Wahl: A TERCEIRA TRÍADE: ESCOLHA E LIBERDADE

Jean Wahl, As Filosofias da Existência. Trad. I. Lobato e A. Torres. Publicações Europa-América, 1962.

A TERCEIRA TRÍADE: ESCOLHA E LIBERDADENADA E ANGÚSTIA AUTENTICIDADE

Podemos agora passar ao que será a terceira tríade: escolha e liberdade, nada e angústia, autenticidade e repetição. Vimos que a existência é tempo; agora vemos que é escolha e liberdade no tempo. Tínhamos visto que ela está ligada ao ser, mas que está ligada também a este ser rarefeito, a este ser diminuído que é o possível; e agora esta diminuição do ser vai até ao nada; a situação torna-se situação de angústia. E é a partir do nada e da angústia que poderemos ir até à origem que vai revelar-se, na repetição, como autenticidade.

E, portanto, da ideia de escolha que primeiro temos de falar. Vê-se facilmente o lugar que ela ocupa no pensamento de Kierkegaard. O título do seu romance é A Alternativa (de duas coisas, uma). É preciso escolher no escolher. Efetivamente, a ideia de possível só tem valor porque está ligada a esta ideia da escolha, e da escolha no tempo. Haverá diferentes graus de escolha; porque há uma escolha superficial, quando nos limitamos ao que Kierkegaard chama o «domínio estético», o puro domínio do gozo. Mas há a escolha ética e há a escolha religiosa.

Kierkegaard admite, sem dúvida, uma beleza e uma função de escolha ética, e algumas das suas obras parecem inclinadas para a apologia, para a compreensão desta escolha ética. Trata-se de se integrar na sociedade, de escolher uma função nesta sociedade, de se consorciar e de executar uma tarefa na vida. Mas, por outro lado, pensa que há qualquer coisa acima de tudo isto da qual toma consciência no momento em que desmancha o casamento, e é aquilo de que toma ainda mais consciência no momento em que escreve Temor e Tremor, visto que há o que ele chama uma «suspensão da ética», suspensão que é motivada pelo facto de que eu ouço a voz de Deus, e Deus pode desligar-me das nossas próprias obrigações morais.

A este respeito poder-se-iam comparar os dois pensamentos — sempre diferentes, mas sempre comparáveis — de Nietzsche e de Kierkegaard.

Assim, trata-se de escolher entre o estético (que é uma região onde é pouca a e reduzida a escolha) e a ética (que é escolha amadurecida e integrada), depois o religioso, que é escolha brusca e inicialmente desintegrante.

Mas como podemos nós saber que é a voz de Deus que ouvimos ? Como sabe Abraão que é a voz de Deus que o manda sacrificar Isaac? Nenhum sinal exterior poderá aqui auxiliar-nos, e Kierkegaard insiste muito nesta ideia, que é essencial para a filosofia da existência. Independentemente de todo o valor estabelecido, independentemente de toda a essência determinada, decidiremos, pela nossa própria subjetividade, que é a voz de Deus que ouvimos.

Na sua conferência sobre L’Existentialisme est un humanisme, Sartre, tão diferente, e em muitos pontos tão oposto a Kierkegaard, serve-se do mesmo exemplo.

Não se trata, pensava Kierkegaard, de considerações objectivas, como as dos hegelianos; não se trata de considerações científicas, como as dos filósofos cartesianos ou kantianos: trata-se, antes de tudo, de se identificar com o próprio ser na relação com o absoluto. E mesmo se a escolha que fazemos nos indica ou nos impõe soluções que parecem estranhas à ética, deve-se efetuar em nós essa escolha, deve-se ir para além da ética, sem que existam sinais objetivos aos quais nos pudéssemos referir.

Assim descobrimos, atrás da ideia de escolha, a ideia de subjetividade, cuja importância tínhamos visto a respeito da definição da existência em Kierkegaard.
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Esta ideia de escolha encontramo-la na filosofia de Jaspers, e poder-se-ia conceber que o conjunto desta filosofia, tal como pelo menos está exposta no segundo volume do grande trabalho chamado Filosofia, é uma espécie de catálogo das escolhas possíveis que podemos fazer.

Aqui encontramo-nos em face de uma questão já posta a propósito de Jaspers: em que sentido esta ideia de uma lista de escolhas que podemos fazer é compatível com um pensamento real de existência? Por exemplo, Jaspers opõe a escolha da confiança e a escolha do desafio; opõe, já o dissemos, o que ele chama a «lei do dia» e a «paixão para a noite». A «lei do dia> é bastante semelhante àquilo de que falávamos há pouco a propósito da atitude ética em Kierkegaard. E esta «lei do dia» que nos diz para seguir a razão, que nos diz que tenhamos uma função, e é a «paixão para a noite», a paixão romântica para a noite, que vai contra esta «lei do dia». (Não é a oposição kierkegaardiana entre o ético e o religioso, visto que o estádio ético corresponde bem à «lei do dia»; não se pode dizer que o religioso, em Kierkegaard, seja essencialmente paixão para a noite.) Podemos notar que aqui se nos deparam duas atitudes opostas, «lei do dia» e «paixão para a noite», e as duas atitudes podem, segundo Jaspers, ser autênticas. A questão estará em saber se, fazendo esta lista de escolhas, este catálogo de escolhas possíveis, Jaspers será profundamente fiel ao próprio espírito da filosofia da existência, ao espírito da sua própria filosofia, uma vez que ele nos diz que o homem só atinge a profundidade pela estreiteza. Assim, como existente, Jaspers escolheu uma das duas, seja a «lei do dia», seja a «paixão para a noite». Mas, como filósofo refletindo sobre a existência, e já não como existente, pode dar-nos este catálogo, esta lista das escolhas possíveis. Há aí, contudo, uma dificuldade, uma espécie de antinomia no pensamento de Jaspers.

Deste modo, podemos fazer duas coisas diferentes: quer elaborar um catálogo das escolhas, quer realizar o ato pelo qual se escolhe um dos termos. E o problema consiste em saber se as duas coisas se podem fazer ao mesmo tempo. Mas o que tínhamos sobretudo de focar é a importância da ideia de escolha, o seu caráter inicial. Toda a escolha, uma vez que seja autêntica, nos aproxima da origem, nos conduz ao instante.

