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Hume: identidade pessoal
domingo 12 de janeiro de 2020, por
Danowski
1 Há filósofos que imaginam estarmos, em todos os momentos, intimamente conscientes daquilo que denominamos nosso EU [our SELF] ; que sentimos sua existência e a continuidade de sua existência; e que estamos certos de sua perfeita identidade e simplicidade, com uma evidência que ultrapassa a de uma demonstração. A sensação mais forte, a paixão mais violenta, dizem eles, ao invés de nos distrair dessa visão, fixam-na de maneira ainda mais intensa; e, por meio da dor ou do prazer que produzem, levam-nos a considerar a influência que exercem sobre o eu. Tentar fornecer uma prova desse eu seria enfraquecer sua evidência, pois nenhuma prova poderia ser derivada de um fato de que estamos tão intimamente conscientes; e não há nada de que possamos estar certos se duvidarmos disso.
2 Lamentavelmente, todas essas asserções positivas contradizem essa própria experiência que é invocada a seu favor, e não possuímos nenhuma ideia de eu da maneira aqui descrita. Pois de que impressão poderia ser derivada essa ideia? É impossível responder a essa pergunta sem produzir uma contradição e um absurdo manifestos; e entretanto, se queremos que a ideia de eu seja clara e inteligível, precisamos necessariamente encontrar uma resposta para ela. Toda ideia real deve sempre ser originada de uma impressão. Mas o eu ou pessoa não é uma impressão, e sim aquilo a que nossas diversas impressões e ideias supostamente se referem. Se alguma impressão dá origem à ideia de eu, essa impressão tem de continuar invariavelmente a mesma, ao longo de todo o curso de nossas vidas -pois é dessa maneira que o eu supostamente existe. Mas não há qualquer impressão constante e invariável. Dor e prazer, tristeza e alegria, paixões e sensações sucedemse umas às outras, e nunca existem todas ao mesmo tempo. Portanto, a ideia de eu não pode ser derivada de nenhuma dessas impressões, ou de nenhuma outra. Consequentemente, não existe tal ideia.
3 Além disso, segundo essa hipótese, o que deve acontecer com todas as nossas percepções particulares? Afinal, elas são todas diferentes, distinguíveis e separáveis entre si, podem ser consideradas separadamente, e podem existir separadamente, sem necessitar de algo que sustente sua existência. De que maneira, portanto, pertenceriam ao eu, e como estariam conectadas com ele? De minha parte, quando penetro mais intimamente naquilo que denomino meu eu, sempre deparo com uma ou outra percepção particular, de calor ou frio, luz ou sombra, amor ou ódio, dor ou prazer. Nunca apreendo a mim mesmo, em momento algum, sem uma percepção, e nunca consigo observar nada que não seja uma percepção. Quando minhas percepções são suprimidas por algum tempo, como ocorre no sono profundo, durante todo esse tempo fico insensível a mim mesmo, e pode-se dizer verdadeiramente que não existo. E se a morte suprimisse todas as minhas percepções; se, após a dissolução de meu corpo, eu não pudesse mais pensar, sentir, ver, amar ou odiar, eu estaria inteiramente aniquilado -pois não posso conceber o que mais seria preciso para fazer de mim um perfeito nada. Se, após uma reflexão séria e livre de preconceitos, ainda houver alguém que pense possuir uma noção diferente de si mesmo, confesso que não posso mais raciocinar com ele. Posso apenas conceder-lhe que talvez esteja certo tanto quanto eu, e que somos essencialmente diferentes quanto a esse aspecto particular. Talvez ele perceba alguma coisa simples e contínua, que denomina seu eu; mas estou certo de que não existe tal princípio em mim.
4 À parte alguns metafísicos dessa espécie; porém, arrisco-me a afirmar que os demais homens não são senão um feixe ou uma coleção de diferentes percepções, que se sucedem umas às outras com uma rapidez inconcebível, e estão em perpétuo fluxo e movimento. Nossos olhos não podem girar em suas órbitas sem fazer variar nossas percepções. Nosso pensamento é ainda mais variável que nossa visão; e todos os outros sentidos e faculdades contribuem para essa variação. Não há um só poder na alma que se mantenha inalteravelmente o mesmo, talvez sequer por um instante. A mente é uma espécie de teatro, onde diversas percepções fazem sucessivamente sua aparição; passam, repassam, esvaem-se, e se misturam em uma infinita variedade de posições e situações. Nela não existe, propriamente falando, nem simplicidade em um momento, nem identidade ao longo de momentos diferentes, embora possamos ter uma propensão natural a imaginar essa simplicidade e identidade. Mas a comparação com o teatro não nos deve enganar. A mente é constituída unicamente pelas percepções sucessivas; e não temos a menor noção do lugar em que essas cenas são representadas ou do material de que esse lugar é composto.
