Página inicial > Modernidade > Simmel (QFS): liberdade - igualdade - fraternidade

Simmel (QFS): liberdade - igualdade - fraternidade

segunda-feira 1º de novembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Essa necessidade de liberdade do indivíduo, que se sentia deformado e limitado pela sociedade histórica, resulta, uma vez posta em prática, numa autocontradição. É evidente que ela só se realiza de maneira duradoura se a sociedade é composta somente de indivíduos que, internamente, assim como externamente, são agraciados com a mesma força e o mesmo privilégio. Posto que essa condição não é preenchida em lugar algum, e que as forças que conferem poder e determinam a hierarquia de níveis entre os seres humanos são a princípio quantitativa e qualitativamente desiguais, isso levaria inevitavelmente a um aproveitamento dessas desigualdades por parte dos mais favorecidos, dos inteligentes perante os mais estúpidos, dos fortes perante os fracos, dos voluntariosos perante os tímidos. Deslocadas todas as barreiras externas, a diferença das potências interiores iria se expressar em uma diferença correspondente nas posições exteriores: a liberdade institucionalizada torna-se novamente ilusória por ação das relações pessoais; como em todas as relações de poder, a vantagem obtida faz mais fácil a conquista de outra vantagem — de que a “acumulação de capital” é apenas um exemplo isolado —, e assim a desigualdade do poder iria se tornar maior em progressão velocíssima, e a liberdade dos privilegiados iria se desenvolver à custa da liberdade dos oprimidos.

Por esse motivo, era perfeitamente legítima a questão paradoxal de saber se a socialização de todos os meios de produção não constituiria a única condição sob a qual se levaria a cabo a livre concorrência. Desse modo, visto que se retira violentamente do indivíduo a possibilidade de aproveitar plenamente sua eventual superioridade sobre os que lhes são inferiores, pode predominar na sociedade uma medida de liberdade que seja a mesma para todos. Por esse motivo, pressupondo-se esse ideal, não é correto dizer que o socialismo signifique a suspensão da liberdade. Ele a suspende somente quando a liberdade dada torna-se um meio para oprimir a liberdade de alguém que a realiza à custa da liberdade do outro: a propriedade privada se torna não somente expressão, mas até um multiplicador das diferentes forças individuais; ela aumenta de tal maneira essa diferença até que se tenha acumulado — para usar uma expressão radical — um máximo de liberdade em um polo da sociedade, e um mínimo de liberdade em outro.

A plena liberdade de cada um só pode se dar em uma total igualdade com a liberdade do outro. Mas isso não é inatingível somente no plano pessoal, como também no econômico, à medida que este permite o aproveitamento de superioridades pessoais. Somente quando essa possibilidade for deixada de lado, isto é, quando se suprimir a propriedade privada dos meios de produção, a igualdade será então possível, e também se eliminará o limite da liberdade inseparável da desigualdade. É inegável que exatamente nessa “possibilidade” se mostra a profunda antinomia entre liberdade e igualdade, uma vez que ela só se resolve mediante a imersão dos dois termos no elemento negativo de ausência de propriedade e de poder.

Ao que parece, somente Goethe   percebeu claramente essa antinomia: a igualdade, diz ele, exige a subordinação a uma norma universal, e a liberdade “anseia pelo incondicionado”; “legisladores ou revolucionários que prometem ao mesmo tempo igualdade e liberdade são lunáticos ou charlatães”. Talvez tenha sido o instinto para essa situação que tenha acrescentado a fraternidade à liberdade e à igualdade como terceira exigência. Pois uma vez eliminado o meio da coação, para que então seja suprimida a contradição entre liberdade e igualdade, somente o altruísmo explícito pode alcançar sucesso: somente por meio da renúncia moral à prevalência de privilégios naturais seria possível restaurar a igualdade, depois que a liberdade a destruiu. Além disso, o individualismo típico do século XVIII é completamente cego para essa dificuldade interna da liberdade. As amarras estamentais, corporativas, eclesiásticas e espirituais contra as quais ele se defendeu criaram inúmeras desigualdades entre os seres humanos, desigualdades cuja injustiça foi profundamente sentida, mas vista como derivada unicamente de origens exteriores e históricas. Concluiu-se que a supressão das instituições com as quais essas desigualdades deveriam cair teria eliminado toda a desigualdade do mundo. Liberdade e igualdade apareciam como dois lados evidentemente harmoniosos do mesmo ideal de humanidade.


Ver online : Questões fundamentais da sociologia: Indivíduo e sociedade