Encontraremos esta ideia de escolha igualmente na filosofia de Sartre. Sartre insiste sobretudo no facto de que é pela minha escolha que eu crio os valores; eu sou o fundamento sem fundamento dos valores; uma vez que sou eu que fundo tudo, sou eu próprio o seu fundamento; eu sou o ser pelo qual o valor vem ao mundo, e é por isto mesmo que eu sou injustificável. Sartre insiste, como Kierkegaard, no facto de que não há nenhum sinal que possa orientar-me; a minha regra, sou eu o único que devo criá-la para mim: «Só havia para ele», escreve em L’Age de Raison (A Idade da Razão), «de bem e de mal, o que ele como tal inventava; à sua volta as coisas estavam agrupadas em formações circulares, esperavam sem fazer sinal; estava sozinho, no meio de um monstruoso silêncio, livre e só, sem remédio e sem desculpa, condenado sem recurso possível, condenado para sempre a ser livre.»

Passamos naturalmente daí à ideia de liberdade. É a afirmação de liberdade que opõe Kierkegaard a Hegel. A liberdade, diz ele, eis o que existe de grande, de imenso no homem, e o que ele lastima em Hegel é não preservar este sentimento em nós.
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Ora, esta ideia de liberdade encontramo-la igualmente no centro do pensamento de Jaspers. Que significa isto de sermos livres, para Jaspers? Como é que a existência é essencialmente liberdade ? É que a transcendência nos é ocultada. Se a transcendência, diz Jaspers, nos fosse revelada diretamente, nós não poderíamos ser livres; a transcendência dominar-nos-ia. A transcendência esconde-se ou vela-se. A transcendência, para usar uma expressão de Kierkegaard, aliás adoptada por Jaspers, é a própria a recusar-se a comunicar, salvo de uma maneira indireta, e isso a fim de experimentar a nossa liberdade. Deste modo, o domínio da existência é o domínio da liberdade, e por isso mesmo, do projecto, do possível, da escolha.

O mesmo se verifica em Sartre; podemos dizer que a ideia de liberdade é aquela em volta da qual se formou o seu pensamento.

A liberdade, diz Sartre, é o único fundamento dos valores. E, sem dúvida, há, de um lado, uma espécie de universalidade de valores em ato, já que a minha liberdade está ligada à liberdade de todos os outros; mas, por outro lado, a minha liberdade é essencialmente a minha liberdade; só eu posso, e mais ninguém, tentar percorrer, ou percorrer, o caminho que é o meu caminho. Semelhante à personagem de Kafka para a qual se abre uma porta que não se pode abrir para mais ninguém além dela, o existente sabe que o seu problema é só o seu e a sua solução só a sua.

Poderíamos sublinhar aqui o encontro de uma certa tradição, vinda de Lagneau e de Alain, e por eles em parte de Kant, com a tradição que vem de Kant e de Heidegger.

Sabemos que a teoria da liberdade, em Sartre, tem certos caracteres particulares, e, em primeiro lugar, o de ele pensar que, se um ser é livre, é sempre livre, em todas as situações, em todas as condições. Nas teorias clássicas da liberdade há momentos em que estamos livres e momentos em que o não estamos; mas Sartre diz-nos: Se o homem é livre, é sempre livre. Não se compreenderia como cessaria a liberdade e depois recomeçaria noutro momento. Consequentemente, nós seremos tão livres se decidirmos ser cobardes como se decidirmos ser corajosos. Isto em nada diminui a nossa responsabilidade; em certo sentido, pelo contrário, uma vez que há uma escolha da cobardia como há uma escolha da coragem: nos dois casos, há decisão e liberdade.

Esta é uma solução que nunca tinha sido sustentada, a de que o homem é livre de igual modo em todos os momentos; e é um dos méritos de Sartre ter enunciado e mantido esta posição, que corre, sem dúvida, o risco de fazer desaparecer o sentimento de liberdade que ele quer manter, mas que, por outro lado, nos propõe um novo motivo de reflexão.

Por outro lado, a liberdade aparece sempre, em Sartre, aliás como em Jaspers e Heidegger, como limitação e finidade. Um ato de liberdade é sempre um ato pelo qual escolhemos qualquer coisa particular. Sartre vai mesmo mais longe: a liberdade é, num sentido, um ser mínimo, é uma deficiência, uma falta, uma espécie de buraco, de nada no interior do ser, e aqui está toda a teoria do «para si», em Sartre, que se imporia evocar — é toda a teoria do nada. Eu sou o ser que não sou e não sou o ser que sou. A liberdade estará ligada à minha essencial negatividade (no sentido hegeliano e dialéctico, e também no sentido sartriano da palavra).
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Em terceiro lugar, é um facto que somos livres, isto faz parte da nossa «facticidade», para empregar a palavra que empregam Heidegger e, na sua esteira, Sartre. A liberdade não é o alicerce do seu ser; e como ele faz parte da nossa «facticidade», nós não estamos livres de não escolher, não estamos livres de não ser livres; e é o que nos faz compreender a fórmula de Sartre, segundo a qual estamos condenados a ser livres. Há neste sentido não somente uma «facticidade», mas uma necessidade da nossa contingência. Poderíamos dizer — o que indicaria que há um problema no interior do pensamento de Sartre — que é da nossa natureza sermos livres, mas sabe-se que Sartre não admite em rigor natureza e a liberdade não é, efetivamente, uma natureza nesse sentido de ser sempre a possibilidade, para nós, de ser outra coisa diferente do que somos.

Partindo do que acabamos de dizer, vê-se como Sartre pode formular a ideia que somos o que fazemos. Retoma o adágio de Lequier: fazer e, ao fazer, fazer-se. Eu sou a sequência dos meus atos. E já, inicialmente, opusemos neste ponto o pensamento de Sartre e o de Kierkegaard, visto que para Sartre não existe o inexprimível que existe para Kierkegaard: devemos exprimir-nos, exprimimo-nos, um sentimento não existe fora da sua expressão, e, neste ponto, poder-se-ia ligar o pensamento de Sartre ao de Hegel de preferência ao de Kierkegaard.

