Página inicial > Sophia Perennis > Julius Evola > Evola Traditio

Evola Traditio

quinta-feira 28 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

JULIUS EVOLA   — O QUE É A TRADIÇÃO?

Introdução: O texto a seguir escrito por Julius Evola, compõe um capítulo de uma de suas ultimas obras “O arco e a clava” (1968). O pensador italiano procura explicar a ideia de Tradição desvinculado esta de qualquer forma de tradicionalismo. Para Evola, a Tradição possui um conteúdo meta-histórica e supra-temporal. O autor ainda analisa o chamado método tradicional e o papel das elites na transmissão do conhecimento tradicional.

 

- Introdução, notas e tradução para o português de Cesar Ranquetat Jr.

- Email: franquetat@yahoo.com.br

 

 O que é a Tradição?

 Há duas razões pelo qual hoje é oportuno precisar o conceito de Tradição em sua acepção particular, pelo qual se converteu muito corrente usar tal termo com letra maiúscula.

A primeira razão é o interesse crescente que a idéia de Tradição como ponto de referência suscitou e continua suscitando nos ambientes de cultura e contestação de direita, em especial entre os pertencentes à nova geração.

A segunda razão se refere ao fato que, ao mesmo tempo, e se pode dizer que justamente por haver se constatado tal interesse, se formularam intentos de sustentar uma interpretação caduca e tíbia do conceito de Tradição, quase para suplantar o originário e integral e substituí-lo com um conteúdo menos comprometido e mais acomodado, de modo tal de permitir a continuidade das routines de uma mentalidade em grande medida conformista. Se poderia falar, a tal respeito, usando um termo francês, de uma escamotage.

E é assim como aconteceu, por exemplo, o distanciamento de certas pessoas, que atraídas em um primeiro momento pelo conceito de Tradição, terminarão aderindo a um “tradicionalismo católico” [1]. Acerca do sentido interno de tal distanciamento são bastante significativas as palavras expressadas por um escritor expoente desta direção, em uma entrevista concedida por ele a Gianfranco de Turris. O escritor em questão reconheceu que da mesma maneira que outros de sua geração e das sucessivas, em um primeiro momento se interessou pela idéia tradicional, especialmente pelas suas aplicações políticas, mas logo distanciou-se sentindo que as coisas aconteciam como em uma “sã cura de helioterapia”, havia que “retirar-se do sol antes de ser queimado”.

Evidentemente este não é senão um modo elegante para dizer que não se suportava a força de certas idéias formuladas sem atenuações, daí então o distanciamento e a adesão ao “tradicionalismo católico”. Um caso importante é o constituído por um livro, editado por Bompinani que se intitula: “O que é a tradição?”. Aparte do fato de que não se trata de uma exposição sistemática, senão de um grupo de ensaios que muitas vezes tem pouco que ver com o tema, o autor dá novamente uma versão tíbia da Tradição, com visíveis preocupações de caráter religioso e moralizante, o alarde expressado através de citações múltiplas de uma cultura variada vale mais para confundir que para esclarecer, dada a falta de um rigoroso quadro sistemático. É bastante visível que este livro foi justamente escrito em relação ao mencionado crescente interesse pela idéia de Tradição. Há um aspecto que merece ser assinalado, o autor do livro em questão, que pretende dizer o que é ou que seria a Tradição, por certo não sonhou jamais de aproximar-se a tal ordem de idéias até não faz muito tempo quando andava junto com Moravia e com outros expoentes da intelectualidade esquerdista italiana. Ele ignora que o conceito integral de Tradição havia sido já formulado nos anos 20 por René Guénon[2] e seu grupo, e depois em nossa obra Revolta contra o mundo moderno, editada em 1934 na Itália e em 1935 na Alemanha, a primeira parte desta obra se intitula justamente “o mundo da Tradição”. O autor aludido cita apenas um par de vezes a contribuição da corrente guenoniana, entretanto ignora sistematicamente a nossa. Lamentavelmente ele dispõe de um círculo bastante vasto de leitores, pelo qual sua tíbia apresentação do que seria a Tradição resulta sumamente perniciosa.

O autor em questão se perde em uma discussão quase teológico-escolástica quando afirma que a “tradição por excelência é a transmissão do conhecimento do objeto ótimo e máximo, o conhecimento do ser perfeitíssimo”. Isto poderá valer no campo contemplativo-religioso, e só com referência ao mesmo se pode dizer que a Tradição “se concreta em um conjunto de meios: sacramentos, símbolos, ritos, definições discursivas cujo fim é o de desenvolver no homem aquela parte, faculdade, potência ou vocação, que lhe coloca em contato com o máximo do ser que lhe seja consentido, colocando-o por cima de suas constituições corpórea ou psíquica, o espírito ou intuição intelectual”. Se nestes termos é reconhecida a definição de uma hierarquia “ entre os seres relativos e históricos, fundada em seu grau de distanciamento a respeito da idéia do puro ser”, é evidente que aqui se fixa em esfera abstrata, é isso se confirma pelo fato que o autor em tela alimenta uma espécie de rechaço pelas formas de realidade política, por tanto também por tudo o que é Estado, hierarquia política e imperium, em conformidade com certas concepções espiritualistas cristãs(como aparece claro também no “tradicionalista” Leopold Ziegler). É um fato que a Tradição se manifesta em sua plena potência formativa e animadora justamente no domínio da organização político-social, para conferir a mesma um significado e uma legitimação superior. Como um exemplo importante que persistiu até a época moderna se pode indicar o Japão[3].