5 O que é, então, que nos dá uma propensão tão forte a atribuir uma identidade a essas percepções sucessivas, e a supor que possuímos uma existência invariável e ininterrupta durante todo o decorrer de nossas vidas? Para responder a essa questão, devemos distinguir a identidade pessoal enquanto diz respeito a nosso pensamento e imaginação, e enquanto diz respeito a nossas paixões ou ao interesse que temos por nós mesmos. A primeira é nosso tema presente; e, para compreendê-la perfeitamente, teremos de nos aprofundar bastante, e explicar aquela identidade que atribuímos às plantas e animais -pois há uma grande analogia entre esta e a identidade de um eu ou pessoa.
Possuímos uma ideia distinta de um objeto que permanece invariável e ininterrupto ao longo de uma suposta variação de tempo; e a essa ideia denominamos identidade ou mesmidade. Possuímos também uma ideia distinta de diversos objetos diferentes existindo em sucessão e conectados entre si por uma relação estreita; e essa ideia proporciona, para um olhar preciso, uma noção tão perfeita de diversidade como se não houvesse nenhuma relação entre os objetos. Mas, embora essas ideias de identidade e de uma sucessão de objetos relacionados sejam em si mesmas totalmente distintas, e até contrárias, é certo que, em nosso modo comum de pensar, geralmente as confundimos. A ação da imaginação pela qual consideramos o objeto ininterrupto e invariável e a ação pela qual refletimos sobre a sucessão de objetos relacionados são sentidas de maneira quase igual [are almost the same to the feeling] , não sendo preciso um esforço de pensamento muito maior neste último caso que no primeiro. A relação facilita a transição da mente de um objeto ao outro, e torna essa passagem tão suave como se contemplássemos um único objeto contínuo. Tal semelhança é a causa de nossa confusão e erro, fazendo-nos trocar a noção de objetos relacionados pela de identidade. Embora em um momento possamos ver a sucessão relacionada como variável ou descontínua, no momento seguinte certamente iremos atribuir a ela uma identidade perfeita, considerando-a como invariável e ininterrupta. Nossa propensão para esse erro é tão forte, em virtude da semelhança já mencionada, que o cometemos antes de nos darmos conta disso. E, mesmo que nos corrijamos incessantemente pela reflexão, retornando assim a um modo mais exato de pensar, não conseguimos sustentar nossa filosofia por muito tempo, nem libertar a imaginação dessa inclinação. Nosso último recurso é ceder a esta última, e afirmar ousadamente que esses diferentes objetos relacionados são de fato a mesma coisa, não obstante sua descontinuidade e variação. Para justificar perante nós mesmos tal absurdo, frequentemente imaginamos algum princípio novo e ininteligível que conecte os objetos, impedindo sua descontinuidade ou variação. É assim que criamos a ficção da existência contínua das percepções de nossos sentidos, com o propósito de eliminar a descontinuidade; e chegamos à noção de uma alma, um eu e uma substância, para encobrir a variação. Mas podemos observar além disso que, mesmo quando não criamos tal ficção, nossa propensão a confundir a identidade com a relação é tão forte que tendemos a imaginar [1]] alguma coisa desconhecida e misteriosa conectando as partes, além da relação. Penso ser este o caso da identidade que atribuímos às plantas e animais. E, mesmo quando isso não ocorre, ainda sentimos uma propensão a confundir essas ideias, embora não consigamos nos convencer inteiramente quanto a esse ponto, por não encontrarmos alguma coisa invariável e ininterrupta que justifique nossa noção de identidade.
