Essa doutrina que lhe proponho, caro amigo, da Consciência como o Ser do Ser, da Existência como o que está fora do Ser, resultado da Identificação ou Inconsciência, da Intemporalidade (Instantaneidade) da Aparência, da Temporalidade e Virtualidade de toda realidade, é apenas pensamento, ou seja, uma tosca articulação metafísica de uma visão de mundo. Parafraseando o poeta, já haveria metafísica bastante em não pensar em nada. Não há um Ser que muda, pois a Consciência é imutável: o que muda é uma projeção da experiência, que, originalmente, no plano da sua própria espontaneidade, é instantânea e, portanto, intemporal, num eterno agora. O mundo é um jogo de luz — clareza e obscuridade —, consciência e inconsciência, transparência e opacidade, Realidade e Aparência. Veja o leitor que, com esta última frase, pus o mundo em primeiro lugar. Não estou em busca de “fundamentos” — para brincar ainda uma vez com as palavras, não lhe proponho uma ontologia “fundamentalista”. O que vem antes, o Mundo ou a Consciência? Esta última ou a Inconsciência? A transparência ou a obscuridade? Ali onde está “a metafísica bastante”, ali onde não se “passa”, mas se compreende, essas perguntas parecem pueris. A consciência que o leitor tem, agora, deste livro que lê é, eu insisto, uma “forma de inconsciência”. Mas não briguemos por palavras. Sei que ao leitor parece que ele tem consciência do que lê, como a mim parece que tenho consciência do que escrevo. Acontece, por impróprio ou impertinente que seja, que não estou a defender teses, mas a lhe propor que compartilhemos de experiências. E a experiência, aqui, é compreender, por exemplo, a Aparência, o que é para alguma coisa ser uma Aparência, ou o que é para nós “pensarmos” que estamos acordados, conscientes. Nada pode justificar minhas teses, minha “doutrina”, senão a experiência de despertar, análoga àquela que temos ao acordar de manhã e nos lembrarmos do que sonhamos. Mas se apenas isto, e só isto, poderia “justificar” minhas teses, então, não só não estou a argumentar, mas também não seria preciso que estivesse.
Digo-lhe que o Ser é parecido com o que pensou Parmênides, embora lhe tenha dito que é a consciência que é imutável, translúcida, imperdível e indestrutível. A diferença, se há alguma, estaria em que o Ser de Parmênides pode ser objeto de um certo silêncio, que a Ele se refere, ao passo que estou apontando para a experiência com inúmeras palavras. Inefável por inefável, Parmênides também falou de uma esfera, assim como eu falo de Luz, Clareza e Obscuridade. E eu concordaria com ele, quando disse que, quando falamos do Ser, não somos jamais “nós” que falamos, mas “outra coisa” (ele se referia a uma “Deusa”). É preciso que morramos para o “eu”, ou seja, que o compreendamos, para que possamos falar do Ser; mas, então, o que dissermos, se for a Verdade, não teremos sido nós que o dissemos.
Digo-lhe, sobretudo, que não é da natureza da consciência, enquanto tal, o refletir-se a si mesma, o especular-se, o ser uma consciência de si, ou um “para-si”. Que ela jamais possa ocupar o polo noemático, não significa que ela possa ocupar o polo noético. Essas coisas, que para muitos constituem a “intencionalidade”, não se originam na consciência, pois a consciência não é uma “direcionalidade”, um “voltar-se para fora de si”, um “ser de alguma coisa”, um “ser sobre alguma coisa”. Não é nem que ela jamais “saia de si”, de modo que não haveria porque “voltar a si”: é que o “Si” lhe é estranho. Com isso eu quero lhe dizer, caro amigo, que o “eu” é estranho à consciência. Não há “eu” sem inconsciência. Mas tampouco pode-se contrapor algo à consciência, como, por exemplo, a Existência. O dasein não está aí. Está lá, fora do Ser, e por ser o “objeto” de uma identificação de objetos-instantâneos, não pode sequer ser “objeto” intencional. Um ente é algo tão rico em qualidades, que jamais poderia ser “recolhido” num noema: eis porque Husserl teve que complicar proibitivamente a noção de noema, como um Ptolomeu a traçar epiciclos, para fazê-lo acomodar as potencialidades da existência. Intencionalidade, para ele, há de exigir tempo: algo há de ter duração; e há de exigir espaço: algo tem que estar num “aqui” não fenomênico para que algo surja “lá”, ainda que seja uma intensionalidade (Sinn).