Fazemo-nos a nós próprios. É o que em diferentes obras Sartre tentou demonstrar; no seu livro sobre Baudelaire, por exemplo, leva-nos a ver como, num sentido, Baudelaire quis os seus malogros, como detrás das suas próprias frustrações encontramos a sua vontade. E podemos, por aí, chegar à ideia de que somos sempre livres de aceitar os juízos dos outros acerca de nós e de os repelir. Neste sentido há ainda uma preeminência da liberdade em relação à minha situação. Tínhamos dito há pouco que a situação só existe pela minha liberdade, dado que os obstáculos existem em relação aos fins que nos propomos, mas, por outro lado, é a minha liberdade que reconhece ou não a situação.

Um outro caráter que Sartre acrescenta à teoria da liberdade tal qual a enunciavam os outros filósofos da existência (exceptuado Jaspers em certos passos), é o elo que ele afirma haver entre a minha liberdade e a dos outros. A liberdade dos outros depende da minha liberdade, e reciprocamente. Nada pode ter para nós valor sem ter valor para os outros. Aqui encontramos, talvez, algo acentuadamente análogo à ideia de universalização da máxima na Crítica da Razão Prática, de Kant: em me escolhendo, eu escolho de uma certa maneira todos os homens; eu escolho querer que todos os homens sejam de tal ou de tal maneira. Deste modo o homem é não só responsável por o que é, mas também responsável por todos os outros. Ele tem não só a responsabilidade total da sua existência, mas também a responsabilidade total da existência dos outros. A minha liberdade não pode ser desejada sem que eu queira ao mesmo tempo a dos outros (Mas aqui de novo se nos depara uma dificuldade: a liberdade é desejada? Não é um facto?).

Depois de ter mostrado o lugar da ideia de liberdade, poderíamos tentar ver em que sentido é necessário reduzir agora este lugar em cada uma destas filosofias.

Veremos que a liberdade que parece posta por vezes no primeiro plano é, todavia, dominada num certo sentido pela necessidade, que luta sem cessar contra a necessidade, e que, finalmente, é transcendida pela transcendência.
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Consideremos em primeiro lugar o pensamento de Kierkegaard. Há a liberdade humana, mas há, por outro lado, a graça, e há uma cooperação da liberdade e da graça. É necessário, portanto, fazer intervir na teoria da liberdade um novo elemento, diferente dos que até aqui tínhamos feito intervir. Além disso, nos momentos da mais profunda escolha, da verdade mais intensa, temos o sentimento de não poder agir de outro modo. Enfim, ele propõe-nos e impõe-nos a ideia — e é uma ideia que os outros filósofos da existência retomam — de ser necessário tomar a pessoal responsabilidade da nossa situação. Assim, encontra-se algo acentuadamente análogo no sim dito ao destino, no amor fati de Nietzsche. É necessário assumir a responsabilidade do que somos; é necessário, uma vez que realizamos este salto para a transcendência que Kierkegaard nos pede que realizemos, que regressemos a nós próprios e que digamos a nós próprios «sim». Deste modo deparam-se-nos três elementos que tendem a diminuir o lugar da liberdade no pensamento de Kierkegaard.

Poderíamos fazer observações análogas relativamente a Jaspers. Jaspers insiste no facto de a liberdade existir neste domínio intermediário que é o domínio da existência; mas há um domínio superior ao da existência, um domínio análogo ao da graça kierkegaardiana, é o domínio da transcendência, e, nele, já nãopossível, já nãoliberdade. Há um esvaimento da liberdade neste domínio superior que é o da transcendência. Há um malogro da liberdade, diz Jaspers, precisamente porque há para além da existência a esfera da transcendência. A liberdade é um movimento que se dirige para a sua própria negação, para o seu apagamento, para que a transcendência se exprima. A liberdade é a aparência esvaída da transcendência. A liberdade quase se apaga, desde o momento que aparece; e, sendo ela própria um dos mais altos graus do ser, participa do caracter dessas expressões mais altas que é o de só aparecerem por súbitos clarões.

Por outro lado, nos nossos atos de liberdade mais profundos não temos o sentimento de nos escolhermos a nós próprios. Quando estamos no que poderíamos chamar o mais alto ponto da liberdade, já não temos o sentimento de escolha, mas, verdadeiramente, o sentimento de não poder querer de outro modo. E esta é já uma ideia em que tinha insistido Kierkegaard. Para além da escolha, há, portanto, qualquer coisa: há a não-escolha, superior à escolha. Nos nossos mais altos atos de liberdade temos o sentimento de que já não agimos por nós próprios, de que agimos por uma força que já não é apenas a nossa; e é então que temos o sentimento, pela nossa própria escolha, de ter atingido a região em que já não podemos escolher. É um dos sentidos nos quais se pode dizer que a liberdade, na filosofia de Jaspers, quando atinge o seu ponto extremo, conduz ao aparecimento dessa região onde já nãopossibilidade, onde já nãoliberdade, e que é a região da transcendência. Eis um segundo elemento que diminui, em Jaspers, assim como o diminui em Kierkegaard, o lugar da liberdade.
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Em terceiro lugar, Jaspers insiste no facto de sermos dados a nós próprios. Não temos o sentimento de nos criarmos a nós próprios, nós somos dados, como ele diz, «orientados» para nós próprios, temos, de algum modo, de nos receber a nós próprios, e ai se nos depara um terceiro elemento que contribui para diminuir o lugar da liberdade em Jaspers. Observemos também que só há liberdade em relação a outra coisa que não é liberdade, em relação a obstáculos, em relação a coisas que negam a liberdade. A liberdade implica não-liberdade e luta contra a não-liberdade. A liberdade é natureza, é «facticidade», e ela luta contra a «facticidade». E eis porque a liberdade conduz a um malogro na filosofia de Jaspers e talvez também nas outras filosofias.

