Arendt (VE) – mundo de aparências

De fato, é como se tudo o que está vivo — para além do fato de que sua superfície é feita para aparecer, é própria para ser vista e destinada a aparecer para os outros — possuísse um impulso para aparecer, para adequar-se a um mundo de aparências, apresentando e exibindo não seu “eu interno”, mas a si próprio como indivíduo (O termo “autoexposição”, como o alemão, Selbstdarstellung, é equívoco: pode significar que eu ativamente faço minha presença sentida, vista e ouvida, ou que apresento meu eu [self], alguma coisa dentro de mim que de outra forma jamais apareceria — ou seja, na terminologia de Portmann, uma aparência “não autêntica” – Daqui em diante usaremos o termo na primeira acepção). ArendtVE I O Pensar 3

Além do impulso de autoexposição, pelo qual as coisas vivas se acomodam a um mundo de aparências, os homens também apresentam-se por feitos e palavras, e, assim, indicam como querem aparecer, o que, em sua opinião, deve ser e não deve ser visto. ArendtVE I O Pensar 4

O argumento mais plausível, se não o mais forte, contra o positivismo simplista que acredita ter encontrado um solo firme de certeza quando exclui de sua consideração todos os fenômenos espirituais e restringe-se aos fatos observáveis, à realidade cotidiana dada aos nossos sentidos, é que semblâncias naturais e inevitáveis são inerentes a um mundo de aparências do qual não podemos escapar. ArendtVE I O Pensar 5

Talvez seja, pois, aconselhável examinar em que medida a noção de uma “coisa-em-si” que não aparece está dada na própria compreensão do mundo como um mundo de aparências, independentemente das necessidades e dos pressupostos de um ser pensante e da vida do espírito. ArendtVE I O Pensar 6

A realidade em um mundo de aparências é antes de tudo caracterizada por “ficar imóvel e permanecer” o mesmo o tempo suficiente para tornar-se um objeto que pode ser conhecido e reconhecido por um sujeito. ArendtVE I O Pensar 7

O fato de que as aparências sempre exigem espectadores e, por isso, sempre implicam um reconhecimento e uma admissão pelo menos potenciais tem consequências de longo alcance para o que nós — seres que aparecem em um mundo de aparências — entendemos por realidade — tanto a nossa quanto a do mundo. ArendtVE I O Pensar 7

Em um mundo de aparências, cheio de erros e semblâncias, a realidade é garantida por esta tríplice comunhão: os cinco sentidos, inteiramente distintos uns dos outros, têm em comum o mesmo objeto; membros da mesma espécie têm em comum o contexto que dota cada objeto singular de seu significado específico; e todos os outros seres sensorialmente dotados, embora percebam esse objeto a partir de perspectivas inteiramente distintas, estão de acordo acerca de sua identidade. ArendtVE I O Pensar 7

É tentador equiparar esse “sentido interno”, que não pode ser fisicamente localizado, com a faculdade do pensar; porque entre as principais características do pensamento, que se dá em um mundo de aparências e é realizado por um ser que aparece, está a de que ele próprio é invisível. ArendtVE I O Pensar 7

O critério, em ambos os casos, é a evidência que, como tal, é inerente a um mundo de aparências. ArendtVE I O Pensar 8

A transformação da verdade em mera veracidade deriva primeiramente do fato de que o cientista permanece ligado ao senso comum através do qual nos orientamos em um mundo de aparências. ArendtVE I O Pensar 8

Uma vez que as atividades do espírito, por definição não-aparentes, ocorrem em um mundo de aparências e em um ser que participa dessas aparências por meio de seus órgãos sensoriais receptivos, bem como de sua própria capacidade e de sua necessidade de aparecer aos outros, elas só podem existir por meio de uma retirada deliberada da esfera das aparências. ArendtVE I O Pensar 9

Assim como os seres que aparecem e habitam o mundo de aparências têm em si o ímpeto de se mostrarem, os seres pensantes — ainda que pertencentes ao mundo das aparências, mesmo depois de haverem dele se retirado mentalmente — têm em si o ímpeto de falar, e, assim, tornar manifesto aquilo que, de outra forma, não poderia absolutamente pertencer ao mundo das aparências. ArendtVE I O Pensar 12

Isso é relativamente fácil desde que nosso pensamento simplesmente responda aos apelos de nossa necessidade de conhecer e compreender o que é dado no mundo de aparências, isto é, desde que permaneçamos dentro das limitações do raciocínio do senso comum; o que precisamos para o pensamento do senso comum é de exemplos que ilustrem nossos conceitos; tais exemplos são adequados porque nossos conceitos são extraídos das aparências — são meras abstrações. ArendtVE I O Pensar 12

Mencionei anteriormente que a linguagem, o único meio no qual o invisível pode tornar-se manifesto em um mundo de aparências, não é assim tão adequada para exercer aquela função quanto os nossos sentidos são adequados à tarefa de lidar com o mundo perceptível. ArendtVE I O Pensar 13

Já que os homens aparecem em um mundo de aparências, eles precisam de espectadores; os que comparecem como espectadores ao festival da vida são tomados por pensamentos de admiração, que são então postos em palavras. ArendtVE I O Pensar 14

Tudo o que nos diz respeito existencialmente, enquanto vivemos em um mundo de aparências, são as “impressões” por meio das quais somos afetados. ArendtVE I O Pensar 16

Ela não é algo ausente que precise de uma memória que a guarde para o processo dessensorializante que prepara os objetos do espírito para o pensamento, e que é sempre precedido pela experiência em um mundo de aparências. ArendtVE I O Pensar 16

Porque o problema é que o ego pensante, como vimos — à diferença do eu que evidentemente coabita em todo pensador —, não tem qualquer impulso próprio para aparecer em um mundo de aparências. ArendtVE I O Pensar 17

É apenas porque “ele” pensa, e, portanto, deixa de ser levado pela continuidade da vida cotidiana em um mundo de aparências, que passado e futuro se manifestam como meros entes de tal forma que “ele” pode tomar consciência de um não-mais que o empurra para a frente e de um ainda-não que o empurra para trás. ArendtVE I O Pensar 20