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Groddeck: sou vivido pelo Isso

quarta-feira 6 de maio de 2020, por Cardoso de Castro

  

nossa tradução

Estas considerações tratam do Isso. Em vez da proposição "eu vivo", eles defendem a ideia: "Sou vivido pelo Isso".

À pergunta: o que e o Isso, não posso responder. Mas estas poucas observações indicarão como entender o que segue.

1. A criança de três anos fala de si mesma na terceira pessoa; ele se põe ao lado de si mesma e faz como se uma personalidade estranha, vivida por algo outro, se escondesse em sua pele. A palavra e o conceito "eu", a criança não os entende senão tardiamente, enquanto ela pensa e age razoavelmente desde muito tempo. Este fato fundamental nunca deve ser esquecido. Ele sugere que o eu é apenas um modo de manifestação, uma expressão do Isso.

2. No momento do nascimento, a criança começa a respirar. Ela age de maneira adequada e, em se adaptando ao seu novo meio vital, a atmosfera, ele executa um ato que denota – assim que o consideramos sem preconceitos – tanta reflexão quanto, por exemplo, a fuga de um homem fora de uma casa em chamas. Surge então a questão da diferença entre a vida consciente e a inconsciente; e temos que nos perguntar se tudo o que geralmente consideramos como manifestação consciente da personalidade não é a ação oculta do inconsciente, disso uma das regras é a compulsão de auto-mistificação.

3. O esperma e o óvulo humanos dão nascimento a um homem, não um cachorro ou um pássaro; um Isso é/está neles que compele a formação do homem e edifica seu corpo e sua alma. E o Isso dota sua criatura – a personalidade, o ego do homem –, com nariz, boca, músculos, ossos e cérebro; torna estes órgãos capazes de funcionar, exercita-os antes do nascimento e faz cumprir ao homem em gestação os atos adequados antes mesmo que seu cérebro seja formado. Temos que nos perguntar se o Isso, capaz de coisas tão grandes, também não pode construir igrejas, compor tragédias ou inventar máquinas, e se alguma manifestação da vida humana, corporal ou espiritual, saudável ou doente, pensamento, ação ou função vegetativa, não poderia ser reduzida ao Isso – de sorte que o corpo, a alma e a vida consciente seriam uma ilusão, uma auto-mistificação.

Os homens sempre tiveram uma intuição para a existência do Isso, e sua exploração não cessou de os preocupar, isto é comprovado pela filosofia e religião, bem como pela vida cotidiana. Com a psicanálise, Freud   nos deu uma maneira de perceber o mistério e transcrevê-lo. Gostaria de tornar suas ideias mais familiares aqui, mas se eu falhar, peço ao leitor que pense que este livro não foi escrito por Freud e que a psicanálise não pode ser responsabilizada pelo balbuciar de um só.

É de propósito, e não por modéstia, que uso essa palavra balbuciar: quando se fala do Isso, com efeito, só se pode balbuciar. A dificuldade de se fazer compreender já resulta do fato de que as palavras corpo, alma, eu, personalidade devem ser banidas destas considerações; ou pelo menos dar a elas um significado novo e incomum, e é impossível. No primeiro exame, descobrimos até que todas as definições, todos os conceitos, quando os confrontamos ao Isso, se tornam flutuantes, porque contêm símbolos e que, como resultado da compulsão de associação, eles interpenetram e formam complexos mais ou menos bem delimitados.

[...]

Essa suposição, a saber, que somos vividos por um Isso, destrói toda uma série de conceitos com os quais estamos acostumados a pensar. Já notei que não há corpo nem alma para o Isso, porque ambos são apenas modos de manifestação desse ser desconhecido; que o eu, a individualidade, se tornam duvidosos, pois o Isso pode ser descerrado desde a fertilização e, além, na cadeia de todos os ancestrais. Mas deste modo desaparecem toda limitação temporal, o fim como o começo desaparecem na noite dos tempos. Vida e morte deixam de ser oposições reais para se tornarem conceitos arbitrários, pois ninguém pode reconhecer o momento em que o Isso faz nascer ou morrer. A delimitação espacial não vale para o Isso, ele se espalha nisto que o cerca e não se pode indicar o ponto em que um pedaço de pão, um gole de água, uma lufada de ar, um objeto do visão, olfato, paladar, tato tornam-se propriedade do Isso. As distinções de sexo perdem nitidez; no Isso humano, homem e mulher estão desde sempre presentes e se misturam novamente quando da fertilização. A determinação da idade é impossível, pois no Isso há componentes de cada período de idade vivida, não apenas desde a fertilização, mas desde as primeiras idades. Enfim, e isto é o essencial, o consciente do homem perde sua posição central, a cede ao inconsciente, mas sem que seja possível encontrar entre eles uma linha precisa de demarcação.

