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Bréhier (HP1) – 18. Natureza e Sociedade

quinta-feira 24 de março de 2022, por Cardoso de Castro

  

tradução

A esta altura, apresenta-se a Platão   um problema grave. As necessidades da sociedade ideal devem contar com a natureza. Com efeito, o exercício de cada função social supõe, não somente uma educação adquirida, mas ainda, aptidões naturais. O amor do lucro, no artesão; a paixão generosa, necessária ao soldado; a prudência e a reflexão, no guardião da cidade, têm por base um caráter inato que nenhuma forma social poderia criar (455 b). E há mais: as diversas proporções em que os caracteres existem dependem da natureza do meio geográfico. “Uma região, dirá ele, ao fim de sua vida, não é, propriamente, igual a uma outra para tornar os homens melhores ou piores.” (Leis, 747 d) O estudo dos números, que, em alguns, leva até a filosofia e a dialética, produzirá entre egípcios e fenícios ou outros povos a fraude e não a ciência.

A essa natureza, Platão atribui extrema importância, especialmente quando fala dos verdadeiros dirigentes da cidade, os filósofos. Não deixa de recomendar a escolha, segundo as aptidões naturais, dos que serão capazes de receber o ensino da dialética; e faz uma lista detalhada de qualidades inatas indispensáveis: amor à verdade e facilidade de aprendizagem; escassez de desejos que se oponham ao conhecimento; nobreza de espírito e coragem; e, finalmente, uma memória precisa e ampla (República  , 490 c). A reunião de tais qualidades é muito difícil, dado que há quase incompatibilidade entre as qualidades exigidas, notadamente, entre a sutileza de um espírito continuamente ativo e a gravidade calma; entre a inércia do homem descuidado de perigos e a atenção aguda dos que percebem perigosa a nobreza dum velho ateniense e a sutileza de um sofista  , eis o que deve reunir a natureza filosófica.

Ora, entre as exigências da sociedade ideal e a que lhe fornece a natureza, não há, necessariamente, harmonia; existe sempre uma parte da realidade que escapa à arte humana. Não há pensador que tenha levado isso com mais consciência do que Platão. Para explicar esse último dado, a realidade dos caracteres que escapa à razão, e que, entretanto, modela em cada um de nós o nosso destino, Platão apela para um modo de explicação, em si mesmo irracional, que é o mito da eleição das vidas. Após a vida terrenal, as almas sofrem castigos ou recebem recompensas, segundo a justiça com que agiram, e, depois, voltam a reunir-se para escolher nova vida: tal escolha é plenamente voluntária, e os deuses nunca são responsáveis; mas, uma vez isso feito, é sancionada pela necessidade, e pelas Moiras, e a alma jamais escapará a seu destino. Antes de renascer, passa nas águas do Letes, que apaga toda a lembrança de sua eleição; depois, a nova vida se desenrola conforme ao que desejou. Vê-se, pelo lugar que esse mito ocupa, ao fim da República (617 d- 621 b), que contrasta com a anterior preocupação política, embora só se refira ao destino individual. Há, até certo ponto, conflito entre a explicação mítica, que atribui nossa sorte a uma escolha voluntária, e a explicação naturalista, que dá conta do caráter dos homens pelo meio geográfico. E, provavelmente, para unir os dois, Platão, na última forma que deu ao mito, faz apelo à ação da providência e da Diké universal, que organiza o mundo de maneira a que cada um seja, espontaneamente, atraído para o lugar aonde merece ir (Leis. X, 903 d; 905 b). Sua intenção, nem por isso é menos clara: apresentar o caráter como derradeiro elemento.

Doutra parte, a fixidez dos caracteres é, em certa medida, uma garantia de fixidez social e, consequentemente, de justiça. Do mesmo modo, a arte social, se não pode produzir os caracteres, a seu talante, deve, pelo menos, impedir que se alterem de geração em geração. A fim de propiciar um ponto de apoio ao legislador, Platão introduz, além das explicações mítica e naturalista, uma explicação por herança, incompatível com as duas primeiras. Se a explicação é verdadeira, os dirigentes da cidade podem, regulamentando, habilmente, os casamentos, chegar a manter em estado de pureza os caracteres adequados a cada classe social, como os criadores sabem manter as raças puras (República, 459 b; 460 de). A negligência na aplicação exata do regulamento das uniões acarretará, com a decadência da aristocracia filosófica, a de toda a cidade (546 c). Nenhum meio humano surge para restabelecer o estado primitivo. Em Platão, as leis não criam, apenas conservam. Para retornar ao ponto de partida, ele não conta senão com o ciclo que rege a mudança, que consiste num devenir oscilatório, em que cada fase repete, ao revés, a precedente (Mito do Político. 269 a sq).

