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Flusser (D:9-11) – dúvida
sábado 4 de abril de 2020
A dúvida é um estado de espírito polivalente. Pode significar o fim de uma fé, ou pode significar o começo de uma outra. Pode ainda, se levada ao extremo, institucionalizar-se como “ceticismo”, isto é, como uma espécie de fé invertida. Em dose moderada estimula o pensamento. Em dose excessiva paralisa toda a atividade mental. A dúvida como exercício intelectual proporciona um dos poucos prazeres puros. Como experiência moral ela é uma tortura. A dúvida, aliada à curiosidade, é o berço da pesquisa, portanto de todo conhecimento sistemático. Em estado destilado mata toda curiosidade e é o fim de todo conhecimento.
O ponto de partida da dúvida é sempre uma fé. Uma fé (uma “certeza”) é o estado de espírito anterior à dúvida. Com efeito, a fé é o estado primordial do espírito. O espírito “ingênuo” e “inocente” crê. Ele tem “boa-fé”. A dúvida acaba com a ingenuidade e a inocência do espírito e, embora possa produzir uma fé nova e melhor, esta não mais será “boa”. A ingenuidade e a inocência do espírito se dissolvem no ácido corrosivo da dúvida. O clima de autenticidade se perde irrevogavelmente. O processo é irreversível. As tentativas de espíritos corroídos pela dúvida de reconquistar a autenticidade, a fé original, não passam de nostalgias frustradas. São tentativas de reconquistar o paraíso. As “certezas” originais postas em dúvida nunca mais serão certas autenticamente. A dúvida metodicamente aplicada produzirá, possivelmente, novas certezas, mais refinadas e sofisticadas, mas essas novas certezas nunca serão autênticas. Conservarão sempre a marca da dúvida que lhes serviu de parteira.
A dúvida pode ser, portanto, concebida como uma procura de certeza que começa por destruir a certeza autêntica para produzir certeza inautêntica. A dúvida é absurda. Surge, portanto, a pergunta: “Por que duvido?”. Essa pergunta é mais fundamental que a outra: “De que duvido?”. Trata-se, com efeito, do último passo do método cartesiano, a saber: trata-se de duvidar da dúvida. Trata-se, em outras palavras, de duvidar da autenticidade da dúvida em si. A pergunta: “Por que duvido?” implica outra: “Duvido mesmo?”.
Descartes , e com ele todo pensamento moderno, parece não tomar este último passo. Aceita a dúvida como indubitável. A última certeza cartesiana, incorruptível pela dúvida segundo Descartes, a saber: “Penso, portanto sou”, pode ser reformulada: “Duvido, portanto sou”. A certeza cartesiana é, portanto, autêntica, no sentido de ser ingênua e inocente. É uma fé autêntica na dúvida. Essa fé caracteriza toda a Idade Moderna, essa Idade cujos últimos instantes presenciamos.
Essa fé é responsável pelo caráter científico e desesperadamente otimista da Idade Moderna, pelo seu ceticismo inacabado, ao qual falta tomar o último passo. A fé na dúvida cabe, durante a Idade Moderna, o papel desempenhado pela fé em Deus durante a Idade Média.
[Excerto de FLUSSER , Vilém. Da dúvida. São Paulo : É Realizações, 2018, p. 9-11]
Ver online : Vilém Flusser