O caminho que segui conduz evidentemente à proposição "tudo é um". Mas isso não serve ao meu propósito e, para abordar a essência do Isso, devo inventar temporariamente um Isso-indivíduo artificial, limitado no tempo e no espaço e sujeito à vida e morte, o Isso de um homem. Reservo-me o direito de lembrar de tempos em tempos que essa extração do todo não é imaginada senão para certos fins. E farei bom uso do fato de que o indivíduo não é nem homem nem mulher, mas os dois; que ele não tem idade precisa, mas simultaneamente um, dez e trinta anos; que o que acessa ao consciente depende da autorização do inconsciente. Quem duvida que seja sexo, idade e razão, como indiquei, precisa apenas pedir à primeira mulher vinda se alguma vez encontrou um homem que fosse inteiramente homem; ou não importa a que homem, se ele encontrou um ser que fosse inteiramente mulher.

Que ele observe o adulto se, em sua atitude, seus movimentos, sua expressão, suas ações e seus pensamentos, ele não é subitamente uma criança. Que ele ouça a voz de seu interlocutor se, no meio de uma frase, não se tornar aguda como aquela de uma criança. Que ele sonhe que respiramos, dormimos, comemos, bebemos, rimos e choramos, como sempre fizemos. Que ele pense que, com toda a nossa vontade e razão, não podemos digerir o menor pedaço de pão; que não permitimos penetrar no consciente senão uma fração miserável de tudo o que vemos e ouvimos; que mal sabemos o que nossas mãos fazem, e quase nunca, se nossa caixa torácica está cheia ou vazia; que nossos pensamentos, nossas atos e nossa linguagem repousam sobre bases que foram lançadas em nossa mais tenra infância.

Roger Lewinter

Ces considérations traitent du ça. Au lieu de la proposition « je vis », elles défendent cette idée : « je suis vécu par le ça ».

A la question : qu’est-ce que le ça, je ne puis répondre. Mais ces quelques remarques indiqueront comment il faut comprendre ce qui suit.

1. L’enfant de trois ans parle de soi à la troisième personne; il se pose à côté de soi-même et fait comme si une personnalité étrangère, vécue par quelque chose d’autre, se cachait dans sa peau. Le mot et le concept « moi », l’enfant ne les comprend que tardivement, alors qu’il réfléchit et agit raisonnablement depuis longtemps. Il ne faudrait jamais perdre de vue ce fait fondamental. Il suggère que le moi n’est qu’un mode de manifestation, une expression du ça.

2. A l’instant de sa naissance, l’enfant commence à respirer. Il agit de façon adéquate et, en s’adaptant ainsi à son nouveau milieu vital, l’atmosphère, il accomplit un acte qui dénote — dès qu’on le considère sans préjugé — autant de réflexion que, par exemple, la fuite d’un homme hors d’une maison en flammes. La question de la différence entre vie consciente et inconsciente se pose alors; et il faut se demander si tout ce que nous considérons habituellement comme la manifestation consciente de la personnalité n’est pas l’action cachée de l’inconscient, du ça, dont une des règles est la compulsion d’auto-mystification.

3. Le spermatozoïde et l’ovule humains donnent naissance à un homme, non pas à un chien ou à un oiseau; un ça est en eux, qui contraint à la formation de l’homme et construit son corps et son âme. Et le ça dote sa créature [64] — la personnalité, le moi de l’homme —, d’un nez, d’une bouche, de muscles, d’os et d’un cerveau; il rend ces organes capables de fonctionner, les exerce avant la naissance déjà, et fait accomplir à l’homme en gestation des actes adéquats avant même que son cerveau ne soit formé. Il faut se demander si le ça, capable d’aussi grandes choses, ne peut également construire des églises, composer des tragédies ou inventer des machines, et si toute manifestation de vie humaine, corporelle ou spirituelle, saine ou malade, pensée, action ou fonction végétative, ne pourrait être ramenée au ça — en sorte que le corps, l’âme et la vie consciente seraient une illusion, une auto-mystification.