Ora, “aqui” é o ponto cego, pois não é fenômeno; mas é por onde passa a Luz, ou seja, a consciência. A consciência, portanto, não se confunde com o pólo noético da intencionalidade. Ao contrário, a noesis é que é Identificação Primária, por onde passa a Luz. Mas se ali, por onde passa a luz, houver um “eu” (Identificação Secundária), sobretudo um “eu” cartesiano, ou neo-cartesiano (transcendental), a cegueira da identificação faz com que haja um efeito puramente ilusório, pelo qual a vidraça como que se desloca para o lado da inconsciência, da opacidade, da Aparência, do objeto. Na medida em que o ponto é cego, e se instala em círculos de tamanhos variados, o que aparece do lado do objeto é a projeção do que o círculo restringe. Essa luz transformada em foco, ou seja, canalizada pela cegueira do círculo, faz surgir do lado do objeto nossa forma de inconsciência, ou as formas do nosso inconsciente. A luz passa o tempo todo, de cima a baixo, desde a vidraça transparente (estrutura da Identificação Primária), através do Ponto Cego, até o “eu” da iteração indexical (subestruturas da Identificação Secundária). Onde está o obscurecimento? Vê o leitor que ele se limita ao que é projetado pela restrição circular da luz, por onde surgem os “mundos”, a partir dos pontos de vista. Neles, por pura ilusão, a luz é refletida pela vidraça deslocada, como se esta estivesse coberta de pó. Não há, pois, diferença alguma entre a consciência ordinária, do homem comum, e a Sabedoria, o que é a mensagem central do Zen. A diferença é ilusória, e aqui o Zen se separa do fenomenólogo. Pois nada se poderia compreender a respeito dessa ilusão visando o que aparece. De nada adiantaria fazer a fenomenologia completa de todo o mundo da vida, pois este é a vidraça empoeirada fora de lugar.
De modo que todas as identificações não compreendidas, qual vidraças mal lavadas, têm a forma da inconsciência, ou seja, têm o nosso rosto. Esse nosso rosto, o rosto do ser humano, o rosto da “humanidade”, não é para ser preservado, não é para sofrer cirurgia plástica, não é para ser maquiado. É para ser compreendido e superado. A máscara tem que cair — por si, pois não há ninguém aqui, ou aí, para ser o Autor de tal proeza —, tem que cair por si, pois a bravata de retirá-la à força só conseguiria arrancar-nos os olhos da cara e cegar-nos ainda mais. Não nos comprazamos com o “humano, demasiadamente humano”. É só quando não tivermos nada mais a perder, ou a ganhar, que cai a máscara. Mas é uma suprema estupidez antegozar, supor que “eu” estarei lá, compreendendo. É o que Parmênides deve ter querido dizer. Digo eu: onde morre a persona, ou seja, onde se morre para a persona, pode haver um “indivíduo”, totalidade “indivisa”. Eis a morte de que Sócrates falava, e eis a Sabedoria de que a Filosofia deveria falar.
Não importa então, caro amigo que sejamos “desconhecidos”, pois é da natureza da máscara ocupar o nosso lugar. Conhecendo-nos a nós mesmos, não precisaremos de “apresentações”. Conhecendo-nos a nós mesmos, não precisaremos nos identificar, pois nos conheceremos a todos na consciência: só haverá individualidades, por onde passa a luz.