamente estético, é fundamental para reformular os grilhões normativos dos quais nenhum sujeito pode prescindir, mas que nenhum sujeito está condenado a repetir exatamente da mesma maneira.

Minha análise diz respeito a um problema persistente que surge quando tentamos pensar a possibilidade de uma vontade que se assume como seu próprio objeto e, através da formação desse tipo de reflexividade, vincula-se a si mesma, adquire sua própria identidade através da reflexividade. Até que ponto essa aparente escravidão de si é total ou exclusivamente autoimposta? Essa estranha postura da vontade, que está a serviço de uma regulação social que exige a produção do sujeito, é uma consequência ou uma expressão da má consciência? Suponho que aqueles que procuram redimir Nietzsche quando dizem que é possível recorrer a ele em nome do ético pensam que a única alternativa pior do que a má consciência é sua obliteração. Mas ressaltemos que Nietzsche não só distingue moral e ético, como também pergunta sobre o valor da moral, estabelecendo com isso um valor pelo qual avaliar a moral, mas também sugerindo que essa avaliação, essa valoração, pode não ser redutível à moral.

Eu entendo que a justaposição de Nietzsche com a questão da ética seja de fato uma questão porque Nietzsche e várias figuras da tradição continental têm sido considerados culpáveis de atos e eventos irresponsáveis por associação. Como respondemos a essas acusações? Assumindo o lado do ético, relacionando todo e cada pensador ao ético? Ou tomamos a ocasião como uma oportunidade para pensar o problema com um pouco mais de cuidado, para pôr o ético em questão mais uma vez – uma questão que não pode ser desvencilhada de sua cumplicidade com aquilo a que mais se opõe? Paradoxalmente, será este o momento de refletir sobre as dimensões mais generalizadas da cumplicidade e as implicações de uma relação tão controversa com o poder?

Eu interpreto o desejo de recolocar Nietzsche dentro do campo ético como um esforço para combater a caricatura de Nietzsche, dentro da crítica contemporânea, como alguém que só faz destruir o campo dos valores (na medida em que a destruição não é em si uma fonte de valores, ou um valor em si). Por outro lado, acredito que Nietzsche nos ofereça uma compreensão política da formação da psique e do problema da sujeição, entendida paradoxalmente não só como a subordinação do sujeito às normas, mas também como a constituição do sujeito precisamente com tal subordinação. Na verdade, na medida em que a má consciência requer uma volta contra si mesma, um corpo que se recolhe sobre si mesmo, como essa figura serve à regulação social do sujeito, e como podemos entender essa sujeição mais fundamental, sem a qual não pode surgir nenhum sujeito propriamente dito? Acredito que, embora não exista uma anulação final do vínculo reflexivo, dessa postura do si-mesmo curvado sobre si, uma desregulação apaixonada do sujeito talvez possa precipitar um tênue deslindamento desse nó constitutivo. O que surge não é a vontade irrestrita ou umalém” do poder, mas outra direção para o que há de mais formativo na paixão, um poder formativo que é ao mesmo tempo a condição de sua violência contra si, seu status como ficção necessária e o lugar de suas possibilidades facilitadoras. Em rigor, essa reformulação da “vontadenão é a vontade de um sujeito, tampouco um efeito totalmente cultivado pelas normas sociais e por meio delas; eu diria que é o lugar em que o social implica o psíquico em sua mera formação – ou, para ser mais exata, como sua própria formação e formatividade.

original

The notion that morality is predicated on a certain kind of violence is already familiar, but more surprising is that such violence founds the subject. Morality performs that violence again and again in cultivating the subject as a reflexive being. This is, in part, what led Nietzsche to reflect that morality is a kind of illness. If this turning on oneself can be called a kind of violence, it cannot simply be opposed in the name of nonviolence, for when and where it is opposed, it is opposed from a position that presupposes this very violence. I do not wish simply to underscore the aporetic structure involved in the assumption of morality, nor simply to affirm the generalized violence in any and all moral positioning, although both insights, furnished by deconstruction, form a point of departure for what I seek to do. Rather, I would suggest that the subject who would oppose violence, even violence to itself, is itself the effect of a prior violence without which the subject could not have emerged. Can that particular circle be broken? How and when does that breakage occur? And what emerges as a significant possibility in which the subject loses its closed contour, the circularity of its own reflexive closure? A pure will, ontologically intact prior to any articulation, does not suddenly emerge as a principle of self-augmentation and self-affirmation that exceeds the bounds of any and all regulatory schemas. Rather, the formative and fabricating dimension of psychic life, which travels under the name of the “will,” and which is usually associated with a restrictively aesthetic domain, proves central to refashioning the normative shackles [65] that no subject can do without, but which no subject is condemned to repeat in exactly the same way.

My inquiry concerns a persistent problem that emerges when we try to think the possibility of a will that takes itself as its own object and, through the formation of that kind of reflexivity, binds itself to itself, acquires its own identity through reflexivity. To what extent is this apparent self-bondage fully or exclusively self-imposed? Is this strange posture of the will in the service of a social regulation that requires the production of the subject a consequence or an expression of bad conscience? I suppose that those who seek to redeem Nietzsche by claiming that he can be invoked in the service of the ethical might think that the only alternative worse than bad conscience is its obliteration. But remember that Nietzsche not only distinguishes between the ethical and morality, but asks about the value of morality, thus instating a value by which morality might be assessed, but suggesting as well that this assessment, this valuation, may not be reducible to morality.

I take it that the juxtaposition of Nietzsche with the question of ethics is, indeed, a question because Nietzsche and various figures within the Continental tradition have been found guilty by association with irresponsible acts and events. What will be the response to these charges? To take the side of the ethical, to relate each and every thinker to the ethical? Or will this be an occasion to think the problem a bit more carefully, to continue to pose the ethical as a question, one which cannot be freed of its complicity with what it most strongly opposes? Will this, paradoxically, become a time in which we reflect upon the more pervasive dimensions of complicity and what might be derived from such a vexed relation to power?

I understand the desire to resituate Nietzsche within the ethical domain as an effort to counter the caricature, within [66] contemporary criticism, of Nietzsche as one who only destroys the domain of values (where that destruction is not itself a source of value, or a value in itself). I want instead to suggest that Nietzsche offers us a political insight into the formation of the psyche and the problem of subjection, understood paradoxically not merely as the subordination of a subject to a norm, but as the constitution of a subject through precisely such a subordination. Indeed, to the extent that bad conscience involves a turning against oneself, a body in recoil upon itself, how does this figure serve the social regulation of the subject, and how might we understand this more fundamental subjection, without which no proper subject emerges? I want to suggest that, although there is no final undoing of the reflexive bind, that posture of the self bent against itself, a passionate deregulation of the subject may perhaps precipitate a tenuous unraveling of that constitutive knot. What emerges is not the unshackled will or a “beyond” to power, but another direction for what is most formative in passion, a formative power which is at once the condition of its violence against itself, its status as a necessary fiction, and the site of its enabling possibilities. This recasting of the “will” is not, properly speaking, the will of a subject, nor is it an effect fully cultivated by and through social norms; it is, I would suggest, the site at which the social implicates the psychic in its very formation—or, to be more precise, as its very formation and formativity.

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