Les hommes ont toujours eu l’intuition de l’existence du ça, et son exploration n’a cessé de les préoccuper, c’est ce que prouvent la philosophie et la religion aussi bien que la vie quotidienne. Avec la psychanalyse, Freud nous a donné un moyen de percevoir le mystère et de le transcrire. Je voudrais rendre ici ses idées plus familières, mais si j’échoue, je prie le lecteur de songer que ce livre n’a pas été écrit par Freud et que la psychanalyse ne saurait être rendue responsable des balbutiements d’un seul.

C’est à dessein, et non par modestie, que j’emploie ce mot de balbutiement : lorsqu’on parle du ça, on ne peut en effet que balbutier. La difficulté de se faire comprendre résulte déjà de ce qu’il faudrait bannir de ces considérations les mots corps, âme, moi, personnalité; ou du moins, leur conférer un sens nouveau, inhabituel, et c’est impossible. Au premier examen, on découvre même que toutes les définitions, tous les concepts, quand on les confronte au ça, deviennent flottants, parce qu’ils contiennent des symboles et que, par suite de la compulsion d’association, ils s’interpénétrent et forment des complexes plus ou moins bien délimités.

[...]

Cette supposition, à savoir que nous sommes vécus par un ça, détruit toute une série de concepts avec lesquels nous avons coutume de penser. J’ai déjà relevé qu’il n’existe pour le ça ni corps ni âme, car tous deux ne sont que des modes de manifestation de cet être inconnu ; que le moi, l’individualité, deviennent douteux puisque le ça peut être décelé dès la fécondation et, par-delà, dans la chaîne de tous les aïeux. Mais de la sorte s’évanouit toute limitation temporelle, la fin comme le commencement disparaissant dans la nuit des temps. Vie et mort cessent d’être des oppositions réelles pour devenir des concepts arbitraires, car nul ne peut reconnaître l’instant où le ça fait naître ou mourir. La délimitation spatiale ne joue pas pour le ça, il se répand dans ce qui l’entoure et l’on ne peut indiquer le point où un morceau de pain, une gorgée d’eau, une bouffée d’air, un objet de la vue, de l’odorat, du goût, du toucher, deviennent la propriété du ça. Les distinctions du sexe s’estompent; dans le ça humain, homme et femme sont présents depuis toujours et se mêlent à nouveau lors de la fécondation. La détermination de l’âge est impossible, car dans le ça, il y a des composantes de chaque période d’âge vécue, non pas seulement depuis la fécondation, mais depuis les tout premiers âges. Enfin, et c’est là l’essentiel, le conscient de l’homme perd sa position centrale, la cède à l’inconscient, mais sans que l’on [67] puisse trouver entre eux de ligne de démarcation précise,

Le chemin que j’ai suivi conduit évidemment à la proposition « tout est un ». Mais cela ne sert pas mon propos, et pour approcher de l’essence du ça, il me faut inventer provisoirement un ça-individu artificiel, limité dans le temps et l’espace, et sujet à la vie et à la mort, le ça d’un homme. Je me réserve le droit de rappeler de temps à autre que cette extraction hors du tout n’est imaginée qu’à certaines fins. Et je me servirai largement du fait que l’individu n’est ni homme ni femme, mais les deux; qu’il n’a pas d’âge précis, mais simultanément un, dix et trente ans; que ce qui accède au conscient dépend de l’autorisation de l’inconscient. Celui qui doute qu’il en soit du sexe, de l’âge et de la raison comme je l’ai indiqué, n’a qu’à demander à la première femme venue si elle a jamais rencontré un homme qui fût entièrement homme; ou à n’importe quel homme, s’il a trouvé un être qui fût entièrement femme.

Qu’il observe l’adulte si dans son attitude, ses mouvements, son expression, ses actes et ses pensées, il n’est pas soudain un enfant. Qu’il écoute la voix de son interlocuteur si, au beau milieu d’une phrase, elle ne devient pas aiguë comme celle d’un enfant. Qu’il songe que nous respirons, dormons, mangeons, buvons, rions et pleurons exactement comme nous l’avons toujours fait. Qu’il songe qu’avec toute notre volonté et notre raison, nous ne pouvons digérer le plus petit morceau de pain; que nous ne laissons pénétrer dans le conscient qu’une misérable fraction de tout ce que nous voyons et entendons; que nous ne savons guère ce que font nos mains, et presque jamais, si notre cage thoracique est pleine ou vide; que nos pensées, nos actes et notre langage reposent sur des bases qui ont été jetées dans notre plus tendre enfance.


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