Finalmente, a ideia de repetição, presente em Jaspers como em Kierkegaard e Heidegger, tende a diminuir também o lugar da liberdade, dado que temos de assumir a responsabilidade do que somos. Precisamente, uma vez este elemento dado, temos, ao que parece, de o fazer nosso, de o assumir, e isto pode contribuir igualmente para nos levar a ver que o lugar da liberdade não é tão preponderante como parecia à primeira vista.

Poderíamos fazer observações bastante semelhantes a respeito de Heidegger, porque se a ideia de possibilidade e de projeto nos caracteriza, nós somos caracterizados também pelo facto de que estes projetos têm um fim, um fim não no sentido de objeto, mas um fim que lhes põe fim, e que é a morte. E tudo é encarado, pelo menos em Sein und Zeit, em relação a este termo final que é, evidentemente, o malogro da liberdade, uma vez que esta morte é definida, por Heidegger, como a possibilidade da impossibilidade, ou, como talvez igualmente pudéssemos dizer, a impossibilidade do possível. Depara-se-nos uma encarnação da «facticidade» sem recurso, encarnação que é propriamente desencarnação. É a partir da morte, segundo ele, que a nossa vida se torna verdadeira totalidade. Donde uma espécie de malogro para a ideia de uma possibilidade sem limite. Por outro lado, que podemos fazer da nossa liberdade ? É aqui que intervém a ideia da decisão resolvida. Nós temos — é sempre a mesma concepção que encontramos em Kierkegaard e em Jaspers — de dizer «sim» ao nosso destino. Neste ponto o pensamento é novamente influenciado por Nietzsche, assim como por Kierkegaard. O nosso destino é ser dos seres limitados pela morte, temos de nos decidir a ser o que somos, ser finitos, limitados pela morte, e de novo a liberdade é submersa por um sentimento da necessidade.

Os nossos projetos são limitados pelos nossos passados. Esta questão da relação entre o projeto, o possível, o futuro, por um lado, o passado e a situação, por outro lado, levar-nos-ia a pôr a questão das relações, no interior da filosofia de Heidegger, entre o idealismo e o realismo. Há na sua filosofia uma oscilação entre um idealismo extremo que coloca no centro de tudo a liberdade e um realismo do ser, em Sein und Zeit, do ser abandonado e humilhado. Talvez possamos conceber uma reconciliação entre estas duas tendências se admitirmos que a própria verdade, isto é, o facto de deixar o ser ser o que é, implica uma liberdade; porque esta própria palavra de deixar não indica um ato do espírito, e aqui um ato de um espírito que já não se humilha, como dava a ideia de humilhar-se em certos passos de Sein und Zeit, mas que simplesmente acolhe, recolhe o ser, e novamente o ser predomina. Estamos no caminho de Holzwege.
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Estas filosofias que se apresentam como filosofias da liberdade não são talvez tanto filosofias da liberdade como primeiramente parecem, e para a filosofia de Sartre encontrar-nos-íamos pelo menos em face de dois problemas. (Em primeiro lugar, o problema que põe a ideia de situação. Efetivamente, a liberdade é sempre liberdade em situação, liberdade limitada, condicionada. Deste modo, cada uma das nossas ações pode ser interpretada de uma dupla maneira: em função da situação ou em função da liberdade. Depois, há o problema da unidade da nossa liberdade. A liberdade é a possibilidade de sermos constantemente diferentes do que somos. Mas, por outro lado, não há uma liberdade fundamental que governa todas as nossas liberdades particulares? É um problema que Sartre põe em L’Etre et le Néant. Nãoum projeto geral, que é o próprio projeto da nossa vida para além de todos os projetos particulares? Se aceitarmos esta ideia, parece que somos conduzidos à ideia de uma liberdade intemporal, bastante semelhante à de Kant e à que propôs Platão. Mas então todos os nossos atos particulares de liberdade dependeriam desta escolha única e intemporal. O projeto originário é antes, sem dúvida, uma configuração geral ou mesmo uma imagem virtual. Fica ai entretanto um problema.

Finalmente, a nossa liberdade tende a negar-se a si própria. Ela é criadora de necessidade; o nosso ato, uma vez efetuado, escapa-nos e torna-se um «em si». Uma tal afirmação põe certos problemas: não dissemos que, segundo Sartre, somos sempre livres no mesmo grau? Ora, vemos agora que a liberdade se encadeia a si própria, que o «para si» se transforma em «em si». Não dissemos, por outro lado, que a liberdade consiste em se ser o que não se é e em não ser o que se é? E vemos agora que o que fizemos se torna pesado, por assim dizer, sobre nós, nos pesa a nós próprios. Não há aí como que dois caracteres contraditórios da nossa liberdade? E, no entanto, tal é a nossa condição: ser ao mesmo tempo esta liberdade que se retrai e esta liberdade que triunfa, ou, pelo menos, tem de triunfar sobre o que poderíamos chamar esse retraimento, e só é verdadeira se triunfa dessa tendência para a ancilose, dessa tendência para ser o que ela é, uma vez que a sua tendência mais profunda é de ser o que não é.

A liberdade é graças à natureza, uma vez que a nossa natureza é ser livre; mas ela está contra a natureza, uma vez que deve sempre esforçar-se por lutar contra o que nela própria tende a fixá-la, tende para a transformar no que Sartre chamará um «em si». Igualmente a liberdade acaba sempre por um malogro, e, para dizer a verdade, podemos falar antes de libertação que de liberdade.

Do mesmo modo, em Jaspers, a liberdade era considerada entre a natureza e a transcendência, era, desta dupla maneira, considerada entre dois elementos, sem dúvida mais fortes que ela, que a negam. O que não é uma razão para que ela se apague. Ela deve precisamente existir, segundo Jaspers, nesta luta contra estes dois elementos que são a natureza e a transcendência. Deste ponto de vista, poderíamos dizer que nãoliberdade como facto absoluto, há, antes, ininterruptamente, tentativa de libertação.
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Em Jaspers, a liberdade desaparece na transcendência. Em Heldegger, curva-se perante a «facticidade» e a necessidade, Em Jaspers, a existência é a impossibilidade de atingir a transcendência, embora tendendo sempre para ela; em Heidegger, a possibilidade privilegiada é a do impossível; e o nosso maior ato de liberdade parece ser, pelo menos em certos passos, ver e sentir a nossa liberdade submersa pela necessidade. Em Sartre, ela está sempre em vias de desaparecer, absorvida no «em si».

