O aparecimento da linguagem como balbucio e articulação da boca não passa de falso problema, pois nasceu com o homem, não sendo nem menos precoce nem menos natural que o grito dos animais: ronco do tigre, arrulhar dos pombos, relinchar dos cavalos, grunhido dos porcos, mugido das vacas, todos estes sons que chamamos gritos pelo fato de não os compreendermos.
A linguagem se desprendeu pouco a pouco desse esboço de canto que é o grito, o que até hoje tantas cantoras não nos deixam esquecer. Nasceu de uma silabação do grito e do suspiro. Permanece em qualquer situação grandemente musical, impregnada de sentimentos elementares, manifestos, por exemplo, nas aclamações ou nos apupos das multidões emudecidas de admiração ou de cólera. Desde o canto popular e espontâneo de onde brota a alegria de viver, passando pela melopeia antiga, as salmodias religiosas, as elegias sentimentais, até o simples falar prosaico, constatamos uma degradação insensível de sua densidade musical, sem que ela desapareça completamente, o que seria impossível, e como se vê pelos tons diversos que modulam a pronúncia obrigatória de certas línguas tipo chinês. Uma relação constante associa certas sensações e certos sons, deixando pressentir a misteriosa analogia que reúne a música e a vida interior numa afinidade ainda mal estudada. (Cf. La musique et la vie intérieure, L. BOURGUÉS e A. DÉNÉRÉAZ, Gênova, 1921)
A acústica bem sabe que toda palavra é identificável e única, ainda que a-penas por seu timbre e até quando a monotonia da emissão é imposta, como para as leituras feitas durante as refeições conventuais. Toda voz é reconhecível, graças às inflexões e acentos, andantino ou arioso, tão personificadas quanto as impressões digitais.
O fato de que uma tônica reguladora não mais oriente a palavra não impede que os tons da frase possam ser notados, gravados, estudados, independentemente do seu sentido, e sem que esta eliminação prejudique a sua compreensão e ainda menos o seu poder emotivo.
É um paradoxo o que acontece com o espectador de um filme mudo ou de uma peça representada numa língua estranha, durante a qual só se percebem gestos e só se ouvem sons. A atmosfera dos sentimentos, entretanto, o penetrará completamente, mais profundamente talvez que por intermédio das frases cujo sentido muitas vezes contradiz a intenção mais íntima. Não temos necessidade de compreender-lhes as palavras para captar-lhes a dimensão, o humor do interlocutor, sua amargura, sua falsidade ou seu ódio. Nossos cães e nossos gatos comprovam diariamente que mais vale o tom que a canção, ou seja, seu texto. É o segredo do impressionante sucesso de certos oradores e conferencistas, cujos ouvintes ávidos jamais tiveram a intenção de aprender deles alguma coisa; comparecem atraídos apenas pela sedução de uma voz, não para ouvi-los falar, mas cantar.
A linguagem nasceu de uma concordância fortuita, reconhecida e aceita, entre um sentimento e um som correspondente emitido pela boca, graças a uma entonação de voz associada a esse sentimento. Ainda hoje pode-se constatar que, mesmo na língua mais afastada de sua origem, certas consoantes traduzem, mais fielmente que outras, determinados sentimentos. Em francês, por exemplo, as labiais B e M provocam o movimento de abertura dos lábios necessários à sua pronúncia, o que facilita ao mesmo tempo o fato de Boire ou de Manger, de Mordre, de Murmurer, Béer. A dental T sai naturalmente de Téter, de Traire, de Tirer. A gutural G associa-se ao fato de Gronder, de Gueuler, de Glapir, de Gontier. A consoante R evoca Ruissellement e Ruée. A consoante L, Lenteur e Langueur. Constatamos que as vogais graves A, O, U parecem mais longínquas do que as agudas E e I, que parecem mais próximas. Essas consonâncias são relíquias que testemunham em favor de uma antiga correlação entre o fundo e a forma, vestígios de uma língua muito antiga que conservasse traços de uma origem quase animal ou celeste.
Hoje os linguistas abandonaram a pretensão dos sábios do século XIX que viviam à procura da língua primitiva. Tudo o que se pode dizer sobre o aparecimento da fala não passa de hipótese baseada numa reconstituição psicológica em confronto com os mais antigos estados de língua, cuja idade podemos datar através da glotocronologia.
Os linguistas anglo-saxões imaginaram para a origem das línguas várias fontes possíveis:
1) Uma fonte imitativa (teoria do bow-wow), segundo a qual a linguagem provém de onomatopeias que imitariam os ruídos e os gritos naturais;
2) Uma fonte emotiva (teoria do pooh-pooh), segundo a qual a linguagem se teria formado progressivamente, a partir de sons espontaneamente expressivos, associados a sentimentos definidos;
3) Uma fonte harmônica (teoria do ding-dong), segundo a qual a língua evocaria u-ma correlação simbólica entre um som e um som-impacto impressionista;
4) Uma fonte social (teoria do yo-he-yo), segundo a qual a língua nasce de cantos ou coros, acompanhando o esforço muscular e ritmado dos gestos coletivos de nossos ancestrais durante o trabalho.
Outras teorias apelam para o primeiro balbucio infantil, para o canto espontâneo sem mais razão que a afirmação de uma presença… Nenhuma dessas teorias é, aliás, exclusiva e não seria impossível reduzi-las a uma fonte comum. Pode-se delas retirar o aparecimento simultâneo do homem e da palavra, qualquer que seja o seu grau de evolução. Todas as circunstâncias descritas em cada uma dessas teorias certamente aí tiveram seu papel, separada ou conjuntamente. Que o grito lançado sob a influência de um sentimento poderoso que expressasse um desejo, intimasse uma ordem, mostrasse um gesto a executar ou reclamasse uma ajuda, tivesse sido interpretado pelos auditores como uma comunicação bastante clara para ser obedecida, e imediatamente teria nascido a linguagem. Com ela, o símbolo, por associação de um sentimento à melodia de uma voz.