(Gil1998)
A irredutibilidade do agir manifesta-se como um estrato pré-intencional, inacessível a uma completa explicação racional. Contentar-nos-emos aqui em indicar que ela é posta em evidência, pela negativa, pela insuficiência dos critérios racionais de determinação da acção, que desembocam em paradoxos e aporias. A definição da acção coloca o problema da sua individuação. Por exemplo, são possíveis várias descrições de disse «bom dia» ao telefone 1:
(1) Certos movimentos da minha língua e dos meus lábios, combinados com a minha respiração;
(2) Disse «bom dia»;
(3) Uma certa série de modificações na corrente eléctrica que liga o meu telefone ao do meu interlocutor;
(4) Disse-lhe «bom dia»;
(5) Saudei-o.
Será que estas descrições se reportam a uma única acção que encaramos segundo diversas perspectivas oferecendo-se conjuntamente, ou elas denotam cinco acções diferentes? E haverá posições intermediárias entre as duas teses? Se dizer «bom dia» (2) é uma «propriedade de acto» diferente da «propriedade de acto» dizer-lhe «bom dia» (4), terei executado duas acções. Se, pelo contrário, estimamos com Davidson que uma acção consiste essencialmente em certos movimentos corporais (1) —que podemos porém descrever tomando em conta as suas consequências e as suas circunstâncias, desde (2) até (5) —, terei efectuado uma única acção. Lawrence Davis chama maximalista à primeira tese e minimalista à segunda.
As posições intermédias tomam a acção como um todo de que outras acções e outros acontecimentos são componentes. No nosso caso, dizer «bom dia» a alguém (4) seria a descrição mais larga da acção. Ela inclui a ideia de saudar (5) e contém (2): escolhi saudar alguém pela fórmula bom dia. Para esse efeito, tive igualmente de executar os movimentos descritos em (1), que se traduziram nos efeitos telefônicos de (3) (eléctricos, auditivos, etc.). Estes componentes são quase todos independentes uns dos outros: (1) não implica (2) — mas é implicado por (2) —, (2) não implica (3) e (3) não implica (2), (5) não implica (4) nem (4) implica (5) —posso estar a ser irônico —·, etc. A acção não testemunharia nem a unidade afirmada pelos minimalistas, nem a pluralidade sem restrições dos maximalistas. Ora, qualquer destas interpretações conduz a consequências inadmissíveis.
O maximalismo leva a aceitar que cada vez que executo uma acção, executo de facto uma infinidade de outras acções. Para além de (l)-(5), pronunciei ainda uma frase em português, emiti sons, utilizei um aparelho telefônico, inclinei-me para o agarrar, peguei nele, etc. Dito de outra maneira, a acção perde-se numa massa de outras acções. Pelo seu lado, a restrição minimalista circunscreve a acção aos movimentos físicos e acompanha-se pelas descrições dos seus efeitos ulteriores, que seriam exteriores à acção propriamente dita: seguir-se-á portanto logicamente que posso agredir alguém e inclusive matá-lo antes que a pedra que lancei atinja o seu corpo. Por fim se, como pretendem as posições intermediárias, as consequências da acção pertencem ainda à acção, seremos então obrigados a admitir que matar alguém é uma acção que continua a decorrer até a vítima morrer por efeito do gesto do agente — mesmo se este morre antes dela 2!
Como se depreende deste exercício analítico —porventura no fim de contas ocioso, é o debate em curso que convida a fazê-lo—, é difícil delimitar conceptualmente a acção. Ela é vivida como tal na sua singularidade: a sua natureza não se deixa elucidar, a acção compreende-se pelo seu próprio exercício. Vista do exterior, do ponto de vista de terceira pessoa, do filósofo que a examina, cada acção se revelará constituir um processo sem fronteiras precisas, ou um elemento de uma rede complexa onde é possível individualizar diferentes configurações. A acção é imanente ao sujeito que ele próprio se apreende como pura actividade. Dito por outras palavras, o agir (a actividade) é anterior à acção, a intencionalidade da acção não determina ontologicamente o agir: a intenção será a ratio cognoscendi dos seus efeitos, não a sua própria ratio essendi. Conforme Fichte observa ainda, o único conceito imediato é o conceito de actividade, que não pode ser explicado nem deduzido.
Outras dificuldades permitem, a contrario, fixar melhor este modo não intencional e não reflexivo da acção. Quais são os traços distintivos das acções relativamente a outras actividades produtoras de efeitos? As respostas a esta pergunta tropeçam nos problemas da intencionalidade. Em princípio, as acções decorrem de uma intenção, ou de um desejo, ou de uma outra «atitude-pro» (Davidson): as causas da acção são intencionais lato sensu. Mas a acção pode igualmente resultar de uma cadeia causal «aberrante», se o efeito se deve a uma causa diferente da «apropriada». Quero assassinar alguém, mas o tiro acaba por partir «sozinho», antes de decidir premir o gatilho: a causa involuntária produz os mesmos efeitos que a causa voluntária, dentro do mesmo quadro intencional (tenho a pistola na mão porque matar alguém se inscreve na minha intenção). E acções autênticas podem ocasionar-se sem que se possa delas dar uma explicação em termos de intenção. Passo o sal a quem mo pede, sem desejo ou intenção da minha parte, pois fui educado a obedecer a este gênero de pedidos (será artificial pretender que se manifestaria aqui uma «atitude-pro permanente» relativamente aos actos de obediência). Ou saio e olho para o céu: é certamente algo que faço sem razão ou intenção. Mas esse gesto é uma acção, se algo de moral ou jurídico estivesse em jogo seria declarado responsável 3. O mesmo se dirá das acções quase automáticas que evidenciam a «intencionalidade operante», não reflectida, que tanto interessou Husserl e Merleau-Ponty: o gesto não intencional do jogador de tênis capaz de antecipar a boa resposta, a conduta do automobilista experimentado que conversa com o seu vizinho sem pensar nos problemas de circulação que nesse mesmo instante está a resolver, a execução «não planificada» do pianista. Tem-se em todos estes casos um conhecimento não observacional do que se está a fazer 4. Se ele é fruto de uma prática intencional anterior, não é menos verdade que, enquanto tais, as acções em que se traduz não são intencionais; o tratamento da informação armazenada não chega à consciência.
Em todas estas ocorrências falta a intenção, e o mesmo se dirá da «consciência não-perceptiva» (Davis) da acção. Distingo sem me enganar a acção de que sou o autor da queda que me acontece ao tropeçar numa pedra — enganar-me-ei somente em circunstâncias excepcionais, que não permitem estabelecer um argumento geral contra esta distinção. Apenas o facto de sermos agentes nos faz compreender o que a acção significa, o que é agir. «O nosso sentimento da distinção entre o que ‘faço’ e o que pura e simplesmente ‘acontece’» 5 é o critério último da acção. O agir compreende-se pelo agir, a identidade da acção estabelece-se através do agir.
- Cf. o artigo de L. Davis, cit.[↩]
- L. Davis comenta: «None of these views seems to harmonize with all our intuitions, and it is unclear what might be compelling reason to favour one of the theoretical conceptions of events and event language those views reflect» (cit., p. 112-B).[↩]
- Davis, cit., p. 114.[↩]
- G. E. M. Anscombe, Intention, Ithaca, Corneli U. P., 1963 (2.a ed.).[↩]
- Davis, cit., p. 117-A.[↩]