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Evola Ilusão

quinta-feira 28 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

DOUTRINA DO DESPERTAR — A CONSCIÊNCIA SAMSARICA

ILUSÃO

Já indicamos que as duas primeiras verdades dos árias, se referindo especialmente à doutrina da sede e do fogo, podem não resultar diretamente evidentes ao homem moderno. Este não pode compreendê-las plenamente senão em momentos críticos especiais, porque a vida que conduz habitualmente é como exterior a ela mesma, semi-sonâmbula, se movendo entre reflexos psicológicos e imagens que lhe ocultam a substância mais profunda e mais assustadora da existência. É somente em circunstâncias dadas que se se rasga o véu de uma ilusão, no fundo, providencial. Por exemplo, já em todos os momentos de um perigo sofrido: quando se está no ponto de ser atropelado por um carro, ou quando se perde o chão, após a abertura de um abismo, aquele que se aventura em uma geleira, ou quando se toca desavisadamente um carvão ardente ou um objeto eletrizado, se manifesta então uma reação instantânea que não procede, nem da «vontade», nem da consciência, nem do «Eu», este não surgindo senão depois, do gesto cumprido, tendo sido suplantado a este momento por algo de mais profundo, de mais rápido e de mais absoluto. Na fome, no pânico, na concupiscência sexual, no espasmo, no terror, se manifesta de novo a mesma força — e quem sabe apreendê-la diretamente nestes momentos se cria, ao mesmo tempo, a faculdade de percebê-la gradualmente também, como o substrato invisível de toda a vida no estado de vigília. As raízes subterrâneas das inclinações, dos dogmas, dos atavismos, das convicções invencíveis e irracionais, os instintos, dos hábitos, o caráter, tudo o que vive enquanto animalidade, enquanto raça biológica, toda a vontade do corpo — tudo isto reconduz ao mesmo princípio. Em face dele, a «vontade do Eu» tem, frequentemente, uma liberdade semelhante àquela de um cão preso a uma corrente bem longa, à qual não se faz sentir senão no momento onde se encontra ultrapassado um certo limite. Se se vai contra a força profunda não tarda a se despertar, para suplantar o «Eu», ou para manipulá-la, em lhe fazendo crer de querer isso que ao contrário ela, força, quer. A força selvagem da imaginação e da sugestão reconduz ao mesmo ponto: aquele que, segundo a lei, dita da «conservação do esforço», se faz tanto mais forte quanto se «quer», tanto mais contra ela — como no sono que foge tanto mais se «queira» dormir, ou como na sugestão de cair em andando ao longo de um abismo, à qual conduz certamente o maior número a cair, se se «quer» contra ela.

Uma tal força, que logo se confunde com aquela dos poderes emotivos e irracionais, se identifica por graus com a força mesma que rege as funções profundas da vida física, sobre as quais não podem, senão pouco, a «vontade», o «pensamento», o «Eu», que lhes são exteriores e, semelhantes a parasitas, vivem, porque retiram as linfas essenciais, mas sem poder descer nelas, até no tronco profundo. É assim que é preciso vir a se demandar algo, deste corpo «meu», eu posso justificar com «minha» vontade, se, «eu», quero «minha» respiração ou o fogo das misturas em quem queima o alimento, ou minha forma, minha carne, meu ser de homem, assim determinado, e não de outro modo. E quem se interroga nestes termos, não poderia ir talvez ainda mais além e se demandar se esta mesma vontade «minha», esta mesma consciência «minha», este «eu», que está em mim — eu os quero ou, simplesmente, os sou?

Veremos que a «doutrina do despertar» acaba precisamente por colocar problemas deste gênero. E quem é bastante forte para se avançar em um tal sentido, além da ilusão, não pode não chegar a esta desconcertante constatação: «Tu, tu não és vida em ti. Tu, tu não existes. "Meu", não podes dizer de nada. A vida, tu não a possuis — é ela quem te possui. Tu a sofres. E é quimera crer que este fantasma de ’Eu’ possa subsistir imortal à dissolução do corpo, aí onde tudo te diz que a correlação com este corpo lhe é essencial e que ter uma doença, um choque traumático, um acidente qualquer, tem uma influência precisa sobre todas suas faculdades, por ’espirituais’ e ’superiores’ que sejam».

Há aquele que, em certos momentos, é dotado da possibilidade de se separar de si, de descer além do limiar, sempre mais baixo nas obscuras profundezas da força que mantém em pé seu corpo, logo aí onde esta força perde denominação e individualização. É então que se tem a sensação de uma tal força que se estende, até retomar o «eu» e o «não-eu»; a penetrar toda a natureza; a sustentar o tempo; a transportar miríades de seres, como se estivessem ébrios ou alucinados; se reafirmando sob mil formas; irresistível, selvagem, jamais esgotada; privada de pausa; privada de limite; queimada por uma insuficiência e uma privação eterna. Que alcança a esta percepção assustadora, semelhante àquela de um precipício que se abriria ao improviso, apreende o mistério do samsara, e compreende, vive plenamente o sentido da doutrina budista da anatta, reportada ao homem, quer dizer da doutrina negando a existência do «eu». A passagem, da consciência puramente individual à consciência samsarica, que retoma infinitas possibilidades de existência, «inferiores» tanto quanto celestes — isto, no fundo, é o pivô de toda a «doutrina do despertar». Não se trata mais, aqui, de uma «filosofia», mas de uma experiência, a qual, para corresponder à realidade, não é da única pertinência do budismo. Dela, traços e ecos se encontram igualmente em outras tradições, no Oriente como no Ocidente: no Ocidente, essencialmente segundo os termos de um saber secreto e de uma experiência iniciática. A teoria da dor universal, da vida enquanto sofrimento, não representa, a este respeito, senão algo de puramente exterior e, como foi dito, de profano e de exotérico. E não pode concernir senão formas de uma exposição popular.

Do ponto de vista da mentalidade ocidental, enquanto orientação geral, convém, consequentemente, distinguir duas formas (ou graus) de existência e de consciência samsaricaa: uma, verdadeiramente samsarica; a outra, limitada ao espaço e ao tempo de uma só e única existência individual. A consciência, geralmente própria ao Ocidente moderno, é esta segunda, que, todavia, não representa senão uma parte, a seção de uma consciência ou de uma existência samsarica, não somente errante através dos tempos, mas também capaz, como acabamos de dizer, de compreender estados livres vis-a-vis da lei temporal, conhecida de nós. No mundo oriental antigo, subsistia ainda, e em uma grande medida, esta mais ampla consciência samsarica. A via ascética-iniciática considerava, como primeira fase e premissa, a passagem da consciência comum, ligada a uma só e única via e definida pela ilusão do «Eu» individual, à consciência verdadeiramente samsarica, à qual corresponde também a noção do Santana, do «eu» enquanto fluxo, corrente ou série indefinida de estados não substanciais, determinados por dukkha. É somente depois disto que se abre a possibilidade da passagem a isto que é verdadeiramente incondicionada e extra-samsarica. Mas, como vamos ver a respeito das vocações, é muito raro, no Ocidente, que não se tome o celeste e divino pelo que corresponde somente a estados superiores de uma existência, restando, ainda e sempre, samsarica.