Hottois1993
Assim como a individuação biológica do organismo vivo é apresentada como uma extensão, em outro nível, de uma individuação física incompleta, a individuação propriamente humana está inscrita na abertura deixada pela incompletude da individuação biológica ou natural. No ser humano — e é isso que o torna um “ser humano” — a individuação biológica deixa uma carga pré-individual (um potencial de virtualidades reais) cuja individuação não pode ocorrer de acordo com processos e formas simplesmente biológicos. Simondon chama essa individuação pós-biológica de “psíquica”, mas especifica que esse devir psíquico não pode ocorrer de forma egocêntrica, ou seja, dentro de uma individualidade pessoal solitária. A individuação psíquica humana não pode ser monádica: ela é transindividual e só pode ser alcançada no coletivo e por meio dele. O coletivo — do grupo à sociedade aberta — é, em si, um sistema metaestável no processo de individuação. A individuação pessoal e a individuação coletiva estão, portanto, intimamente correlacionadas.
“O psíquico é um transindividual nascente” — ‘A vida psíquica vai do pré-individual ao coletivo’. A individuação pessoal, intraindividual, não poderia resolver os problemas que surgem e que exigem a busca da individuação humana. (GSIG, p. 155).
“A única metaestabilidade definitiva é a do coletivo, porque ele se perpetua sem envelhecer por meio de sucessivas individuações (…) A permanência da vida se encontra no nível do coletivo (… mas) como um significado no qual a ascensão e a queda do ser individuado estão integradas; o coletivo é carregado pela maturidade dos indivíduos (… e) o indivíduo é maduro na medida em que se integra ao coletivo” (GSIG, p. 246).
É principalmente no IPC que Simondon lida com a individuação antropológica.
“A psique e o coletivo são constituídos por individuações que vêm depois da individuação vital. A psique é uma continuação da individuação vital em um ser que, para resolver seu próprio problema, é obrigado a intervir ele mesmo como um elemento do problema por meio de sua ação, como um sujeito (…) No entanto, o ser psíquico não pode resolver seu próprio problema em si mesmo; sua carga de realidade pré-individual (…) permite a participação na forma de uma condição condicional. A individuação na forma do coletivo torna o indivíduo um indivíduo grupal, associado ao grupo pela realidade pré-individual que carrega dentro de si e que, quando combinada com a de outros indivíduos, se individua em uma unidade coletiva. As duas individuações, psíquica e coletiva, são recíprocas em relação uma à outra; elas possibilitam a definição de uma categoria do transindividual que tende a explicar a unidade sistemática da individuação interna (psíquica) e da individuação externa (coletiva)” (IPC, p. 19).
O estudo de Simondon sobre o transindividual inclui desenvolvimentos sobre a vida afetiva e leva à problemática da ética e da política, que discutiremos em detalhes mais adiante. Aqui, como em outros lugares, Simondon critica as abordagens que dissociam os termos da relação, esvaziam-na de qualquer realidade dinâmica efetiva e as hipostasiam separadamente como substâncias monádicas.
“O substancialismo nos força a pensar no grupo como anterior ao indivíduo, o que dá origem ao psicologismo e ao sociologismo, dois substancialismos em níveis diferentes (…)” (IPC, p. 185).
Observe a discreta persistência da analogia original da individuação física do cristal, à qual, é claro, a individuação biológica e, a fortiori, a individuação psíquica e coletiva, não são de forma alguma redutíveis:
“Devemos começar pela operação de individuação do grupo, na qual os seres individuais são tanto o meio quanto os agentes de uma sincristalização; o grupo é uma sincristalização de vários seres individuais, e é o resultado dessa sincristalização que é a personalidade do grupo” (IPC, p. 183).
Sincristalização metastável: uma sociedade cristalina estável ou iterativa estaria morta, bloqueando a individuação evolutiva aberta da humanidade em formação.