Mas é nele, entretanto, que o sentimento do facto e do dever da liberdade se conserva mais vivo, ao abrigo da transcendência.

Vimos duas tríades das filosofias da existência, a primeira que compreendia a existência, o ser e a transcendência, a segunda que se referia ao tempo, e que compreendia, por um lado, o possível e o projeto, por outro lado, a origem, e, em terceiro lugar, uma escala de conceitos que ia desde o agora até à situação, e, mais alto que a situação, até ao instante. Tínhamos chegado à terceira tríade, da qual havíamos estudado o primeiro termo, que era escolha e liberdade. Vamos estudar o segundo, que se compõe de angústia e de nada, e chegaremos, depois, ao terceiro termo desta tríade, que será repetição e autenticidade.

Vimos como a angústia está ligada, em Kierkegaard, à ideia de escolha. Há possibilidades de mal em nós. Há possíveis tentadores. Daí, um primeiro motivo de angústia.

Um segundo motivo vem do facto de ser a nossa salvação eterna ou a nossa condenação eterna que está sempre em jogo.

O pecado tem um duplo papel na concepção de Kierkeggard. Em primeiro lugar, é a consciência do pecado que destrói a concepção hegeliana do mundo; descontínuo, individual, transcendente, ele quebra o Sistema. Segundo Kierkegaard, nãonada de mais individual, nada que me encerre mais em mim próprio, que o pecado. Mas, em segundo lugar, ele leva-nos até à existência religiosa, dado que a ideia de pecado implica a ideia de que estou perante Deus.

O terceiro motivo de angústia consiste no facto que é muito difícil de distinguir o que é o mal e o que é o bem, de saber se o possível é um possível tentador ou um possível salvador, porque tudo é ambíguo neste domínio da existência, não há nenhum sinal exterior. E voltamos a esta ideia que temos visto muitas vezes, quer em Kierkegaard, quer em Sartre: nãoponto de referência fixo, temos de navegar sem bússola.

O existente que nos esforçamos por caracterizar não estará nunca seguro de ser aquele que Kierkegaard chama o cavaleiro da crença. «Sou eu o cavaleiro da crença ou sou simplesmente tentado, eu não sei nada, não devo saber nada a esse respeito, estou aqui correndo o risco absoluto

Eu tenho, em todos os momentos, diz-nos Jaspers, de decidir se me perco no nada ou se me identifico comigo próprio em me afirmando a mim próprio. Estou incessantemente na escolha entre o ser e o não ser. Tenho de decidir o que sou e sé sou. Portanto, eu nunca sou qualquer coisa que esteja decidido, mas alguém a decidir-se, que se vai decidir; vou eu ser idêntico a mim próprio, ser fiel a mim próprio, ser profundamente histórico, ou abandonar-me e desenraizar-me da minha própria história ?

A ideia de paixão e a ideia de incerteza estão ligadas; é por qualquer coisa que não é completamente certa que nós nos apaixonaremos particularmente; não nos apaixonaremos por certezas, mas por qualquer coisa que é um risco. O pensador subjectivo não possui uma verdade universalizável no sentido racional do termo, ele tem sempre a sensação de estar em perigo, de estar num oceano muito profundo e no meio de uma tempestade. É a incerteza da sua relação com o que ele julga que fará a intensidade da sua subjetividade. Ele está num mar tempestuoso e profundo. No domínio da existência, no domínio da subjetividade, nele não existem nem provas nem demonstrações. Quando tiver conhecido este risco, todo o indivíduo ficará transformado; não há aqui resultado no sentido em que a ciência dá resultados, mas a interioridade do indivíduo é transformada e, neste sentido, tudo é transformado.
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um quarto motivo de angústia, ligado à ontologia. Dissemos que não podemos pensar no ser e que não podemos não pensar no ser.

Tais são as quatro razões da angústia kierkegaardiana.

O sentimento da angústia não terá um papel menos importante em Jaspers. Nele, o que está em jogo não é a nossa salvação eterna, ou a nossa danação eterna, o que está em jogo é a nossa existência, e a existência é o que se escolheu independentemente de toda a referência objectiva.

Sabe-se o papel que desempenha a angústia em Heidegger, pelo menos em Sein und Zeit. É só pela angústia que se poderá passar da esfera do inautêntico a esta esfera do autêntico do qual temos de falar. Ele distingue, aceitando neste ponto as distinções de Kíerkegaard, a angústia do temor ou do medo. O temor ou o medo dirigem-se sempre às coisas particulares, enquanto na angústia é o mundo no seu conjunto, ou o sendo no seu conjunto, que se nos apresenta e nos angustia. Nós não estamos angustiados a respeito de qualquer coisa em particular, mas a respeito do sendo em geral.

Ora esta angústia apresenta-se geralmente, do mesmo modo que em Kierkegaard. Kierkegaard dissera que a ausência de angústia é ainda um sinal de angústia: se o homem fica nesta ausência de angústia, é porque a si próprio esconde a sua angústia, por sentir angústia perante a angústia. Nunca há ausência de angústia. A angústia é o fundo permanente dos nossos sentimentos, quer em Kierkegaard, quer em Heidegger. É o sentimento fundamental. Podemos dizer que em Kant o «sentimento» ontológico era de um outro gênero inteiramente diferente, era o respeito: o papel que o respeito tem em Kant é o da angústia em Kierkegaard e Heidegger.

Além disso, é a um outro sentimento que às vezes Heidegger recorre nas suas análises, é ao sentimento do aborrecimento. Ele pensa que o aborrecimento nos revela a nossa natureza temporal, e particularmente o aborrecimento profundo, dado que Heidegger é então levado a estabelecer toda uma hierarquia de aborrecimentos; há os aborrecimentos particulares, mas abaixo deles há o aborrecimento profundo. Vemos facilmente que este aborrecimento profundo não é outra coisa senão a angústia.

Também vemos como, pela própria palavra «aborrecimento», em alemão Langeweile, «longa duração», Heidegger pode ser levado a mostrar-nos que é o sentimento da duração que está no fundo de nós próprios.