Podem-se distinguir dois aspectos da Tradição, um referido a metafísica da história e a uma morfologia das civilizações, o segundo a uma interpretação “esotérica”, ou seja, de acordo com a dimensão em profundidade do diferente material tradicional.

Sabe-se que o termo tradição vem do latim tradere, ou seja, transmitir. Assim o mesmo tem um conteúdo indeterminado, pelo qual se observa seu uso nos contextos mais variados e profanos. “Tradicionalismo” pode significar conformismo, e acerca disso Cherterton disse que a tradição é a “democracia dos mortos”, assim como na democracia a maioria se conforma à opinião de uma maioria de contemporâneos, do mesmo modo acontece no tradicionalismo conformista o qual segue a da maioria daqueles que viveram antes de nós. Quiçá poucos sabem que o termo Qabbalah   tem literalmente o sentido de tradição, mas aqui é em relação com a transmissão de um conhecimento metafísico e da interpretação “esotérica” da correspondente tradição, pelo qual se aproximamos acerca daquilo do que é a Tradição.

No que se refere ao domínio histórico, a Tradição vincula-se aquilo que poderia denominar-se como uma transcendência imanente. Trata-se de uma idéia recorrente de que uma força do alto atuou em uma ou outra área ou em um ou outro ciclo histórico, de modo que valores espirituais e supraindividuais constituíram o eixo e o supremo ponto de referência para a organização geral, a formação e a justificação de toda realidade e atividade subordinada e simplesmente humana. Esta força do alto é uma presença que se transmite, e esta transmissão de dita força, que se encontra por cima das meras contingências históricas, constituía justamente a Tradição. Normalmente a Tradição tomada neste sentido é levada por quem se encontra no vértice das correspondentes hierarquias, ou por uma elite, e em suas formas mais originárias e completas não há um separação entre o poder temporal e autoridade espiritual[4], sendo a segunda, em matéria de princípios, o fundamento, a legitimação e o crisma da primeira. Como exemplo característico se pode citar a concepção extremo-oriental do soberano como “terceira força entre o céu e a terra”, concepção que se reencontra na realeza nipônica cuja tradição persiste até hoje.

No aspecto aqui indicado de uma “transcendência imanente”, o tradere, a transmissão se refere não a algo abstrato e contemplativo, mas há uma energia que por ser invisível não é menos real. Aos jefes e a uma elite cabe a tarefa de transmissão dentro de determinados marcos institucionais, variáveis, mas homologáveis em sua finalidade. É bastante evidente que a mesma está mais garantida se pode ser paralela a uma continuidade de estirpe ou sangue tutelada por normas rigorosas. De fato, quando a cadeia de transmissão se interrompe, é sumamente difícil restabelece-la. Nesta perspectiva a Tradição é a antítese de tudo o que é democracia, igualitarismo, primazia da sociedade sobre o Estado, poder que vem de baixo e coisas similares.

Para o segundo aspecto da Tradição, é necessário remeter-se ao plano doutrinário, e aqui o ponto de referência e o que pode denominar-se a unidade transcendente e oculta das diferenças tradições[5]. Pode tratar-se de tradições de tipo religioso, mas também de outro gênero, tais como sapienciais ou de mistérios. Aquilo que foi chamado de “método tradicional” consiste em descobrir uma unidade ou correspondência essencial de símbolos, de formas, de mitos, de dogmas, de disciplinas, mais além das expressões múltiplas que os correspondentes conteúdos de significado podem assumir nas diferentes tradições históricas. Tal unidade pode resultar a partir de uma penetração em profundidade do diferente material tradicional: indagação -isto deve ser destacado- que deve ser distinta das investigações da denominada ciência comparada das religiões universais, a qual se atém à superfície e tem um caráter empírico e não metafísico. A faculdade requerida, é aquela que se pode denominar como “intuição intelectual ou espiritual”, intuitio intellectualis.[6] Só a possessão desta rara capacidade intelectual pode dar o sentido da medida e prevenir o que se poderia denominar a “superstição da Tradição”. Com efeito, há pessoas que se entregam a fantasia e que descobrem em tudo conteúdos tradicionais, ainda quando os mesmos são imaginários ou se trata de contextos espúrios e primitivos. É o análogo do chamado “delírio interpretativo” dos freudianos, os quais querem ver em tudo a ação dos complexos sexuais.