Assim, a controvérsia em torno da identidade não é uma mera disputa de palavras. Quando atribuímos identidade, em um sentido impróprio, a objetos variáveis e intermitentes, nosso erro não se limita à maneira pela qual nos exprimimos; ao contrário, comumente se faz acompanhar de uma ficção, seja de alguma coisa invariável e ininterrupta, seja de algo misterioso e inexplicável, ou ao menos de uma propensão para tais ficções. Para provar essa hipótese de um modo que satisfaça a qualquer investigador imparcial, basta-nos mostrar, partindo da experiência e observação diárias, que os únicos objetos variáveis e descontínuos que supomos continuar os mesmos são os que consistem em uma sucessão de partes conectadas por semelhança, contiguidade ou causalidade. Porque, como é evidente que uma tal sucessão corresponde a nossa noção de diversidade, só pode ser por engano que lhe atribuímos uma identidade; e como a relação das partes, que nos leva a esse erro, é na realidade apenas uma qualidade que produz uma associação de ideias e uma transição fácil da imaginação de uma ideia a outra, esse erro só pode decorrer da semelhança entre esse ato da mente e aquele pelo qual contemplamos um único objeto contínuo. Nossa principal tarefa, portanto, deve ser provar que todos os objetos a que atribuímos identidade sem ter observado sua invariabilidade e ininterruptibilidade são constituídos por uma sucessão de objetos relacionados.
Original
There are some philosophers. who imagine we are every moment intimately conscious of what we call our SELF; that we feel its existence and its continuance in existence; and are certain, beyond the evidence of a demonstration, both o its perfect identity and simplicity. The strongest sensation, the most violent passion, say they, instead of distracting us from this view, only fix it the more intensely, and make us consider their influence on self either by their pain or pleasure. To attempt a farther proof of this were to weaken its evidence; since no proof can be derived from any fact, of which we are so intimately conscious; nor is there any thing, of which we can be certain, if we doubt of this.
Unluckily all these positive assertions are contrary to that very experience, which is pleaded for them, nor have we any idea of self, after the manner it is here explained. For from what impression coued this idea be derived? This question it is impossible to answer without a manifest contradiction and absurdity; and yet it is a question, which must necessarily be answered, if we would have the idea of self pass for clear and intelligible, It must be some one impression, that gives rise to every real idea. But self or person is not any one impression, but that to which our several impressions and ideas are supposed to have a reference. If any impression gives rise to the idea of self, that impression must continue invariably the same, through the whole course of our lives; since self is supposed to exist after that manner. But there is no impression constant and invariable. Pain and pleasure, grief and joy, passions and sensations succeed each other, and never all exist at the same time. It cannot, therefore, be from any of these impressions, or from any other, that the idea of self is derived; and consequently there is no such idea.
But farther, what must become of all our particular perceptions upon this hypothesis? All these are different, and distinguishable, and separable from each other, and may be separately considered, and may exist separately, and have no Deed of tiny thing to support their existence. After what manner, therefore, do they belong to self; and how are they connected with it? For my part, when I enter most intimately into what I call myself, I always stumble on some particular perception or other, of heat or cold, light or shade, love or hatred, pain or pleasure. I never can catch myself at any time without a perception, and never can observe any thing but the perception. When my perceptions are removed for any time, as by sound sleep; so long am I insensible of myself, and may truly be said not to exist. And were all my perceptions removed by death, and coued I neither think, nor feel, nor see, nor love, nor hate after the dissolution of my body, I should be entirely annihilated, nor do I conceive what is farther requisite to make me a perfect non-entity. If any one, upon serious and unprejudiced reflection thinks he has a different notion of himself, I must confess I call reason no longer with him. All I can allow him is, that he may be in the right as well as I, and that we are essentially different in this particular. He may, perhaps, perceive something simple and continued, which he calls himself; though I am certain there is no such principle in me.
But setting aside some metaphysicians of this kind, I may venture to affirm of the rest of mankind, that they are nothing but a bundle or collection of different perceptions, which succeed each other with an inconceivable rapidity, and are in a perpetual flux and movement. Our eyes cannot turn in their sockets without varying our perceptions. Our thought is still more variable than our sight; and all our other senses and faculties contribute to this change; nor is there any single power of the soul, which remains unalterably the same, perhaps for one moment. The mind is a .kind of theatre, where several perceptions successively make their appearance; pass, re-pass, glide away, and mingle in an infinite variety of postures and situations. There is properly no simplicity in it at one time, nor identity in different; whatever natural propension we may have to imagine that simplicity and identity. The comparison of the theatre must not mislead us. They are the successive perceptions only, that constitute the mind; nor have we the most distant notion of the place, where these scenes are represented, or of the materials, of which it is composed.