Original

Ici se présente à Platon une question redoutable. Les besoins de la société idéale doivent compter avec la nature. En effet, l’exercice de chaque fonction sociale suppose non seulement une éducation acquise, mais encore des aptitudes naturelles. L’amour du gain chez l’artisan, la passion généreuse nécessaire chez le soldat, la prudence et la réflexion chez le gardien de la cité ont pour fond un caractère inné qu’aucune forme sociale ne pourrait produire (455b). Il y a plus : les proportions diverses dans lesquelles ces caractères existent, dépendent de la nature du milieu géographique. « Une région, dira t il à la fin de sa vie, n’est pas propre à l’égal d’une autre à rendre les hommes meilleurs ou pires » . L’étude des nombres qui, chez certains, mène jusqu’à la philosophie et à la dialectique, produira, chez les Égyptiens, les Phéniciens et chez tant d’autres peuples, la fourberie et non la science.

Cette nature, Platon y attache une importance extrême : en particulier, lorsqu’il vient à parler des véritables chefs de la cité, des philosophes, il ne se lasse pas de recommander de choisir, selon leurs aptitudes naturelles, ceux qui seront capables de recevoir l’enseignement de la dialectique ; et il fait une liste très détaillée des qualités innées indispensables : amour de la vérité et facilité à apprendre, faiblesse des désirs qui s’opposent à la connaissance, noblesse d’âme et courage, enfin, une mémoire précise et étendue : la réunion de ces qualités est très rare, puisqu’il y a presque incompatibilité entre les qualités qu’on leur demande, notamment entre la subtilité d’un esprit sans cesse actif et la gravité calme, entre l’inertie de l’homme insouciant des périls et le regard aigu qui les pénètre : la noblesse d’un vieil Athénien et la subtilité d’un sophiste, voilà ce que doit réunir la nature philosophique.

Or, entre les exigences de la société idéale et ce que lui fournit la nature, il n’y a pas nécessairement harmonie. Il y a là tout un côté de la réalité qui échappe aux prises de l’art humain ; il n’est pas de penseur qui en ait tenu plus grand compte que Platon. Pour expliquer ce donné ultime, cette réalité des caractères, qui résiste à la raison, et qui pourtant nous fixe à chacun notre destinée, il a fait appel à un mode d’explication qui est lui-même irrationnel ; au mythe du choix des vies. Après cette vie, les âmes subissent des châtiments ou profitent de récompenses, selon la justice dont elles ont fait preuve ; puis elles se réunissent pour choisir une nouvelle vie : ce choix est pleinement volontaire, et les dieux n’en sont nullement responsables ; mais, une fois fait, il est sanctionné par la nécessité et les Moires, et l’âme n’échappera plus à son sort ; elle passe avant de renaître dans l’eau du Léthé qui lui enlève tout souvenir de son choix ; puis sa nouvelle vie se déroule conformément à ce qu’elle a voulu. On voit, par la place qu’il occupe à la fin de la République (617d-622b), quelle préoccupation politique trahit ce mythe, bien qu’il n’y soit question que de la destinée individuelle. Il y a, jusqu’à un certain point, conflit entre l’explication mythique qui attribue notre sort à un choix volontaire, et l’explication naturaliste qui rend compte du caractère des hommes par le milieu géographique ; et peut-être est ce pour unir l’une et l’autre que Platon, dans la dernière forme qu’il ait donnée au mythe, fait appel à l’action de la providence et de la Diké universelle qui organise le monde de manière que chaque âme soit spontanément attirée vers le lieu où elle mérite d’aller. Son intention n’en reste pas moins nette : c’est de poser le caractère comme une donnée ultime.

D’autre part, la fixité des caractères est, en une certaine mesure, un garant de fixité sociale, et par conséquent de justice. Aussi l’art social, s’il ne peut les produire à sa guise, doit au moins les empêcher de s’altérer de génération en génération. Ici, et pour donner une certaine prise au législateur, Platon introduit, outre les explications mythique et naturaliste, une explication par l’hérédité, incompatible avec les deux premières ; si l’explication est vraie, les chefs de la cité peuvent, en réglementant habilement les mariages, arriver à maintenir à l’état de pureté les caractères convenables à chaque classe sociale, comme les éleveurs savent maintenir les races pures (République, 459b ; 460de). Et c’est la négligence dans l’application exacte du règlement des unions qui amènera avec la décadence de l’aristocratie philosophique, celle de la cité tout entière (546c). Aucun moyen humain, il faut y insister, n’est donné pour rétablir l’état primitif ; chez Platon, les lois ne créent pas ; elles conservent. Il ne compte, pour revenir au point de départ, que sur le cycle qui gouverne le changement, et qui est celui d’un devenir circulaire dont les phases se répètent.


Ver online : Émile Bréhier