Encontramos o mesmo sentimento de angústia, acompanhado do sentimento de náusea, como sentimento fundamental em Sartre, e legitimado em parte do mesmo modo que nos autores precedentes, isto é, pela ausência de referência, pela ausência de qualquer ponto de referência, pelo facto de nós estarmos num mundo que não contém normas predeterminadas, e que temos, por consequência, de fazer nós próprios as nossas próprias normas. Somos aqueles que justificam as coisas, e por essa mesma razão somos injustificáveis. E este sentimento do injustificável que se depara no Orestes tal como Sartre no-lo apresenta e nas suas outras personagens, e é este sentimento que causa a angústia.

Entretanto, particularmente na sua conferência L’Existentialisme est un humanisme, Sartre traz um motivo novo. A angústia vem do facto de nós nunca decidirmos só para nós próprios, mas ao mesmo tempo para todos os outros. Já falamos desta ideia de Sartre. Compromete-mo-nos não só nós próprios, mas todos os homens; deste modo, existe uma muito grande responsabilidade na maneira como nos decidimos e na maneira como explicamos o universo.
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Assim, encontra-se nesta brochura uma legitimação um pouco diferente da ideia de angústia. Qualquer que seja a sua legitimação, e uma das mais profundas legitimações é o facto da ausência de normas predeterminadas, o sentimento da angústia é um dos motivos fundamentais destas filosofias (abrimos excepção para a de Gabriel Marcel).

Da ideia de angústia passamos, naturalmente, à ideia do nada. A escolha, a liberdade, emergem a partir do nada. Já a ideia de nada estava presente no pensamento de Kíerkegaard, e estava ligada ã ideia de angústia, porque esses possíveis tentadores intermediários entre o ser e o nada flutuam diante de nós e causam-nos vertigem.

Contudo, a ideia de nada não estava no centro do pensamento de Kierkegaard. Poderemos, sem dúvida, interpretar Kierkegaard mostrando o papel da ideia de nada no seu pensamento, o facto de ele próprio se sentir nada perante Deus, o facto de Deus, não podendo ser caracterizado, ser qualquer coisa de bastante análogo ao ser das teologias negativas. Todavia, a ideia de nada tem um outro lugar inteiramente diferente no pensamento de Heidegger, dado que em Kierkegaard, apesar do que acabamos de dizer, é principalmente destes nadas relativos que eram os possíveis de que ele falava, e não do nada absoluto e real.

De diferentes maneiras, Heidegger chega a esta ideia de nada. Primeiramente pela ideia, nele essencial, de que somos seres finitos. Ora, a ideia de finidade é a ideia de uma espécie de limitação e de nada do nosso ser. Depois, somos finitos, terminados, pelo último momento do nosso ser, que é a morte. E ai, ainda, é a ideia de nada que se nos mostra, é na antecipação da morte que nós nos apreendemos como nada. Destas duas maneiras, é da ideia de finidade que Heidegger chega à ideia de nada.

É necessário completar o que acabamos de dizer pelo facto de, para Heidegger, estarmos continuamente num estado de culpa. Somos limitados. A ideia de limitação está em si ligada à ideia de culpa. Haverá que pôr, neste momento, a questão de saber se, em Heidegger como em Jaspers, esta ideia de culpa não é remanescente de um estado religioso que eles próprios pensam ter ultrapassado em grande parte.

Existir é ser limitado. Ser limitado é sair do absoluto e do infinito. Assim, existir é uma culpa. Encontramos, aliás, ai um pensamento kierkegaardiano sobre a existência como culpa, mas, em Kierkegaard ele integra-se em toda uma meditação na sequência da qual a existência é ao mesmo tempo o mais alto valor e é pecado. Estamos separados desse outro absoluto em relação ao qual estamos num estado de tensão incessante. Esta separação é uma culpa, mas, ao mesmo tempo, esta separação é o que dá à nossa existência toda a sua intensidade, e por isso mesmo o seu valor.

Mas esta simples ideia de finidade não é mais que uma legitimação preliminar da ideia de nada em Heidegger. No seu opúsculo Que é a Metafísica?, Heidegger põe a questão de uma maneira muito mais geral e radical, e mostra que qualquer definição, na esteira do que já Espinosa tinha dito, implica uma negação. A metafísica, por exemplo, é isto, e não é mais que isto, e não é outra coisa. Ora, toda a negação deste gênero, segundo Heidegger, supõe o nada. O erro da filosofia clássica — e deste ponto de vista Bergson pertence à filosofia clássica — é ter explicado a ideia de nada pela negação. Ora, é o contrário que é necessário fazer. Se nada houvesse em nós, e, por consequência, nada no universo, não haveria negação.
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Mas que poderemos nós dizer deste nada? Não podemos dizer que é, porque seria um julgamento contraditório. É necessário, portanto, criar uma palavra nova. O nada tem uma certa atividade, essa atividade de negação que Heidegger traduz pela expressão reduzir a nada. Somos forçados, dirá Heidegger, a criar palavras, ou a novamente empregar velhas palavras gastas e em desuso, para exprimir certas noções. Por exemplo, não podemos dizer que o mundo é: diremos que se mundaniza. Não podemos dizer que o tempo é: diremos que se temporaliza. Não podemos dizer que o nada é: ele realiza uma atividade de redução ao nada, pela qual abala as coisas, as faz desmoronar. E, por outro lado, estas coisas que ele faz desmoronar saem por si próprias do nada. O nada é, portanto, o fundamento de todas as coisas.

O problema metafísico ao qual chegamos complica-se com o facto de, quando reeditou o opúsculo: Que é a Metafísica?, Heidegger ter acrescentado um pós-escrito onde nos diz que o nada outra coisa não é senão o ser; nós podemos definir o nada como o que não é qualquer sendo; ora, há qualquer coisa que não é qualquer sendo, e que é o ser. Heidegger subentende que não podem existir duas coisas que tenham esta mesma propriedade, se é lícito a este respeito falar de propriedade, de não ser qualquer sendo. Por conseguinte, é necessário dizer que o nada é o próprio ser, na medida em que é superior a toda a determinação.

