A ciência procede de um método analógico que consiste em transportar para a natureza as relações que dominam o trabalho humano. S. Weil
Sabemos por experiência que nossas ideias e nossos sentimentos só podem ser transmitidos direta e intuitivamente em circunstâncias excepcionais. Em geral somos obrigados a emprestar meios de expressão, o que já detidamente analisamos neste trabalho, e, se procurarmos reduzir esses meios simbólicos a um elemento comum, eles se resolverão numa combinação de gestos. Ora, esses meios e esses gestos podem parecer contraditórios.
De fato, é comum fazer uma oposição entre os homens artesãos que trabalham manualmente, que abraçam a matéria inerte ou viva, que a aperfeiçoam ou a transformam, e os homens que fazem da palavra a sua profissão, dirigindo os outros, e que vivem de palavras e de símbolos. Nosso estudo tende a comprovar que essa dicotomia é fictícia. Todo pensamento se confirma tão artesanal quanto a mão. Sé ela é ativa diante da passividade da matéria. E os escultores que talharam as pedras das catedrais não “pensavam” menos profundamente que os logicistas das escolástica. Trata-se de várias maneiras pelas quais um mesmo trabalho deveria ser realizado.
Pois toda expressão é superficial, ainda quando pretende revelar a essência. A mais elaborada metafísica reduz-se a uma geometria implícita que materializa o pensamento, ou melhor, que se adapta a um pensamento espacial desde a sua origem.
Mas não se deve, entretanto, confundir os meios com os fins. Quando por um processo análogo. Descartes em seu tempo reduziu o mundo a uma combinação de movimentos no espaço, e pretendeu identificar todo fenômeno com aquilo que não passava de seu símbolo, erro que em religião se chama idolatria, a expressão algébrica da realidade que ele propunha não era mais que uma notação nova e mais cômoda, tão acolhedora quanto esses albergues onde cada um só encontra aquilo que trouxe, tão pouco reveladora quanto esses perfis-robôs nos quais todo mundo consegue reconhecer o seu.
Entre a coisa e a ideia, o símbolo tece o seu simulacro como um costureiro de teatro vestiria nossas mais recentes ideias com os espólios usados por gerações de palhaços, reformados conforme as exigências das personagens que sucessivamente encarnaram, A realidade que se esconde sob esse travesti é inexprimível. Entre o nominalismo empírico, para o qual só existem palavras, isto é, a vestimenta aparente das coisas, e o realismo platônico que se funda na densidade imutável das essências, o símbolo lança uma ponte que vivifica sua aparência como a representação do ator transforma as palavras que ele pronuncia em sentimentos experimentados, em facetas comoventes de vida.
Essa metamorfose manifesta-se em todos os níveis. “Aquilo a que chamamos fato, nos diz Eddington, é a interpretação de uma observação… A física não estuda as qualidades perscrutáveis da matéria, mas registros de aparelhos, que não têm maior relação com aquelas qualidades do que um número de telefone com a pessoa do assinante”. Essa afirmativa é aplicável às matemáticas, como o disse Hilbert, já que em álgebra a natureza dos seres referentes não é considerada. Apenas importam as suas relações, ou seja, exatamente aquilo que conserva a lógica topológica.
Informando, deformamos em nós o fenômeno, e da mesma forma quando tentamos expressá-lo. Não podemos ser objetivos sem renegar-nos e só guardamos da coisa considerada aquilo que dela medimos em unidades de observador, se assim se pode dizer. Ora, existem tantas unidades quanto consciências. Toda expressão é pessoal e não vai abolir as outras possíveis.
Reduzindo todas as coisas a movimentos, eliminamos do mundo, como Descartes, o que constitui para nós o seu valor, o que permite saboreá-la, suas cores seu perfume, seu som, o sabor de seus frutos, toda a atividade do mundo sensível sem a qual o próprio espaço não existiria, pois — já sabemos desde Einstein — ele só existe na medida que nele se encontra.
O símbolo, como um taumaturgo, ressuscita o tempo abolido, o sentimento apagado, graças a imagens evocadas por uma testemunha ausente ou há tempos desaparecida. Mas essas imagens de palavras ou de formas jamais se compreendem na sua integridade, como foram imaginadas por seu autor ou por ele vividas, sobretudo se os séculos dele nos separam. Cada um é um prisioneiro de seu tempo, e até as matemáticas são históricas. O homem mergulha-se inteiramente no oceano da história. Seu espírito é limitado por sua língua materna. Ele vive e pensa nos limites do mundo que sua cultura explora e lhe permite nomear. Uma encarnação sempre renovada deve reanimar toda expressão geralmente admitida, para que seja compreendida daquele que a recebe. Entre a noção lógica que nos diz que todo homem é mortal e a morte súbita de nossa mãe, há o choque de uma revelação desconcertante que nos transforma por magia. O que Kierkegaard magnificamente exprimiu dizendo: “Só compreendo a verdade quando ela em mim se torna vida”.
A nebulosa intuitiva da ideia mãe não poderá jamais se resolver em simples lógica. Subsistirá sempre alguma coisa de tradicional, de anterior, de dado. “Em toda construção abstrata, diz Gonseth, há um resíduo intuitivo, impossível de ser eliminado, que constitui seu valor e sua significação. “A parte exprimível e aparente é, como a de um iceberg, o sinal de alerta de uma realidade incomensurável e invisível.
Os próprios símbolos têm seus limites. Mas, antes de serem fixadas, essas imagens mentais são nosso guia interior, a própria matéria da nossa vida. Essa gesticulação patética, esse cinema permanente, esse teatro de sombras que anima em segredo nossa consciência só poderá nascer para a existência se nos iniciamos num sistema de símbolos, susceptível de ser compreendido, e se, como Orfeu, tivermos a capacidade de liberar o nosso canto. Essa normalização dos signos, esse alfabeto dos símbolos e dos ritos, é o que define uma civilização.