Os gregos chamavam a tortura de ἀυάγκαι. ἀναγαῖος, que significa “necessário” ou “indispensável”. A tortura era percebida e tida como um destino ou uma lei da natureza (ἀυάγκη). Aqui temos diante de nós uma sociedade que sanciona a violência psíquica como meio para um fim. É uma sociedade do sangue, que deve ser distinguida da sociedade moderna, isto é, da sociedade da alma. Naquele tipo de violência os conflitos eram eliminados pelo emprego da força (Gewalt), isto é, de chofre. Ali, a violência exterior alivia a alma, pois ela externaliza o sofrimento. A alma não se afunda em um diálogo atormentador consigo mesma. Na Modernidade, a violência assume uma forma tornada psíquica, psicologizada, internalizada; ela adota formas intrapsíquicas. As energias não são descarregadas de modo diretamente afetivo, mas são pro-cessadas, trabalhadas psiquicamente.
[…]Na era Pré-moderna a violência estava presente por todo lado e podia ser vista no universo cotidiano; era uma parte constitutiva essencial da práxis e da comunicação social. Por isso, não era somente exercida, mas também focalizada e exposta. O governante manifestava seu poder (Macht) por meio da violência mortífera, do sangue. O teatro da crueldade que ocorria nas praças públicas encenava seu poder e seu domínio. A violência e sua encenação teatral, portanto, eram parte essencial do exercício do poder (Macht) e do domínio.
[…]Na Idade Moderna é cada vez mais comum que a violência da força bruta vá perdendo legitimidade não só no cenário político, mas também em quase todos os níveis da sociedade. É como se ela fosse sendo desprovida de todo e qualquer palco. As execuções acontecem em espaços aos quais o público em geral não tem acesso; a violência do homicídio já não é colocada sob visibilidade. Como expressão dessa mudança topológica também podemos citar os campos de concentração, que já não são palco que encena a violência homicida, localizada principalmente nas periferias. O palco da violência de sangue, que marca a sociedade da soberania, dá lugar à câmara de gás exangue, sem despertar a atenção do público em geral. Em vez de uma encenação ostentatória a violência se esconde envergonhada. É bem verdade que continua a ser exercida, mas é retirada da encenação pública. Não chama atenção sobre si mesma; falta-lhe qualquer tipo de linguagem e simbologia. Ela não anuncia nada; realiza-se como uma aniquilação sem linguagem, muda. O muçulmano é uma vítima da violência, que já está se tornando envergonhado, pois é visto como criminoso, e se renega. Depois de sua deslegitimação, a violência homicida do soberano abandonou o espaço público como seu lugar. O campo de concentração é um não lugar (Ab-ort). Nisso ele se distingue do presídio, que continua sendo um lugar.
O fim da sociedade pré-moderna da soberania como sociedade do sangue submeteu a violência a uma mudança topológica. Ela já não é uma parcela de comunicação política e social, mas retira-se para espaços subcomunicativos, subcutâneos, capilares, intrapsíquicos. Desloca-se do visível para o invisível, do direto para o discreto, do físico para o psíquico, do marcial para o medial e do frontal para o viral. Não se dá confrontação, mas contaminação; não se dá ataque aberto, mas infecção oculta. Esses são seus modos de atuação, e essa modificação estrutural da violência é que domina cada vez mais sua ocorrência. Também o terrorismo compõe suas forças destrutivas não de modo frontal, mas disseminando-se como um vírus, para operar de forma invisível. Também a ciberguerra, a forma de guerra típica do século XXI, opera de forma viral. A viralidade subtrai a violência de toda e qualquer visibilidade e publicidade, sendo que o próprio agressor se torna invisível. Os vírus digitais, que preferem infectar a atacar, dificilmente deixam rastros que possam levar aos seus propagadores. Mesmo assim, essa violência viral é uma violência da negatividade. Nela, continua sendo registrada a bipolaridade do algoz e da vítima, do bem e do mal ou do amigo e do inimigo.
A internalização psíquica é um dos deslocamentos topológicos centrais da violência na Modernidade; a violência toma forma de conflito intrapsíquico. Tensões destrutivas são suportadas internamente, em vez de serem descarregadas para fora; o front de batalha não se desenrola externamente, mas dentro das pessoas: “A cultura doméstica vence a perigosa voluptuosidade agressiva do indivíduo, enfraquecendo, desarmando, vigiando e controlando-o através de uma instância que está dentro dele, à maneira da ocupação de uma cidade conquistada” 1. Freud vê essa instância de controle e vigilância intrapsíquica na consciência moral como lugar de inversão da violência: “cometemos inclusive a heresia de declarar o surgimento de nossa consciência moral através dessa guinada da agressão para dentro” 2. A agressão contra os outros transformou-se em autoagressão, e quanto mais uma pessoa refreia sua agressão contra eles, mais rigorosa e coercitiva se torna sua consciência moral 3.
Também a técnica de dominação lança mão da internalização da violência. Ela provê mecanismos para que o sujeito de obediência internalize as instâncias de domínio exteriores transformando-as em parte componente de si. Com isso, exerce-se o domínio com muito menos desgaste. Também a violência simbólica é uma modalidade que se serve do automatismo do costume. Ela se inscreve nas coisas autoevidentes e naturais, nos modelos de percepção e de comportamento que se tornaram hábito. A violência, de certo modo, é naturalizada. Sem o emprego de violência física, marcial, ela provê as condições para que as relações de domínio vigentes se mantenham. Também a técnica disciplinar se serve da internalização psíquica da coerção. Com intervenções refinadas e discretas, ela penetra nos ductos neuronais e nas fibras musculares do indivíduo, submetendo-o à coerção e aos imperativos ortopédicos e neuropédicos. A violência massiva da decapitação, que predominava na sociedade da soberania, cedeu lugar à violência de uma deformação gradativa e subcutânea.
O sujeito de desempenho pós-moderno não está submisso a ninguém; propriamente, ele já não é sujeito, dentro do qual inabita ainda alguma subjugação (subject to, sujét à). Ele se positiva, ele se libera para um projeto. Mas a mudança de sujeito para projeto não faz desaparecer a violência; em lugar da coerção exterior surge a autocoerção, que imagina ser livre. Esse desenlace está intimamente ligado às relações de produção capitalista; a partir de um certo nível de produção a autoexploração é muito mais eficiente. Seu desempenho é muito mais intenso do que a exploração alheia, pois anda de mãos dadas com o sentimento da liberdade. Assim, a sociedade de desempenho é uma sociedade de autoexploração. O sujeito de desempenho explora a si mesmo até chegar a consumir-se totalmente (burnout), e assim há o surgimento da autoagressividade, que vai se intensificando e, não raro, leva ao suicídio. O projeto revela ser, na verdade, um projétil que o sujeito de desempenho direciona contra si.