Neste ponto encontramo-nos muito próximo da teologia negativa tal qual se formou em parte a partir da primeira hipótese do Parmênides, tal qual ela foi desenvolvida pelo Pseudo-Dionísio e retomada pelos grandes místicos cristãos, particularmente, para deles citar um que teve uma influência sobre Heidegger, por Eckhart.

Seria natural evocar aqui o nome de Hegel, uma vez que no início da sua Lógica temos a mesma afirmação: o nada e o ser são idênticos. Basta considerar a ideia de ser pura e simplesmente, abstração feita de toda a determinação, para vermos que ele é nada. Mas o ser que Hegel considera neste momento da sua Lógica é um ser puramente abstrato e é, portanto, antes à teologia negativa que a Hegel que será necessário comparar a ideia de Heidegger.

Mas se mantivermos a interpretação que o próprio Heidegger dá da sua doutrina, já não vemos muito facilmente como podemos explicar os termos deste mesmo opúsculo sobre a metafísica, como podemos dizer que o ser, uma vez que o ser agora e o nada são idênticos, faz desmoronar todas as coisas, arruína todas as coisas. E preciso dizer que o mundo se arruína no ser? Não é impossível que Heidegger o pense. Contudo, parece que entre o opúsculo propriamente dito e o apêndice existem diferenças, divergências. E mantém-se o problema de saber o que é o nada em Heidegger.

É necessário reconhecer que estamos perante uma tentativa muito interessante, importante, e que é indubitável que raramente foi feita com tanto lógica, para tentar mostrar-nos o que é o nada absoluto.

E, efetivamente, um dos resultados da meditação de Platão em O Sofista era mostrar que não pode haver nada absoluto, que só pode haver nadas relativos, que só pode haver alteridades. E a filosofia clássica tem sempre posto de lado esta ideia de um nada absoluto, e o mérito de Heidegger foi ter tentado fazer-nos compreender o que seria esta ideia de nada absoluto. Consegue-o? Talvez não possamos chegar a esse resultado. Igualmente ele insiste na ideia de que o nada é o ser. Não é mais que o ser que temos diante de nós. O ser revela-se e esconde-se simultaneamente. Mas que significa esconder-se? E difícil pensar um termo como esconder-se sem, de uma maneira ou de outra, conceber a negação, e Heidegger diz-nos que a negação não pode conceber-se sem o nada, e novamente se põe o problema.
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Estudemos agora a teoria da redução ao nada em Sartre. Aqui, os termos existência e nada, que não estavam completamente ligados, ou não estavam ligados sempre da mesma maneira, em Heidegger, estão ligados um ao outro. Existem certamente passos nas obras de Heidegger que indicam que é no Dasein que aparece essencialmente o nada. Mas as duas ideias estão ligadas mais estreitamente para Sartre. Sou eu próprio que sou nada, é por mim próprio que a ideia de nada vem ao mundo. O mundo é plenitude, ou, melhor, seria plenitude se não houvesse o «para si», ou se não houvesse o homem. O homem é uma espécie de vazio, uma duração profunda e viciada, é o homem que traz ao mundo, de qualquer modo, a ausência.

Poder-se-á dizer que muitas vezes Sartre toma a palavra «ser» como sinônimo de «ser em si», e a palavra «nada» como sinônimo de «ser para si». L’Être et le Néant, o titulo do seu livro, é no fundo, o «em si» e o «para si». Eu, o sujeito, sou o nada.

Mas não há talvez em Sartre uma ideia única do nada, e talvez a sua doutrina seja uma regressão em relação quando não ao resultado, pelo menos ao esforço de Heidegger e ao fim que ele se propunha; em Heidegger há esta tentativa da qual dizíamos que é bela, mesmo que não tenha resultado, para nos fazer apreender a realidade do nada.

Em Sartre há uma multidão de nadas, ou, antes, de reduções ao nada. Todo o fenômeno psicológico é traduzido por Sartre em termos de redução ao nada. Por exemplo, a imaginação é o que não é percepção; a percepção é o que não se reduz a si próprio. E vemos muito bem, efetivamente, como todo o facto é nada em relação a outra coisa. Se eu quero realizar qualquer coisa, por exemplo, é necessário que eu proponha um ideal, isto é, que eu reduza a nada a realidade, é preciso que eu realize este ideal e que eu reduza a nada ainda pela minha ação um aspecto da realidade. Haverá uma sucessão, uma cascata de reduções ao nada. Não haverá nada que não seja redução ao nada no domínio do «para si».

Mas, por isso mesmo, pode-se perguntar se Sartre não regressa, de uma concepção heideggeriana do nada, a uma concepção hegeliana do nadadado que Hegel tinha visto muito bem que o espírito é negatividade, que o que mantém todas as coisas é a negatividade — e até a uma concepção platônica. Atrás da ideia de nada é a ideia de outro que encontramos.

Deste modo talvez pudéssemos dizer que foi Heidegger quem tentou de uma maneira mais interessante fazer-nos compreender — se ela existe e se é possível fazê-la compreender — esta realidade do nada. Quanto a Sartre, ele emprega sempre a ideia de redução ao nada para nos fazer compreender o movimento, ou, melhor, os movimentos diferentes do espírito.

As ideias de angústia e de nada vão permitir a passagem do inautêntico para o autêntico. Estas duas ideias autenticidade e inautenticidade, principalmente empregadas por Heidegger, são igualmente essenciais em Kierkegaard.

Ha o domínio, dirá Heidegger, do Nós, do Man, ou seja o domínio daquele que somos na medida que somos substituíveis por não importa quem. E há o domínio a que chegamos depois de termos sofrido a angústia.

Heidegger diz que, quando fala de autenticidade e de inautenticidade, não quer significar que haja uma superioridade do autêntico sobre o inautêntico, visto que essas são categorias metafísicas, que há uma verdade metafísica tão grande do inautêntico como do autêntico. Para dizer a verdade, é difícil acompanhá-lo neste ponto; desde que se fala de uma diferença entre o autêntico e o inautêntico, é para preferir o autêntico.
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Chegamos às ideias do malogro e da repetição.

