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Bréhier (HP1) – 22. As Leis

quinta-feira 24 de março de 2022, por Cardoso de Castro

  

Sucupira Filho

O sentimento de relatividade e de instabilidade das coisas humanas é particularmente vivo nas Leis, obra inconclusa da velhice de Platão  . Está repleta de prescrições pormenorizadas que denotam a intenção muito clara de realizar uma reforma, talvez nas cidades sicilianas, que iriam ser restauradas após a morte de Dionísio. O problema das Leis é, como o do Timeu  , um problema de mistos. Procuram-se, no caso, as proporções que deem à sociedade a maior estabilidade política similar às que davam ao cosmos duração imperecedoura. Para Platão, o estável e o perfeito é todo uno: “Interessa, antes de tudo, que as leis sejam estáveis” (797 a). Tudo, incluindo os brinquedos infantis, deve permanecer idêntico, de uma a outra geração. Qualquer mudança significa perturbação, quer se trate de um organismo ou de uma cidade. As leis não são objeto de verdadeiro respeito, a não ser que falte a memória de um tempo em que as coisas tivessem sido diferentes do que são agora; “e o legislador deve imaginar todos os meios para realizar esse estado de coisas na cidade”.

Alguns desses meios escapam a sua vontade, e são os que derivam da natureza. Um meio propício à manifestação do caráter seria uma região suficientemente isolada do mar e das outras cidades, para que não tenha ocasião de ser contaminada pelo comércio e pela influência dos demais. Essas seriam as oportunidades favoráveis, que não se devem senão aos deuses. Em compensação, o legislador pode limitar o número de cidadãos, escolhendo um número bastante diminuto e de qualidade tal que se multiplique no maior número possível.

Mas, sobretudo, ele é o orientador do misto que produzirá a constituição mais estável (691 c sq.). A história mostra-nos o exemplo de uma constituição que resistiu ao tempo: a de Esparta, que soube observar normas de moderação e se poupou de excessos. Os poderes de dois reis são, mutuamente, contrabalançados e se limitam com o do senado, onde o poder moderador dos anciãos se alia à força ardente da juventude; é limitado, igualmente, pelo poder dos éforos. “Dessa maneira, a realeza, incorporada a outros elementos e deles recebendo a correlata medida, conservou-se a si mesma e conservou o resto.” Ao contrário, a história revela a decadência da constituição persa, realeza liberal que se converte em tirania, e a da constituição democrática de Atenas, em que a liberdade conduz a uma anarquia sem peias. Há, portanto, duas constituições antitéticas: despotismo e democracia, “mãe de todos os outros”. Isoladas, ambas são más, mas o misto bem proporcionado produz a boa constituição (693 d).

Que é que impede a decadência (porque sempre, e aqui também, se trata da questão do freio que detém, e não de progresso positivo)? O impedimento virá da confluência harmônica entre a sensibilidade e a inteligência (689 a). A causa da decadência é o conceito de que é agradável o que se julga mau e injusto, e laborioso o que se julga justo. Em virtude dessa disposição de espírito, que é a pior das ignorâncias, a cidade não é, como deveria ser, “amiga de si mesma” (701 d).

Platão dá-se conta de que não basta a pura inteligência; é necessário, ainda, disposição livre e voluntária. O legislador deve, pois, obter o assentimento, não pela violência, mas pela persuasão (887 a sq.). Daí, o uso de prólogos que explicam os motivos de obediência às leis (719 c- 723 b). Essa exposição de motivos, que é também uma prédica moral, constituía uma inovação legislativa.

Os resultados dessa forma de assegurar a estabilidade social mediante a fé arraigada nos espíritos, são particularmente claros no livro X, concernentes às crenças religiosas. A impiedade é ali tratada, sobretudo, como perigo social. O ateísmo, combatido por Platão, é o dos sofistas, que consideravam os deuses invenções humanas (891 b-899 d). Os negadores da providência, que ele refuta, não são os teóricos, mas pessoas que dão livre curso a suas paixões, porque não acreditam que a justiça divina intervenha nos assuntos humanos (899 d - 905 d). Finalmente, a crença errônea de que se possa seduzir Deus, por meio de preces, se relaciona a toda uma série de práticas culturais e rituais que implicam associações privadas, danosas para a vida social (905 d -907 b).1 Mas, se é preciso, em primeiro lugar, prevenir a impiedade por mediação de argumentos racionais, como se verifica em Platão, também se faz imperioso prever penalidades severas para os que não querem se convencer. Segundo os casos, a prisão temporária ou a prisão perpétua afastam da cidade esses perigosos ímpios (908 a sq.).

A última palavra de Platão, como político, exprime a serenidade contemplativa do sábio que percebe as forças abscônditas que levam os homens a agir. “As coisas humanas não devem ser tomadas muito a sério... O homem é um entretenimento de Deus, um mecanismo para ele” (803 b). O legislador é, em primeiro lugar, aquele que conhece esse mecanismo e sabe conduzir os homens.


Ver online : Émile Bréhier