What then gives us so great a propension to ascribe an identity to these successive perceptions, and to suppose ourselves possest of an invariable and uninterrupted existence through the whole course of our lives? In order to answer this question, we must distinguish betwixt personal identity, as it regards our thought or imagination, and as it regards our passions or the concern we take in ourselves. The first is our present subject; and to explain it perfectly we must take the matter pretty deep, and account for that identity, which we attribute to plants and animals; there being a great analogy betwixt it, and the identity of a self or person.
We have a distinct idea of an object, that remains invariable and uninterrupted through a supposed variation of time; and this idea we call that of identity or sameness. We have also a distinct idea of several different objects existing in succession, and connected together by a close relation; and this to an accurate view affords as perfect a notion of diversity, as if there was no manner of relation among the objects. But though these two ideas of identity, and a succession of related objects be in themselves perfectly distinct, and even contrary, yet it is certain, that in our common way of thinking they are generally confounded with each other. That action of the imagination, by which we consider the uninterrupted and invariable object, and that by which we reflect on the succession of related objects, are almost the same to the feeling, nor is there much more effort of thought required in the latter case than in the former. The relation facilitates the transition of the mind from one object to another, and renders its passage as smooth as if it contemplated one continued object. This resemblance is the cause of the confusion and mistake, and makes us substitute the notion of identity, instead of that of related objects. However at one instant we may consider the related succession as variable or interrupted, we are sure the next to ascribe to it a perfect identity, and regard it as enviable and uninterrupted. Our propensity to this mistake is so great from the resemblance above-mentioned, that we fall into it before we are aware; and though we incessantly correct ourselves by reflection, and return to a more accurate method of thinking, yet we cannot long sustain our philosophy, or take off this bias from the imagination. Our last resource is to yield to it, and boldly assert that these different related objects are in effect the same, however interrupted and variable. In order to justify to ourselves this absurdity, we often feign some new and unintelligible principle, that connects the objects together, and prevents their interruption or variation. Thus we feign the continued existence of the perceptions of our senses, to remove the interruption: and run into the notion of a soul, and self, and substance, to disguise the variation. But we may farther observe, that where we do not give rise to such a fiction, our propension to confound identity with relation is so great, that we are apt to imagine [10] something unknown and mysterious, connecting the parts, beside their relation; and this I take to be the case with regard to the identity we ascribe to plants and vegetables. And even when this does not take place, we still feel a propensity to confound these ideas, though we are not able fully to satisfy ourselves in that particular, nor find any thing invariable and uninterrupted to justify our notion of identity.
Thus the controversy concerning identity is not merely a dispute of words. For when we attribute identity, in an improper sense, to variable or interrupted objects, our mistake is not confined to the expression, but is commonly attended with a fiction, either of something invariable and uninterrupted, or of something mysterious and inexplicable, or at least with a propensity to such fictions. What will suffice to prove this hypothesis to the satisfaction of every fair enquirer, is to shew from daily experience and observation, that the objects, which are variable or interrupted, and yet are supposed to continue the same, are such only as consist of a succession of parts, connected together by resemblance, contiguity, or causation. For as such a succession answers evidently to our notion of diversity, it can only be by mistake we ascribe to it an identity; and as the relation of parts, which leads us into this mistake, is really nothing but a quality, which produces an association of ideas, and an easy transition of the imagination from one to another, it can only be from the resemblance, which this act of the mind bears to that, by which we contemplate one continued object, that the error arises. Our chief business, then, must be to prove, that all objects, to which we ascribe identity, without observing their invariableness and uninterruptedness, are such as consist of a succession of related objects.
Ver online : David Hume
[1] Se o leitor quiser saber como um grande gênio, tanto quanto o mero vulgo, é capaz de se deixar influenciar por esses princípios aparentemente triviais da imaginação, pode ler os raciocínios de Lord Shaftesbury acerca do princípio unificador do universo, e da identidade das plantas e animais. Cf. seu Moralists: ou Philosophical rhapsody . [The Moralists, a philosophical rhapsody (1709). (N.T.)