A origem das formas tradicionais é um problema complexo. No que diz respeito ao primeiro dos aspectos aqui aludido, ou seja, o aspecto histórico é muitas vezes formulado a idéia de uma tradição primordial, da qual derivou as sucessivas e particulares tradições. Mas se permanecemos no plano histórico, este conceito deve ser articulado. A hipótese de uma tradição primordial hiperbórea e nórdico-ocidental no que se refere ao grupo de civilizações tradicionais da área indo-européia, não se pode fazer demasiado uso no que concerne, por exemplo, as formas tradicionais extremo-orientais, as quais devem remeter-se a um diferente tronco de origem. Mas aqui pode impor-se o ponto de vista a seguir para o segundo aspecto do problema, que é a explicação de concordâncias e de correspondências essenciais de conteúdos tradicionais. É simplista e em parte supersticiosa a idéia de personagens “iniciados” e similares, que nos vários casos operaram conscientemente na origem de toda tradição. Ainda se a idéia quiçá não pode ser aceita por todos sem dificuldade, igualmente muitas vezes se deve pensar em influências[7] por assim dizer, que intervém na história e nos desenvolvimentos das tradições por detrás dos bastidores, sem que os representantes das mesmas se dêem conta.

Há casos também de um “voltar a brotar” de uma única influência com notáveis distâncias de espaço e tempo, por tanto, sem uma transmissão materialmente relevante, quase como um redemoinho que desaparece em um determinado ponto da corrente de um rio para voltar a formar-se em outro ponto. É o que se deve pensar em muitos casos de correspondências tradicionais, em elementos particulares, mas também nas estruturas de conjunto de determinadas civilizações, as linhas de vinculação com a superfície são inexistentes, algo imponderável entra em jogo servindo-se ao máximo de elementos de sustentação. Por exemplo, a gênese da antiga romanidade, em tudo aquilo onde esta reproduz formas variadas da tradição primordial indo-européia, pode ser visto sob este aspecto. Enfim, se deve considerar o caso de que a influência em questão atue sucessivamente, ou seja, no desenvolvimento posterior como tradição de uma matéria originária, transformado-a, enriquecendo-a e também a retificando. Em certa medida, isto parece ter acontecido na formação da tradição católica a partir da matéria proporcionada pelo cristianismo primitivo.

A introdução da idéia de tradição vale para libertar toda tradição particular de seu isolamento, remetendo o princípio gerador da mesma e de seus conteúdos essenciais a um contexto mais vasto, em termos que são de uma efetiva integração. Para desdenhá-la se encontram tão só eventuais pretensões de exclusivismo sectário[8] e de privilégio. Reconhecemos que isto pode molestar e criar certa desorientação em quem se sentia muito seguro em uma determinada área restringida. Entretanto, para outros a concepção tradicional abrirá horizontes, infundindo uma superior segurança, com a condição de não confundir o jogo, como no caso daqueles “tradicionalistas” que colocaram a mão na Tradição só por uma espécie de condimento para a própria tradição particular reafirmada em todas suas limitações e em todo seu exclusivismo.

 

Julius Evola(1968). O arco e a clava.

 



[1] Para Evola a idéia de Tradição é algo mais vasto e universal que o catolicismo. Em sua obra “Os homens e as ruínas” afirma: “Deve, pois permanecer firma a idéia de que ser tradicional e ser católico não é a mesma coisa. Não só isto, por mais que possa parecer paradoxal a alguns, quem é tradicional sendo só católico em sentido corrente e confessional, não é tradicional senão pela metade do caminho. Repetimos: o verdadeiro espírito tradicional é uma categoria muito mais vasta que todo que é simplesmente católico.”

[2] Para Guénon, tudo o que é de ordem tradicional tem um relação com algo que é de origem supra-humana. A Tradição possui uma origem divina é não se confunde com mero costume ou hábito.

[3] Para o pensador italiano o Japão era até 2ª grande guerra um exemplo claro de harmonia entre desenvolvimento técnico e manutenção do espírito tradicional.

[4] Segundo Evola, em tempos primordiais, na “Idade de Ouro” não havia a distinção entre poder temporal e autoridade espiritual. O detentor do poder político eram também uma autoridade espiritual, a figura da realeza sacerdotal exprime esta idéia.

[5] Conceito criado por Frithjof Schuon  .

[6] Termo usado pela escolástica medieval. A intuição intelectual não se confunde com a intuição sensível e com a razão.

[7] Esta idéia de Evola concorda com sua concepção tridimensional da história. Para este autor além das dimensões de superfície, que compreendem as causas, os fatos e os dirigentes visíveis o devir histórico possui também uma dimensão profunda, subterrânea em que agem forças e influências decisivas de origem não humana e que atuam de forma sutil.

[8] Característico de todas as formas de tradicionalismos e fundamentalismos.