Há malogro, em Kierkegaard, na sua própria vida, e é para triunfar deste malogro que ele recorre a Deus, que passa para a transcendência, fi; a consciência deste malogro dos gênios — quer seja Kierkegaard, quer seja Nietzsche, quer seja Van Gogh — que faz que Jaspers encare a categoria do malogro como essencial para a filosofia da existência. É pelo malogro, já o dissemos, que, segundo Jaspers, podemos passar para a transcendência. Dissemos também que há nele simultaneamente uma ontologia do malogro e um malogro da ontologia, uma vez que não se chega a constituir uma ideia única do ser.

A ideia de malogro encontrá-la-emos também no que diz Sartre, por exemplo,, sobre as relações com outrem.

Ora, para triunfar do malogro, temos, segundo Kierkegaard, um meio, que ele expõe, para dizer a verdade, de uma maneira muito complexa e confusa no seu livro intitulado A Repetição, e esta ideia ficou como uma das categorias existenciais das «filosofias da existência». Trata-se para ela de fazer do malogro um triunfo.

Que é a repetição para Kierkegaard ? Num período da sua vida anterior àquele em que o seu pensamento se constituiu, Kierkegaard tinha muito arraigada a ideia de que só seríamos felizes se pudéssemos reencontrar tal qual determinado momento do passado. E qualquer coisa de análogo à ambição de Proust, em A la Recherche du Temps Perdu (A Procura do Tempo Perdido): reencontrar idêntico a si próprio um momento do passado, eis o que seria a felicidade. E de uma maneira ao que parece bastante pueril, Kierkegaard tentava reencontrar esses momentos, por exemplo, voltando à Opera ouvir o seu drama favorito, para se colocar exatamente no estado de espírito em que tinha estado a primeira vez perante o drama. Deu-se conta de que essa era uma tarefa impossível. A tudo isto se misturou o problema que ele criara a respeito da noiva, e finalmente concluiu que não é no mundo que podemos encontrar a repetição, que é no outro mundo, e que é pela . E entretanto acrescentava: se passarmos pela , poderemos finalmente talvez até encontrar a repetição neste mundo. E Job, por exemplo, não é representado como reencontrando a sua família e os seus filhos? Por consequência, este mundo pode ser consagrado precisamente pela nossa renúncia a ele.

Seria, portanto, necessário distinguir uma imediação primeira, que é antes da reflexão e antes da , e depois o que Kierkegaard chama uma imediação amadurecida, uma imediação mediatizada, permita-se-nos a expressão, para nos servirmos dos termos do inimigo, ou seja, de Hegel, uma imediação amadurecida, como diz Kierkegaard, que se teria depois de entrar em contacto com a transcendência. É só depois de se ter vivido este instante, que é o contacto do tempo e da eternidade, que verdadeiramente se poderá considerar este mundo como consagrado.

Finalmente, não se trata, para ele, de se afastar da religião do mundo, mas de reencontrar o mundo, o mundo tal qual é, e mesmo de se não distinguir dos outros homens; aquele que tiver esta profunda em nada se distinguira dos outros, regozijar-se-á como os outros, e o ideal será, talvez, que não se saiba que ele tem esta ; terá transfigurado o mundo real de tal maneira que ele próprio, aparentemente, não será distinto daqueles que concedem ao mundo real toda a sua confiança.
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Em Heidegger, a ideia de repetição não poderá ser interpretada e justificada da mesma maneira, dado que, pelo menos em Sein und Zeit, não há alusão a qualquer divindade. Estamos, neste mundo, limitados no nosso próprio ser. A única maneira de chegarmos a tomar sobre nós o nosso destino — porque tal é, finalmente, o sentido da decisão de Heidegger — será de nos querermos como limitados pela morte. Pois é pela experiência da angústia e do pensamento da morte que chegaremos à repetição. Tomamos sobre nós o que somos. É o que Hidegger chama a decisão resolvida antecipante, pela qual nós vivemos antecipadamente à nossa morte. Dominamos o malogro pela própria consciência que tomamos deste malogro.

Em Jaspers, a interpretação da ideia de repetição é diferente do que é em Heidegger e aproxima-se um pouco mais da repetição kierkegaardiana, dado que os nossos malogros não são mais que a afirmação da transcendência, são o próprio reverso da transcendência. Se fracassamos, é que há outra coisa, é que há uma esfera que ultrapassa a da existência. E é aquilo de que tomamos consciência no que Jaspers chama as situações-limites.

Assim, o malogro permite-nos passar da existência para a transcendência, e neste sentido, na medida que leva à repetição, ele é o grau supremo, o símbolo supremo da transcendência.

Pelo malogro, atingimos o ser, dado que atingimos o que nos é absolutamente irredutível, e vemos brilhar para além de nós próprios o que nos ultrapassa. Só o vemos brilhar por um instante; porque o que há de mais alto é necessariamente precário, é só por súbitos clarões que se revela este grau da transcendência, é um súbito clarão numa noite, mas este súbito clarão justifica tudo.

Vemos, deste modo, que as duas ideias de malogro e de repetição não são tão opostas como parecem à primeira vista, uma vez que tanto em Heidegger como em Jaspers é do malogro que nasce a possibilidade da repetição, é do malogro que podemos ir até ao triunfo e por essa via atingir a autenticidade.

Nietzsche diz-nos que o mundo no qual estamos é um mundo do absurdo, visto que todas as coisas voltarão a ser tal qual eram. O super-homem é aquele que pode suportar esta visão deprimente para os outros e que pode afirmar o regresso eterno e querê-lo. Se se disser sim à vida de tal maneira que se lhe diga sim eternamente, mesmo que ela regresse desta maneira absurda, então triunfou-se de todo o pessimismo, de todo o schopenhauerismo, atingimos o amor do destino. Ora, esta ideia de Nietzsche é, evidentemente, qualquer coisa que está presente, e intimamente presente, no pensamento de Heidegger e de Jaspers.

Terminamos a análise desta tríade, que recordamos uma vez mais: escolha e liberdade como primeiro termo, nada e angústia como segundo, malogro, repetição e autenticidade como terceiro.

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